Algo está podre no Império
Herói da esquerda, Noam Chomsky diz que os EUA não conhecem o presidente que elegeram e têm de aprender com a democracia brasileira. Masse cala sobre a crise do governo Lula
Pedro Burgos
Quando tinha 10 anos, o americano Noam Chomsky assustou o professor ao escrever uma redação sobre a ascensão do fascismo espanhol. Gênio precoce, antes dos 30 já havia completado o pós-doutorado e lançado o livro que revolucionaria a lingüística – A Sintaxe da Linguagem. Mas o professor do prestigiado Massachusetts Institute of Technology (MIT) ficou conhecido mesmo por ser um dos mais ouvidos críticos da política americana, escrevendo artigos que denunciam de crimes de guerra a efeitos nocivos da globalização. Por isso, virou espelho de gerações de esquerdistas e “antiimperialistas” pelo mundo – numa pesquisa da BBC, foi a 4ª pessoa mais votada para chefiar um governo mundial, atrás de Nelson Mandela, Bill Clinton e do dalai-lama. Fã do MST e de Lula, Chomsky estava otimista há 3 anos com a vitória da esquerda no Brasil e os protestos antiguerra pelo mundo. Mas a reeleição de Bush foi um baque para o intelectual. Sobre o governo Lula, ele preferiu não opinar: “Não estou preparado para falar nada neste momento. Seria injusto com uma situação tão complexa”, disse, encerrando o assunto.
Em 2003, multidões foram às ruas protestar contra a invasão do Iraque. Dois anos depois, a situação no país continua crítica mas não há manifestações pelo mundo. O que aconteceu com essas pessoas?
Deve-se analisar isso com cuidado. O protesto contra a guerra foi sem precedentes na história ocidental. Nunca havia acontecido uma manifestação grande contra uma guerra imperial antes de ela ser lançada. Na época do neocolonialismo, nenhum francês saía às ruas para protestar contra a França quando ela invadia os países africanos. Então é preciso ver que aquilo foi algo totalmente novo. Sobre as pessoas, elas ainda estão aí. Quando uma guerra está para começar, faz sentido ter gente nas ruas. Depois as manifestações são isoladas. Mas poderiam ter acontecido outros protestos. Por exemplo, na invasão de Fallujah, em dezembro de 2004. Foi um crime de guerra brutal, mas que não foi recebido com uma manifestação popular massiva.
E por que as pessoas não reagiram dessa vez?
Elas não entenderam o que ocorria em Fallujah até ser muito tarde para responder. Em grande parte isso aconteceu porque ninguém sabia direito o que estava havendo lá. As notícias que chegam do Iraque são limitadas. Parte da culpa é do controle político sobre repórteres que viajam com as tropas americanas. Outra razão é que eles não podem ver o Iraque real. O correspondente que está lá vive num hotel-forte em Bagdá. Ele não pode sair andando livremente pelo país. Se saísse, veria o caos, uma tragédia humanitária. Essa foi uma das piores catástrofes da história militar – os nazistas tiveram muito mais facilidade para conquistar a Europa.
Você costuma afirmar que, ao contrário da atual administração, os americanos são em sua maioria favoráveis ao Protocolo de Kyoto, ao Tribunal Criminal Internacional, a entrar em conflitos armados apenas com o aval da ONU…
A favor de menos gastos militares, mais investimento social… Tudo isso. A opinião pública americana é bastante estudada por organizações respeitáveis. As últimas pesquisas mostraram que os dois partidos principais, o republicano e o democrata, e a mídia estão bastante à direita da população em geral em vários tópicos.
Então por que essas mesmas pessoas elegem um presidente que é contra tudo isso?
Elas não o elegeram. Não sabiam quem estavam elegendo. A maioria não tinha a menor idéia do que Bush representava. Eles compraram um candidato pelas propagandas que viram na TV. Se você compra um carro baseado apenas no comercial, não tem a menor idéia do que está adquirindo.
Você acredita, então, que o povo não sabe votar?
Apenas 10% dos eleitores dos EUA disseram que as suas escolhas eram baseadas nas idéias e planos de governo dos candidatos. O resto votaria no que a indústria chama de “qualidades” ou “valores”, que é o correspondente em política aos anúncios de creme dental. Ano passado, os espanhóis mostraram toda sua revolta quando 90% deles votaram por tirar do poder o governo que também os levou à Guerra do Iraque, e os fez alvo de ataques terroristas. Os espanhóis queriam que suas tropas deixassem o Iraque, assim como querem os americanos. A grande diferença entre os dois países é que na Espanha a opinião pública era sabida. A guerra foi o motivo do voto, algo inimaginável na democracia em deterioração que temos aqui nos EUA.
E o que intelectuais como você poderiam fazer para mudar a situação política do país?
Está claro o que deve ser feito, não só pela esquerda, mas por todos que acreditam na democracia: um sistema político em que a opinião pública seja responsável pela agenda política. Vamos comparar com o Brasil. Não quero sugerir que o Brasil seja uma democracia ideal – longe disso –, mas foi possível que o povo elegesse seu próprio candidato. Lula é alguém que veio do povo. O que foi a última eleição nos EUA? Duas pessoas apoiadas pelo mesmo dinheiro e a mesma indústria, que passaram pela mesma sociedade secreta que treina pessoas a serem líderes, pela mesma universidade de elite. Não há uma diferença clara entre os candidatos. Será triste se os EUA não conseguirem se tornar uma democracia pelo menos no nível do Brasil.
Pelo tom de suas críticas, algumas pessoas o têm chamado de antiamericano.
É normal em sociedades totalitárias. Quando um brasileiro fala mal da política externa praticada pelo governo ou faz alguma crítica, ele é chamado de antibrasileiro? Acredito que não. Provavelmente na época do regime militar isso era verdade, o mesmo vale para a União Soviética. É um mau sinal. Você não vê coisas assim em sociedades verdadeiramente democráticas.
E o que esses ataques contra você dizem sobre a atual situação política dos EUA?
Esses ataques são um sinal de desespero, já que eles não podem responder a argumentos e provas. Em parte é um esforço para minar e desacreditar os últimos focos de resistência, os defensores da liberdade e democracia nos EUA. As mesmas pessoas que escrevem livros contra mim estão apoiando um maior controle estatal sobre a educação. É um movimento bastante à direita, que quer regular o que pode ou não ser ensinado nas salas de aula. É um truque fascista, não tenha dúvida disso.
Noam Chomsky
• É filho de um casal de judeus da Ucrânia e Belarus e tem 77 anos.
• Diz receber todos os dias pelo menos 4 e-mails acusando-o de ser da CIA (serviço secreto americano), Mossad (serviço secreto israelense) ou da organização terrorista de Bin Laden, a Al Qaeda.
• Já escreveu mais de 70 livros e mais de 1000 artigos.
• É pai da chamada Teoria da Gramática Gerativa, considerado o maior avanço da lingüística do século 20.
• Se descreve como socialista libertário e diz ter simpatia pelo movimento anarquista.
• Há 19 livros em inglês escritos sobre a importância de seu trabalho. E um contra – The Anti-Chomsky Reader.