Entrevista debate futuro do jornalismo: “Ninguém entende o que está acontecendo e está disposto a pagar para quem explique”.
Rafael Kenski é um jornalista que não gosta de “brincar” dentro dos limites que o gênero oferece. Participou dos primeiros ARGS (Alternate Reality Game) do Brasil, foi um dos pioneiros na produção de newsgames (jogos jornalísticos), fez pesquisas de mercado e deu uma palestra no TEDx Amazônia onde defendeu a tese de que a “diversão pode mudar o mundo“. Nesse meio tempo, fez mestrado sobre “Sistemas de Informação” na London School of Economics e morou em Berlim e Londres. Voltou para o Brasil para comandar o Núcleo Digital das marcas masculinas e jovens da Abril. (Sim, isso incluí o site da SUPER).
Na entrevista abaixo falamos sobre jogos, inovação e o futuro do jornalismo.
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1) Sua carreira começou na editora Abril, né? Como você entrou na editora e o que desenvolveu de mais legal na revista SUPERINTERESSANTE?
Eu entrei pelo Curso Abril – a versão da empresa para o tradicional curso de trainees. Entrei para a SUPER quatro meses depois e acabei ficando 9 anos em diversas funções ao redor da revista. Conseguimos fazer muita coisa legal, como a SAPIENS, uma revista que tentava misturar ciências exatas e biológicas com literatura, humor e design. E também fiz muitos jogos, desde os ARGs(sigla em inglês para “jogos de realidade alternativa”) até os newsgames.
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2)Os ARGS que você criou pra Super foram os primeiros do Brasil? Você poderia explicar como eles surgiram?
Existem várias definições para ARGs, e alguns publicitários dizem ter feito aqui, já em 2001, alguns jogos que tentavam misturar realidade e ficção em várias mídias. Em 2006, esse tipo de jogo tinha crescido bastante mundo afora. Eu era editor da Super e fui fazer uma matéria sobre isso, mas só tinha uma página para explicar as complicadas relações feitas nesse tipo de jogo entre objetos no mundo real, internet, celulares, TV e outra mídias. A solução foi criar o próprio jogo: imprimimos só um link na página, que levava a várias outras pistas. deu bastante certo, com mais de 15 mil jogadores e comunidades criadas só para resolvê-lo. Daí fizemos outro na edição seguinte e começamos a estudar técnicas para aprimorar essas iniciativas. Os ARGs começaram a decolar no país: ao fim daquele ano, a MTV já fazia jogos bastante complexos e nós estreávamos o Zona Incerta, que se propunha a levar ao limite as possibilidades de um projetos assim.
3) Em 2007-2008 a Abril montou uma equipe só pra criar ARGs, né? Você pode explicar um pouco esse case e falar o que foi o “Zona Incerta”?
O sucesso dos jogos na revista levou a gente a investir em jogos mais complicados. Conseguimos então o patrocínio do Guaraná e nos empenhamos ao máximo para criar um jogo que pudesse ser comparável ao que de melhor se fazia mundialmente nesse gênero. Era uma grande história, que dividimos em pedacinhos e espalhamos em dezenas de mídias: redes sociais, revistas, cartazes, festas, objetos escondidos, telefone, vídeo, rádio e garrafas de refrigerante eram apenas algumas delas. Era bem claro que era um jogo, mas tentávamos deixar bem realista para aumentar a imersão e fazer o jogador se sentir dentro de outra realidade. Personagens e empresas fictícias tinham telefone, sites, email e tudo o que qualquer pessoa (física ou jurídica) deve ter. Também escondemos pistas na maioria dos estados do Brasil, do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Juntamos mais de 400 mil participantes e até alguns ilustres, como políticos em Brasília que acharam que a história era de verdade. Tínhamos planos de emergência para quase tudo o que poderia acontecer durante a história, menos para isso. Mas, no final, deu tudo certo.
4) Em 2008 você se tornou o editor digital do núcleo jovem na Abril. Nessa época surgiu o newsgame “CSI“. Como foi o processo de criação do jogo?
Eu voltei a trabalhar diretamente com a SUPER, mas na parte de internet, logo depois de ter trabalhado com alguns projetos de ARGS e jogos publicitários. Então a idéia de usar as mesmas ferramentas em jogos jornalísticos foi quase óbvia. Juntei alguns dos mesmos colaboradores que haviam trabalhado em todos esses projetos e combinei com a redação da revista para que eles pensassem a matéria como um híbrido de revista e jogo. Era importante porque faria o leitor transitar da internet para a revista e porque dava mais espaço para enriquecer a experiência com diversos tipos de conteúdo.
5) Tem uma história engraçada que vocês imaginavam que estavam criando um novo gênero de jornalismo, mas descobriram que os “newsgames” já existiam através de um artigo do Andre Deak. Você lembra como foi isso?
Na época, a gente era só uma redação de jornalismo que estava a fim de fazer games. Então a gente chamava aquilo de “jogos jornalísticos”, e via que trazia novas possibilidades de se transmitir notícias. Daí, um tempo depois, a gente viu um post do André Deak que mencionava esse trabalho como exemplo de “newsgame”. E aí a gente ficou sabendo que isso tinha um nome chique e uma teoria muito legal por trás.
6) Como você vê a atual crise global do impresso? Acredita que o digital pode salvar as grandes empresas?
Deveria ser óbvio para qualquer um hoje que a melhor maneira de transmitir notícias (ou qualquer informação) não é gastando tinta, papel e caminhões para transportá-la até a casa do leitor. É algo que já dava para se ver há mais de 10 anos, e cuja consequência seria uma mudança drástica do modelo de negócios em jornalismo. No entanto, grande parte da resposta foi acelerar os problemas: cortar custos, diminuir redações, apoiar-se cada vez mais em fontes de internet disponíveis a qualquer um e diluir o diferencial de cada título. Depois disso, tentaram só jogar o que faziam na internet – em sites ou versões para iPad – sem se preocupar muito quanto a se aquilo era ou não apropriado para o meio.
Quanto ao digital “salvar as grandes empresas”, sempre é possível, ainda que improvável. Conteúdo digital já deu origem a algumas das corporações de maior crescimento na história (vide Google e Facebook), mas é algo bem diferente do que conhecemos como jornalismo. Se os atuais canais e editoras continuarem com a mesma mentalidade das últimas décadas, não conseguirão atingir o nível de mudança e inovação necessários para manterem o tamanho que sempre tiveram. Mas as experiências das empresas de jornalismo digital bem sucedidos – como Buzzfeed, Huffington Post e o The New York Times – mostram que dá para manter uma boa redação (ainda que bem menor) só com a receita dos meios digitais.
7) Você acha que essa atual “crise no jornalismo” pode ser benéfica e propiciar uma fase de inovação e democratização?
Claro que sim. Por enquanto os meios digitais mais destruíram o jornalismo antigo do que criaram novos modelos de negócio. Existe um vácuo de boas histórias, de reportagens e contextualização. Ninguém entende o que está acontecendo e está disposto a pagar para quem explique. Há milhões de possibilidades de se cumprir essa função, e fazer vídeos em telejornais ou escrever textos em periódicos são apenas duas delas. Provavelmente envolverá repensar todas as funções e processos: desde quem são os jornalistas, até suas motivações e tarefas e, principalmente, o que é uma matéria jornalística. Daí a importância da experimentação com games, além de visualização de dados e várias outras formas possíveis e baratas de se trabalhar a informação hoje. É um futuro interessante. Só não sei se será mais democrático: ao mesmo tempo em que as novas tecnologias dão voz a muita gente, também facilita muito a criação de monopólios (como os já citados Google e Facebook).
8) Por fim, tem alguma iniciativa legal que você considera um modelo que pode “salvar” o jornalismo?
Não acho que o atual modelo de jornalismo possa ou deva ser salvo. Ele vai continuar, mas bem menor e com menos poder. Uma opção de nicho, agradável e nostálgica, mais ou menos como os discos de vinil. No lugar, surgem vários modelos que substituem, ampliam ou eliminam os diversos elementos que hoje compõem o pacote que chamamos de jornalismo. O New York Times está sempre experimentando com novas linguagens, e apresentando matérias em vídeos, jogos, infográficos e animações. A Amazon criou uma plataforma que consegue vender praticamente qualquer tipo de conteúdo. O Reddit segue um modelo baseado em comunidades, que já vem sendo trabalhado em outros sites há mais de uma década. O Buzzfeed explora principalmente o lado viral das notícias. O Blind Gossip cria quase um jogo entre os leitores para trazer fofocas que o jornalismo de celebridades nunca teve coragem de publicar. E já surgem um monte de áreas cinzentas entre jornalismo e educação (como os cursos online abertos), pesquisa (que vai desde sites de tendências e cool hunting até visualizações de dados) e com diversos tipos de ferramentas online (busca, blogs, bookmarking, etc).