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A aspirina

Vendido há quase cem anos, esse medicamento ainda não tem rival, apesar dos progressos da Medicina. E agora começa a ser usado na prevenção de doenças cardíacas

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 5 mar 2024, 14h33 - Publicado em 30 set 1988, 22h00

GIsela Heymann

Quando o químico alemão Felix Hoffmann (1868-1946) começou a se empenhar na busca de um novo medicamento, tinha, certamente, um bom motivo. Seu pai, um industrial da cidade de Württemberg, sofria de terríveis dores reumáticas. O ácido salicílico, remédio recomendado pelos médicos da época, chegava a aliviar seu sofrimento, mas, ao mesmo tempo, causava-lhe graves irritações no estômâgo – e tinha um gosto insuportável. Hoffmann, que havia estudado Química na Universidade de Munique, trabalhava nos laboratórios da Bayer desde 1894, e com a ajuda de seu chefe, o professor Heinrich Dreser, chegou, em 10 de outubro de 1897, à fórmula final do que viria a ser o remédio mais popular do nosso século – a aspirina. Desde então, ela pode ser encontrada na gaveta de primeiros socorros dos lares mais humildes da mesma forma que na sofisticada cabine da nave espacial ApoIo, que levou o homem à Lua. Segundo Charles Berry, então chefe do departamento médico da NASA, o AAS (ácido acetilsalicílico) foi eficiente na cura das dorés de cabeça e musculares dos astronautas, que dispunham de pouco espaço para movimentar-se.

Sabe-se que, há 2 400 anos, o grego Hipócrates, denominado “pai da Medicina”, já sugeria às mulheres uma infusão de folhas de salgueiro para aliviar as dores do parto. Na segunda metade do século XVIII, o religioso Edward Stone, andando pelos campos do interior da Inglaterra, resolveu mascar a casca da árvore, esquecida desde aquela época. Imediatamente, identificou seu gosto com o da quina, planta originária do Peru, conhecida por seus poderes “milagrosos” no combate à febre da malária. Na verdade, a casca do salgueiro não servia para curar malária, mas, de acordo com as experiências que Stone realizou em cinqüenta pacientes, ela era eficaz contra as dores do reumatismo, além de fazer baixar a febre. O estudo foi por ele apresentado à Real Sociedade de Londres em 1763. Seu princípio ativo, isto é, a substância responsável por tais efeitos, foi isolado apenas sessenta anos depois e chamado salicina. Avançando mais alguns passos, outro cientista, o italiano Raffaele Piria (1814-1865), acrescentou o ácido ao composto.

Derivado da salicina, o ácido salicílico já estava bem próximo às pequenas pílulas brancas que conhecemos hoje. Faltava apenas que Hoffmann anexasse outra substância, esta composta de carbono, oxigênio e hidrogênio, o acetil, e estava inventado um medicamento que, apesar de ainda causar alguns danos ao estômago, melhorou em muito o tratamento de febres, dores e até inflamações. Nessa g época, já se podia fabricar tal composto em laboratório, sem necessidade da matéria-prima vegetal, que em pouco tempo estaria extinta, tamanha a demanda. O definitivo substituto do amargo e inconveniente ácido salicílico foi apresentado à comunidade médica em 1898, durante um congresso em Wiesbaden, Alemanha.

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Circulava entre os 30 mil incrédulos participantes um folheto com nada menos de 200 páginas, no qual eram descritos todos os medicamentos produzidos pelo laboratório onde Hoffmann trabalhava. Pouco tempo se passou até que a aspirina fosse comercializada, primeiro em pó, depois em pequenos comprimidos, já que os grânulos eram pouco solúveis em água. A aceitação foi imediata. Em 1900 já havia aspirina nos Estados Unidos e, durante a Primeira Guerra Mundial, esse era um dos mais valiosos conteúdos dos pacotes que as famílias enviavam aos combatentes no front.

A estrondosa popularidade se deveu, sobretudo, à sua ação analgésica. Aliviar dores, principalmente de cabeça, parece ser, por enquanto, seu maior mérito. Não há quem negue o fato de que as pontadas, espasmos e pressões das cefaléias são, até hoje, das dores mais comuns – e irritantes – sentidas no mundo inteiro. Registrada em mais de setenta países, a aspirina passou a ser, em alguns lugares, sinônimo do ácido de Hoffmann, assim como Gillette quer dizer lâmina de barbear. No Brasil, porém, o nome pertence à Bayer. Segundo suas pesquisas, o país consome 1 bilhão de comprimidos de AAS ao ano – a média é de 7 por pessoa, um número ainda baixo se comparado à Europa, 20 comprimidos, aos Estados Unidos, 30, ou à Argentina, campeã em consumo, 40 unidades por pessoa ao ano.

Mas tamanha popularidade não foi suficiente para que os mecanismos de ação da aspirina fossem descobertos antes do começo da década de 70, na Inglaterra. Uma equipe chefiada pelo farmacologista Robert Vane (Prêmio Nobel de Medicina em 1982) descobriu a conexão entre aspirina e certos hormônios chamados prostaglandinas. Segundo o farmacêutico Andrejus Korolkovas, da Universidade de São Paulo, “as prostaglandinas são produzidas em todos os tecidos do corpo e têm funções diversas, que vão desde a mediação da sensação dolorosa até os processos da coagulação”. Vane descobriu que a aspirina inibe a formação desses hormônios.

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Quando o organismo apresenta algum ferimento, como um corte no dedo, as prostaglandinas são recrutadas para sensibilizar os nociceptores, terminações nervosas responsáveis pela recepção da dor. Impedindo-se que as prostaglandinas sejam fabricadas, impede-se, ao mesmo tempo, que a informação da dor seja captada pelos nociceptores e transportada até o cérebro.

Da mesma forma, quando bactérias atingem o organismo, um exército de glóbulos brancos é destacado para defender a região (SUPERINTERESSANTE n.10). Esses corajosos leucócitos produzem na batalha uma substância chamada pirogênio endógeno. Uma vez na circulação sanguínea, o pirogênio endógeno é distribuído por todo o organismo até atingir o sistema nervoso central, onde libera prostaglandinas.

Elas confundem o hipotálamo, região do cérebro que regula a temperatura do corpo, fazendo com que este faça uma leitura errada e detecte mais frio do que realmente existe – e providencie um aquecimento extra, na verdade desnecessário. A aspirina, bloqueando a ação das prostaglandinas, leva o hipotálamo a corrigir seu erro.

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Novas indicações, que começaram a ser investigadas bem recentemente, fazem da aspirina um remédio realmente polivalente. Estudos realizados em universidades americanas e inglesas confirmam que um comprimido de aspirina a cada dois ou três dias pode diminuir o risco de infarto, a doença que mais mata em países desenvolvidos.

O efeito da aspirina estaria ligado, mais uma vez, à síntese das prostaglandinas, agentes que também se relacionam com a agregação das plaquetas, responsáveis, por sua vez, pela coagulação sanuínea. Voltando ao exemplo do corte no dedo, o “tampão”, que aparece sobre o ferimento e impede que o sangue continue escorrendo, forma-se graças à ação daqueles hormônios. Como alguns tipos de infarto são devidos ao entupimento das artérias por uma espécie de coágulo, a aspirina age impedindo o processo. Segundo o professor Sérgio Henrique Ferreira, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, a eficácia do AAS foi comprovada em casos de reinfarto, já que pacientes que sofreram algum ataque cardíaco são mais facilmente observáveis – e são os que estão mais sujeitos ao risco dos coágulos. Para prevenir o ataque primário, “devem-se fazer estudos aprimorados”.

Para saber mais: SuperMundo

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