“A criatividade não tem surgido nas redações”: crise pode criar novos modelos de jornalismo
André Deak é professor de jornalismo nas faculdades FAAP e ESPM, foi um dos fundadores do coletivo Casa de Cultura Digital e está por trás do projeto “Arte Fora do Museu” – que mapeia e traz informações sobre grafites, esculturas e murais espalhados pelas ruas do Brasil. André também foi um dos primeiros estudiosos dos newsgames (jogos jornalísticos) no Brasil e hoje se declara “pós-jornalista”. Na entrevista abaixo ele explica seus projetos, defende a existência do Mídia NINJA e diz que a crise (e o desemprego) podem ser estímulos para criatividade e inovação.
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1) Você é um integrantes da Casa de Cultura Digital, né? Será que você poderia explicar melhor este projeto?
André Deak: Então, a Casa de Cultura Digital (CCD) nasce de um encontro entre pessoas e seus projetos, num momento em que alguns vinham de experiências anteriores muito ricas, como ONGs, empresas grandes e pequenas, o meio artístico cultural, a cultura hacker, o Ministério da Cultura, e estavam buscando um lugar, mas talvez sobretudo um grupo, com afinidades. Foi tudo meio espontâneo, na base do “vamos lá, junto é mais legal que separado”. Nunca existiu uma missão, mas eu poderia chutar que algumas dessas afinidades subjetivas eram: cultura livre, conhecimento compartilhado, colaboração em vez de competição, e alguma aversão a regras muito definidas. Gosto de um termo que ouvi do Pedro Markun, que realizamos uma espécie de façocracia – quem tiver uma solução, em vez de ficar falando, que faça. Se não for fazer, não reclame de quem está fazendo.
Mais recentemente, tenho gostado de pensar sobre essa nossa experiência sob dois aspectos: um, que nunca foi – também de propósito – uma instituição. Uma instituição tenta criar processos que são maiores do que as pessoas, para que a instituição viva depois, e apesar das pessoas. Nunca tivemos processos. Em São Paulo, agora, o momento é de inflexão – tínhamos 4 casas alugadas, com cerca de 100 pessoas por lá todos os dias. Agora temos 3 casas, com umas 20 pessoas circulando. Entretanto, a Casa da Cultura Digital de Porto Alegre está em um fluxo incrível de criatividade, com muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. E tem uma Casa da Cultura Digital em Belém, que funciona em outro modelo, e outras possibilidades sendo discutidas em Fortaleza, Brasília… Brotaram Casas por aí, mas cada uma segue seu ritmo, sua vida independente e autônoma das outras.
O outro aspecto é o de incubadora de comunidades. Só pra citar alguns grupos que foram de certa forma incubados ali: na CCD ocorreram as primeiras reuniões do Baixo Centro; o Garoa Hacker Clube, que ocupou nossos porões, cresceu tanto que saiu para uma casa só deles; um grupo de produtores culturais saiu para o que depois virou a Estufa, na Vila Madalena; o Transparência Hacker e o Ônibus Hacker também usaram o espaço para realizar algumas coisas no início; as próprias Casas da Cultura Digital de Porto Alegre e Belém foram montadas por pessoas que passaram por São Paulo e viveram um pouco do espaço ali.
2) A Casa de Cultura Digital tem fins lucrativos? Qual é seu modelo de negócios?
A.D.: A Casa não é um CNPJ constituído, nem tem marca registrada. Não existe modelo de negócio. Quem está lá divide as contas e lava a louça suja. Nem sempre funciona…
3) Dentro das atividades da Casa de Cultura Digital, você desenvolveu um projeto bem legal chamado “Arte Fora do Museu”. Como se desenrolou esse projeto?
A.D.: O Arte Fora do Museu surgiu numa parceria com o jornalista Felipe Lavignatti. Fizemos os dois o projeto, vencemos um edital da Funarte e gastamos os parcos recursos com o programador do site e do app. Começou como um site, mas tornou-se uma iniciativa de valorização da arte pública, mapeando obras de arte que estão no espaço público (grafite, arquitetura, escultura e murais) e produzindo informação sobre cada uma delas, coisa que nem o poder público tem.
Seguimos em busca de financiamento, o projeto já está em dezenas de cidades no Brasil e no mundo. Ele tem apoio do Ministério da Cultura e de outros parceiros grandes. Duas instituições entraram mais vivamente no apoio ao projeto. A Cultura Inglesa nos chamou para sermos curadores do Festival Cultura de Rua, e utilizou o Arte Fora do Museu como plataforma de colaboração para que as pessoas mandassem por ali fotos das obras que estão nas ruas. E o Google, ao lançar mundialmente o primeiro mapeamento de Street Art, pelo Art Project deles, nos convidou para fazermos a curadoria dos grafites que entrariam. Foram parcerias pontuais, importantes e que nos deram força pra seguir adiante. Estamos sempre em busca de outras, inclusive marcas que queiram se conectar com arte e espaço público.
4) André, você tem um mestrado em novas maneiras de fazer jornalismo, dá aulas sobre o assunto e toca o site Jornalismodigital.org. Como você vê a atual crise da mídia impressa e a falta de rentabilização dos sites da grande mídia através da publicidade?
A.D.: Essa é complexa. Posso dizer que parei de comprar jornal impresso quando minha cachorra morreu – ela usava mais que eu. Recentemente senti falta, porque fui fazer a barba e revista não serve muito bem, tem folhas muito pequenas.
Sendo muito sincero, já tem muita gente preocupada com a “grande mídia”, então prefiro pensar em saídas alternativas, fora dela. Eu entendo que ali é onde é possível realizar a reportagem; viagens internacionais são caras e pra isso precisa de muito dinheiro. Mas talvez, sem a mídia tradicional, a gente se obrigue a buscar formas mais criativas de fazer jornalismo de qualidade, de sustentar essas iniciativas. Inclusive com recursos públicos, por que não? Editais públicos de grandes reportagens. Edital tem problemas, claro. Mas vamos tentar novos caminhos, quem sabe a gente encontra.
5) Existe alguma iniciativa de jornalismo independente que te inspira e que você considera que pode ser uma resposta para a atual crise?
A.D.: Tem muitas. Fora do Brasil, há muitos anos já, o Media Storm, o ProPublica, por exemplo. El Diario.es, na Espanha, que trabalha só com doação dos leitores. Crowdfunding. Aqui no Brasil a Repórter Brasil e a Agência Pública têm buscado caminhos. Tá aí a Mídia NINJA nas ruas, com seus problemas, mas trazendo muita inspiração também. Hoje ouvi um velho jornalista dizendo que a mídia Ninja não é jornalismo. Essa discussão é importante realmente? Academicamente, talvez, mas é melhor que exista a Mídia NINJA do que ficar discutindo isso. E, ótimo, usemos o debate pra melhorar os ninjas. Cansei de ouvir que “jornalismo mesmo é o bom e velho jornalismo”. Tem uma brincadeira nas redes sociais dizendo que o velho jornalismo já morreu, mas esqueceram de enterrar. Seria o zombie journalism.
6) Você se considera um “pós-jornalista”, o que quer dizer com isso?
A.D.: Que a definição tradicional de jornalista não me representa, mas jornalismo foi minha formação, então é difícil pensar fora da esfera da informação a serviço do interesse público. No mestrado, eu também procurei conhecer jornalistas que trabalhavam em processos emergentes, e estas funções ainda não tem exatamente um nome definido. Jornalistas que trabalham com bases de dados, ou que são “repórteres-multimídia”, ou que são empreendedores. Mas também os que trabalham com redes sociais ou que programam, ou ainda pensam e fazem newsgames. Eu colocaria todos estes como pós-jornalistas.
7) No texto “Ficaralho“, o fundador da Mídia NINJA Bruno Torturra diz que as demissões em massa nas grandes empresas de jornalismo podem ser vistas de uma maneira otimista, como uma forma de renovar o jornalismo. Você concorda?
A.D.: Como o próprio Bruno disse, não dá pra comemorar um monte de gente sendo mandada embora. Comigo, o desemprego sempre gerou muita criatividade. Esses últimos quatro anos, desde que montamos a Casa da Cultura Digital, têm sido incrivelmente criativos. Sem trabalho, a gente tem ideias ótimas com uma velocidade espantosa. Acho que o prolabore acostuma mal a gente nesse sentido – não precisa descobrir um jeito de pagar as contas no mês seguinte; já está lá, garantido. A crise gera criatividade, tenho certeza. Na Espanha, neste momento, surgiram coisas legais, redações que funcionam em cyber-cafés, em que as pessoas se encontram pra discutir pauta, sem redação formal. Jornalismo feito completamente em licenças abertas – e com as contas no azul (caso do El Diario.es). O próprio Indymedia (Mídia Independente, no Brasil) surge nos protestos em Seattle por resultado da necessidade de publicar informação sem intermediação da imprensa tradicional, num outro momento de crise global. Coisas novas podem surgir, o momento é propício. Mas melhor seria se, em vez de demitidos, os jornalistas todos tivessem pedido demissão…
8) Como um profissional que tem atuado como jornalista independente há muitos anos, que mensagem você deixaria para os estudantes de jornalismo que se deparam com as demissões em massa em diversas empresas?
A.D.: Mais do que independente, tenho gostado do termo autônomo – porque somos dependentes de algo, de alguém, de um sistema. Nenhum jornalista é uma ilha. Mas autonomia é um negócio legal de perseguir, porque em geral as faculdades de jornalismo formam para se trabalhar para alguém, ser dependente mesmo.
Eu tenho tentado diversificar as entradas de recursos, para não ficar dependente de uma só fonte de renda. Neste exato momento, sou professor da Faap, na pós-graduação, em novas narrativas do jornalismo; professor da graduação da ESPM, numa disciplina sobre cultura digital; tenho vários projetos com o Felipe Lavignatti; coordeno o que chamo de núcleo ad hoc de infografia e visualização de dados na Casa da Cultura Digital; sou pesquisador associado do Media Lab da ESPM, e represento no Brasil (junto com o Lavignatti também) um Media Lab argentino chamado Estado Lateral, que trabalha com agências de publicidade; sou consultor para uma plataforma de crowdfunding e também para um projeto de mapeamento.
Setenta por cento disso não me paga nada, e os 30% que pagam variam quanto, quando e quem são os que pagam. Não é fácil. Mas, como dizem em Cuba, pero tampoco es difícil. Não é um modelo, obviamente. Mas entre voltar para uma redação e fazer qualquer outra coisa – sou barman também –, acho que preferiria a segunda opção. A criatividade, definitivamente, não tem surgido nas redações.