Em tempos de luta contra problemas sociais, como o machismo e a homofobia, as séries e filmes têm um papel importante nessa quebra de tabus e estereótipos. Por esse e outros motivos, seriados como Glee e Orange Is The New Black, que se esforçam em quebrar paradigmas e fazem tanto sucesso com o público.
A série Modern Family, do canal aberto norte-americano ABC, começou prometendo ser um desses programas inovadores. Mas, no decorrer da trama, acabou se mostrando meio antiquada, repetindo clichês e estereótipos em vez de subvertê-los, como prometia.
Veja abaixo alguns fatores que tiram a “modernidade” da série:
1) O comportamento de Mitchell e Cameron como casal
Se você reparar, esse comportamento é quase inexistente na primeira temporada. Os dois não se abraçam, não se beijam, não andam de mãos dadas e nem qualquer outra coisa que um casal faz normalmente.
A maioria das cenas entre os dois envolve fofocas, musicais da Broadway ou fofocas sobre musicais da Broadway. Ok, é mais do que isso: eles também têm um monte de tramas baseadas em preconceitos de um contra o outro (Cam acha que Mitchell é esnobe e com vergonha dele; Mitchell acha Cam exagerado e com tendência ao melodrama).
Pra piorar a situação, os casais hetero agem normalmente, demonstrando carinho e até algumas insinuações sexuais. Depois de receber algumas reclamações de fãs, a série colocou a culpa dessa falta de afeto em Mitchell, ou melhor, no DNA frio dos Pritchett. No episódio The Kiss, da segunda temporada, Cam pergunta a Mitchell o porquê de o noivo não o beijar em público e, no fim do episódio, descobrimos que nenhum dos Pritchett é bom em demonstrar afeto.
No entanto, mesmo com as reclamações, pouca coisa mudou após seis temporadas. Os dois ainda têm um contato afetuoso mínimo e mantêm uma relação sanitizada e polida. Seria medo de ofender o público conservador com “gayzice” demais?
2) Belas, recatadas e do lar
As mães do seriado, Claire e Gloria, obedecem à maioria dos estereótipos das mulheres nos anos… 50? Elas não trabalham, são sustentadas pelo marido e fazem sozinhas os trabalhos domésticos. As histórias de Gloria estão quase sempre relacionadas a algo que Manny ou Jay estão fazendo, como se ela orbitasse em torno deles.
Ao longo da série, Claire deixa de ser dona de casa e vai trabalhar na empresa do pai, que se aposenta. No entanto, as tramas que surgem dessa mudança ainda são “domésticas”, com assuntos relacionados a fofocas, mal-entendidos e mentiras que ela arma para não parecer uma profissional menos capacitada.
É claro que um seriado de comédia precisa ser, antes de tudo, engraçado, daí as confusões. Mas por que é sempre Claire a neurótica atrapalhada?
3) A latina caliente
Gloria Delgado é uma mãe dedicada e uma boa cozinheira, além de ter várias outras qualidades. Mas ela também é uma colombiana nos EUA e a série não deixa o embate cultural passar despercebido. Na verdade, boa parte das piadas envolvendo a personagem de Sofia Vergara recorrem ao estereótipo do latino sangue quente, ou são sobre sua família difícil ou sobre seu país, retratado com uma violência anedótica surreal.
Essas piadas até funcionam bem no começo, mas, ao longo do tempo, ficam repetitivas e sem criatividade. Gloria é retratada como uma mulher forte e bem resolvida, mas por que não temos histórias mostrando isso? Já perdemos as contas de quantos episódios ela passa defendendo sua receita de molho de algum perigo…
4) Alex e os padrões
A personagem Alex Dunphy é uma das coisas que fez justiça ao nome da série nas primeiras temporadas: a pré-adolescente dedicada aos estudos e à futura carreira profissional, sempre se desentendendo com sua irmã Haley, que é exatamente o oposto. Apesar de ser uma “nerd” típica da TV, Alex parece achar conforto e felicidade em trabalhar pelo seu futuro, em vez de ficar pensando sobre a falta de popularidade.
Ao longo das temporadas, Alex vai mudando, se interessando mais pelos garotos e por roupas e maquiagens, ainda que de forma discreta. De repente, a coisa desanda: a personagem fica obcecada por um ex-namorado, discute com a irmã por causa de um entregador de pizza bonito e até usa como critério para escolher a faculdade a presença de um garoto que paquerou.
É meio como se a série dissesse: “ela é inteligente, mas na hora do vamos ver, o que ela quer mesmo é um homem”.
5) Haley e os padrões
As três crianças Dunphy são bem estereotipadas: Luke é o burro, Alex é a inteligente e Haley é a patricinha. Se fosse Friends, eles seriam Joey, Monica e Rachel.
Haley é bem previsível no começo da série: a menina bonita, festeira e burrinha, sempre pensando em algum garoto. Mas, para a nossa alegria, a série conseguiu dar uma profundidade incrível para o papel de Sarah Hyland (uma das melhores atrizes do elenco, na minha opinião). A personagem sai de casa, arruma emprego e começa sua vida adulta.
Num esquema dos roteiristas para manter a personagem próxima dos demais, Haley é expulsa da faculdade e volta a morar com os pais. Por um lado, esse evento serve para que ela descubra seu interesse por fotografia e moda e comece a trabalhar. Por outro, serve para que ela continue sendo um “estorvo” para a família, ainda vivendo às custas dos pais e sendo alvo dos clichês das primeiras temporadas.
Se você parar pra pensar, verá que, depois de tudo que Haley passou, ela merecia umas histórias melhores. Por que, depois de tudo, ela ainda é a fútil da família?
6) DeDe, a ex-esposa louca
A ex-esposa de Jay, mãe de Claire e Mitchell, aparece algumas vezes durante a série e, junto a ela, diversos comentários sobre como ela é louca e dissimulada. A verdade é que, se por um lado a DeDe retratada na série é bem maluca, por outro também é verdade que essa é a imagem que Jay tem dela.
Obviamente, Dede tem mágoas do casamento com Jay, mas nós nunca descobrimos direito o que ele fazia de errado – só sabemos que ela é louca. Além disso, essa imagem de ex-mulher perseguidora que tem “ciuminho” da atual esposa é tão machista! É difícil acreditar que uma mulher como DeDe exista fora da ficção, ou fora da cabeça de um homem como Jay.
Durante a gravidez de Gloria, na segunda temporada, um diálogo interessante entre ela e DeDe acontece. DeDe fala sobre como foi difícil criar os filhos com Jay fora o tempo inteiro, e esse é um dos poucos momentos em que as duas se entendem.
7) Gloria, a “gold digger”
Logo na primeira temporada, existe um conflito entre Claire e Gloria que acontece porque a filha de Jay acredita que a nova esposa do pai só está com ele por interesse. Ao longo do episódio, fica claro que Gloria e Jay de fato se amam, e esse amor é provado de várias formas durante a série.
Mas, se explicitam tanto esse amor verdadeiro, por que insistem nas piadas sobre Gloria usando o dinheiro de Jay? É no mínimo contraditório mostrarem todos os desafios que a colombiana enfrentou para criar o Manny e sobreviver na América e, depois, mostrá-la como uma mulher que adora aproveitar o dinheiro do marido.
Existem até alguns momentos bem simbólicos disso. No episódio Planes, Train and Cars, da terceira temporada, Jay e Gloria tentam partir para uma viagem, mas não conseguem. No final, ele revela que o motivo real pelo qual queria que ela fosse é para poder mostrá-la aos amigos. Gloria rebate: “Então tudo isso é porque você quer me exibir como um troféu? Por que não falou antes? Eu posso ser um troféu!” – e aí os dois partem para a viagem.
Apesar de suas contradições, o seriado tem enredos emocionantes e boas piadas. Além disso, os roteiristas sempre tentam deixar claro como todos os membros da família se amam, se apoiam e – na medida do possível – tentam entender suas diferenças. Falta só um tanto de ousadia.