O fim de Lost por Alexandre Matias*
Foi certo Lost terminar como uma grande novela das oito. Afinal, a série foi isso durante estes seis anos, é por isso que ela conseguiu o alcance que teve. Se não tivesse o elemento Janeth Clair (mais do que Manoel Carlos ou Gloria Perez, como alguns citaram, meros amadores na arte cada vez mais, er, perdida de escrever uma telenovela), Lost seria uma série que falaria com um público específico, uma tribo. Seria cult, alternativo, cool, nerd – seria uma realidade paralela.
Como toda a obra de J.J. Abrams, Lost pegou uma fração específica de um nicho e deu-lhe uma noção épica, monumental. “Dar tratamento A à cultura B”, como ele mesmo diz, com freqüência. E quando pensamos que Lost é uma mistura de Além da Imaginação com um reality show numa ilha deserta, tendemos a nos animar com o lado do seriado de Rod Serling, esquecendo que é a novelinha e os personagens que tornam a série tão importante.
Essa história foi encerrada em The End, seu último episódio, que junto também trouxe uma pontada de frustração por não responder as tais inúmeras perguntas abertas pelo seriado semanalmente. Mas como Across the Sea, o antepenúltimo episódio, que já havia causado cisão entre os fãs, The End não estava preocupado com as respostas. E, como em quase toda duração da série, ambos episódios não esclareceram nada, funcionaram apenas como uma amostra do poder narrativo de Lost, enfileirando questionamentos vagos à medida em que traduzia os sentimentos dos protagonistas – que poderiam ser resumidos no título da série, a sensação de estar perdido, e não apenas geograficamente.
Este sentimento não era exclusivo dos personagens – era também nosso. Passamos seis anos perdidos numa ilha maluca que muito de vez em quando dava alguma amostra de racionalismo. Seis anos perseguindo números, constantes, equações, cronologias, efeitos especiais, coincidências e linhas do tempo que nos fizeram crer que a ilha fosse o paraíso perdido, uma nave espacial, o oco do planeta, uma dimensão alternativa, um estado de espírito, uma anomalia eletromagnética, um lugar místico. Ilha que já colheu gente de todas as épocas e lugares – de adoradores das divindades do Egito antigo a cientistas e militares norte-americanos – e que por seis anos (três, na contagem cronológica da série, entre 2004 e 2007) foi palco para o drama dos passageiros do vôo 815 da Oceanic Airlines. E para o nosso drama também, como telespectador.
Eis o trunfo de Lost: nos colocar como participante da viagem. O tempo todo sabíamos que o que acontecia na ilha era ficção, não havia como confundir ator com personagem e havia um próprio subtexto na produção da série – o blog de Hurley, a transformação de Damon e Carlton em ícones pop, as entrevistas de Michael Emerson – que fazia questão de nos lembrar que estávamos apenas acompanhando uma novela e que o ator que fazia o vilão não era, de verdade, um vilão. Por mais ridícula que esta afirmação possa parecer, lembre-se que estamos na era dos reality shows e torcidas são organizadas em torno do caráter – ou a falta de – de qualquer participante deste tipo de programa, esteja cantando, dançando, cozinhando ou simplesmente discutindo o nada com outros tipos sem graça.
Lost esfregava ficção em nossa cara ao mesmo tempo que nos deixava tão atônitos quanto o estado de seus personagens. E enquanto os personagens só começaram a experimentar as viagens no tempo a partir da quinta temporada, nós estamos sendo submetidos, desde a primeira, a flashbacks e flashforwards na vida de cada personagem, que nos deixaram tão desorientados a ponto de sermos lindamente driblados no final da terceira temporada.
The End nos ajudou a nos reencontramos com a essência de cada personagem – explicando, assim, a função dos flashsideways. Mais do que o “purgatório” visto com esgar pela parte dos fãs do seriado que se sentiram traídos, a realidade paralela criada nesta temporada serviu para que voltássemos a nos encontrar com os personagens da primeira temporada, aqueles que foram importantes no período em que Jack esteve na ilha (que, não custa lembrar, existiu, existe e continua existindo – a ilha em si não é um purgatório, como interpretações ainda mais apressadas tentaram provar). Os personagens que deram origem à história que assistimos.
Aos que reclamaram do final, exigindo respostas, não custa lembrar que a ficção científica também aborda a questão do pós-vida e que a metáfora de uma realidade exatemente idêntica à que vivemos é tema recorrente até neste meio. É uma ficção científica, no entanto, espiritualizada e epitomizada em um autor que, de tão específico, não pertence a nenhuma escola: Philip K. Dick. PKD usava ficção científica para discorrer sobre filosofia e, mais tarde em sua bibliografia, espiritualidade. Viciado em drogas para manter-se acordado e escrevendo, K. Dick teve a própria sanidade posta em xeque quando, no meio dos anos 70, viveu um delírio em que acreditava viver duas épocas ao mesmo tempo (história que o R. Crumb conta com maiores detalhes na tradução que fiz para A Experiência Religiosa de Philip K. Dick). Profundamente abalado por estas visões, K. Dick passou a buscar o sentido da vida em livros quase cifrados – como Ubik e Valis -, em que discorre sobre o que acontece depois da morte indo para além das metáforas religiosas, mas sem se distanciar das referências terrenas. Daí a igreja com seu vitral ecumênico na última cena.
Mas Lost não terminou de maneira espiritualizada e mística, pura e simplesmente. Retire todos os flashsideways e a rendenção final de Jack Shephard e eis a história dos passageiros do Oceanic 815 na ilha, contada desde sua queda até a fuga. Do confronto final entre Jack e Locke (na mesma chuva negra do último duelo entre Neo e Smith em Matrix Revolutions, a série se autoironizou até os últimos minutos) ao sacrifício feito por Jack (Donnie Darko feelings) para restaurar a luz do coração da ilha (puro Disney) até o último fechar de olhos na última cena, toda a história do Jacob e de seus candidatos foi contada. Alguns morreram, outros fugiram, mais outros ficaram. Sem o flashsideways, no entanto, não teríamos a citação de Ben e Hurley à série O Prisioneiro, ao se referirem como “número 1″ e “número 2″ e saudarem-se com um parente do “be seeing you” – e fico imaginando a reação de quem não gostou do fim de Lost com o fim do Prisioneiro (não o remake americano, tou falando do original inglês)…
(Lost ainda termina com a troca de cargo, deixando o pacato Hurley para tomar conta da ilha que equilibra a bondade do mundo. Há um subtexto maior aí, de que o mundo em que vivemos era regido por um personagem em plena vingança contra seu irmão – e que agora está nas mãos de um gordo gente boa.)
Assim, Lost não foi só uma história que ouvimos, mas que vivemos. Uma experiência coletiva que gerações seguintes apenas poderão imaginar – e comemorar quando, décadas no futuro, alguém explicar os números ou a segunda canoa ou quem é aquele povo dizimado pela mãe dos gêmeos ou contar a história dos DeGroot, entrando assim, para um cânone que começou quando ele nem havia nascido. Quando resumirem Lost em uma frase no futuro (”todos morrem no final” – mas esse não é o spoiler da vida?), a ironia por vir não dará conta das teorias imaginadas e da busca por referências, numa capa de livro, num recado por escrito, num gesto, que vivemos nos últimos seis anos. Lost foi como se pudessem medir a audiência de um seriado que era ao mesmo tinha a densidade dramática de um seriado novelesco (pense em A Sete Palmos) e tensão paranóica e pseudocientífica de uma série geeek (por exemplo, o novo Battlestar Galactica) segundo a segundo, mesmo após a exibição dos episódios. Mesmo após a exibição do último episódio.
Foi bom enquanto durou. Agora, como nos avisaram, é hora de deixar ir – e seguir em frente.
Vambora.
*Alexandre Matias é editor do caderno “Link”, do Estadão. Desde 1995, edita o blog/site Trabalho Sujo, referência em cultura pop.