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As milícias de verdade

O inimigo agora é outro: as milícias. Veja como essa máfia nascida dentro da polícia e com tentáculos na política se tornou um Estado paralelo, e perverso, na periferia do Rio

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 22 mar 2011, 22h00

Texto Vinicius Cherobino

Instalado na Secretaria de Segurança Pública, afundado em problemas familiares e com uma vontade maluca de trabalhar, o coronel Nascimento faz o que todo caveira gostaria de fazer no seu lugar: aparelhar o Bope para expulsar os vagabundos da favela.

O serviço de Nascimento termina. Aparentemente corre tudo bem, e aí uma outra questão se impõe: quem vai mandar em um lugar ao qual o Estado ainda não chegou? No filme, não funcionou. Na realidade, também não.

No dia a dia do Rio, as milícias nasceram como um pelotão formado por policiais da ativa, ex-policiais civis e militares, agentes penitenciários e bombeiros. Elas agiram rápido. Dados do Núcleo de Pesquisa das Violências (Nupevi) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) apontam que 41,5% das 965 favelas no Rio estavam dominadas por milícias em 2008, contra 11,9% em 2005. No começo, elas foram saudadas como a volta da ordem às comunidades de onde nem o Bope tinha conseguido expulsar os traficantes. Os líderes das milícias ganharam prestígio. Não teve político de partido grande que não tenha aparecido, em algum momento, ao lado de algum miliciano.

Como as aparências enganam (e, para sua sorte, o Coronel Nascimento descobriu isso logo), o objetivo das milícias não é garantir a tranquilidade da comunidade. É o mesmo dos traficantes: ter lucro e poder. Para isso, os grupos paramilitares têm uma oferta muito especial para estabelecimentos comerciais ou para os próprios moradores. Chamada de “taxa de segurança”, a oferta é apresentada de duas maneiras: a primeira, via pura e simples extorsão, quando os milicianos ameaçam diretamente os moradores para conseguir o pagamento. A segunda é muito mais sutil e tenta coagir os moradores a pagar a cobrança via ameaças veladas. Imagine a cena: um grupo fortemente armado bate na porta da sua casa (ou loja), oferece segurança por uma taxa mensal e, a todo momento, lembra que são policiais, que estão matando os bandidos, “botando ordem”. Você diria não para eles? Os moradores da zona oeste do Rio também não. De maneira semelhante ao popular flanelinha que “guarda” os carros estacionados nas ruas, a milícia oferece proeção contra os danos que ela mesma pode causar.

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E a proteção é apenas parte do esquema. Aos poucos, as milícias passaram a cobrar comissões sobre a venda de imóveis e terrenos negociados pelos moradores, a dominar o transporte irregular das mototáxis e vans, a controlar a instalação de TV a cabo pirata (o “gato net”) e de máquinas caça-níqueis. Outro ramo lucrativo é o monopólio da venda de itens como cocos verdes, botijões de gás e crédito pessoal (com a vantagem do baixo risco de inadimplência – atraso significa morte). Ao revender os produtos e serviços superfaturados, as milícias viram os seus lucros, armas e poder se multiplicar.

Os crimes praticados por essa máfia não se restringem a esse leque. Como os traficantes, os milicianos espancam, torturam e matam pessoas que tentam resistir. Os ataques não acontecem apenas em locais afastados. Há relatos de crimes de milicianos em áreas com muitas pessoas, durante o dia e sem preocupação nenhuma em esconder a sua identidade. Afinal, a matança faz parte do trabalho de “proteger” a comunidade. Exatamente como no filme.

Aliás, se alguém notar algumas semelhanças com a máfia italiana, não será coincidência. A atuação das milícias não se restringe ao tiroteio. É fácil encontrar milicianos envolvidos em atividades legais, com o intuito de lavar dinheiro. E, o que é mais preocupante, envolvidos com política. O primeiro passo foi o chamado curral eleitoral – obrigar os eleitores das comunidades a votar nos candidatos dos milicianos e a proibir políticos rivais de fazer campanha na região.

Aos poucos, os próprios milicianos entenderam que melhor do que apoiar um candidato era ser o candidato. Então, passaram a investir em suas próprias campanhas. Muitos foram eleitos. Com o cargo público, conquistaram cada vez mais poder ao lotear cargos entre milicianos ou pessoas favoráveis às milícias, ganharam status e se tornaram mais respeitáveis no asfalto da cidade. Afinal, seus “representantes” foram eleitos, ainda que com votos de curral eleitoral.

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“Esse grupo já estava dentro do Legislativo e tinha apoio irrestrito do Executivo. A milícia é o poder paralelo e vai investir sempre contra o Estado”, diz Cláudio Ferraz, delegado titular da Draco, a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais, responsável pela prisão de mais de 400 milicianos. Com dinheiro e fortemente armadas, essas tropas começaram a usar o poder político recém-adquirido para ensaiar a expansão. E, aí, a vida encontra novamente a arte. Como no filme, as milícias estavam prontas para tomar o “sistema”, como o Coronel Nascimento classifica a relação entre políticos e policiais corruptos com a milícia.

O primeiro pedido de CPI PARA investigar a situação ficou arquivado na AssemblEia Legislativa do Rio (Alerj) durante um ano e meio.

Só depois que jornalistas do diário O Dia foram presos e torturados por milicianos em 2008 – e só conseguiram escapar com vida por terem conseguido enviar uma mensagem pelo celular dizendo onde estavam – a CPI das Milícias foi instaurada. Mas, se no filme são apontados apenas 3 políticos ligados aos criminosos (o governador, o secretário de Segurança e o Deputado Fortunato), a quantidade de milicianos com cargos públicos é muito maior na vida real. A CPI liderada pelo deputado Marcelo Freixo indiciou nada menos do que 226 pessoas após 5 meses de investigação. Gente, aliás, com muito dinheiro. Josinaldo Francisco da Cruz, o Nandinho, foi acusado de ligação com a milícia de Rio das Pedras, em Jacarepaguá. Em depoimento, ele identificou milicianos da região que o ameaçavam de morte. Em 2009, Nandinho foi assassinado no condomínio onde morava na Barra da Tijuca, uma das áreas mais caras da cidade.

Porém, um dos casos mais famosos é o do ex-deputado estadual Natalino Guimarães (ex DEM-RJ), eleito em 2006 com 50 mil votos. Natalino foi acusado pela CPI de chefiar a Liga da Justiça, um dos maiores grupos paramilitares em atividade, que controlava a região de Campo Grande, zona oeste do Rio. Ele renunciou ao cargo, foi preso e condenado a 10 anos atrás das grades por formação de quadrilha armada. Além dele, seu irmão, o vereador Jerônimo Guimarães Filho (PMDB-RJ), o Jerominho, também foi condenado a 10 anos e está na cadeia. Completam o álbum de família seu sobrinho, filho de Jerominho, o ex-policial militar Luciano Guinâncio Guimarães, também detido por envolvimento com a milícia, e a outra filha do vereador, Carmen Glória Guinâncio Guimarães, a Carminha Jerominho, eleita vereadora em 2008, mas impedida de assumir o mandato por suposta arrecadação ilegal para a campanha eleitoral. Outro que faria parte da milícia é o ex-policial militar Ricardo Teixeira Cruz, o Batman.

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A milícia Liga da Justiça não é a única que teria vinculação com políticos. O vereador Cristiano Girão (PMN) foi acusado de envolvimento com a milícia da Gardênia Azul, em Jacarepaguá, e foi preso. Outro famoso político acusado de ligação com as milícias é Álvaro Lins. Ele foi chefe da Polícia Civil no estado durante o governo de Anthony Garotinho e teve o seu mandato de deputado estadual cassado após o Ministério Público Federal denunciar a sua suposta participação em esquemas de corrupção passiva, de formação de quadrilha e de enriquecimento ilícito. Lins também foi acusado, dessa vez pela Polícia Federal, de ter ligações com as milícias e de ter buscado apoio dos grupos paramilitares para vencer a eleição em 2006.

Ainda que muitos envolvidos tenham sido presos, há outros que continuam livres. Jorge Babu, deputado estadual do Rio de Janeiro (PTN), foi condenado a 7 anos de prisão em processo que o acusa de integrar uma milícia na zona oeste. Já Luiz André Deco (PR) deve assumir uma vaga de vereador na cidade do Rio de Janeiro mesmo após ter sido indiciado pela CPI. Isso sem falar nos vereadores envolvidos com os grupos paramilitares de Câmaras Municipais de cidades menores ao redor do Rio.

Por mais que a prisão de líderes tenha diminuído o poder de certas milícias, isso não significa que as áreas foram retomadas pelo Estado. O que foi criado foi um vácuo de poder. No caso da Liga da Justiça, por exemplo, o enfraquecimento do grupo paramilitar deu chances para outra milícia crescer – o Comando Chico Bala. “É melhor 1 única milícia grande ou 4 médias? As autoridades não podem baixar a guarda”, afirma Claudio Varela, promotor e coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público.

Para piorar, boa parte das milícias de hoje não pode nem se gabar de ter livrado favelas do tráfico. Vário milicianos deixaram de lado o discurso linha-dura contra as drogas e passaram a tolerar traficantes nas áreas que dominam – cobrando sua porcentagem nos lucros, claro. Afinal, isso é tudo o que interessa.

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Filme
Não há diferença entre os milicianos de Tropa 2 e os bandidos de farda da vida real. Nos dois casos, eles cobram taxas mafiosas, matam durante o dia e conseguem eleger deputados.

A economia das milícias
Os policiais corruptos conseguiram eleger deputados por causa de uma máquina que fazia milhões explorando os moradores das favelas cariocas. Rio das Pedras é um desses exemplos.

A comunidade
• Tinha 12 mil imóveis e rendia por mês para os milicianos em 2008 R$ 1milhão
• R$ 10 e R$ 50 é a taxa de segurança
• Entregadores de compras pagavam um valor fixo de R$ 20 os camelôs, de R$ 30
• As milícias cobravam R$ 39 por botijão de gás.
• Os donos de transportes alternativos pagavam de R$ 270 a R$ 325 (por semana)
• O “GATO NET”, sinal de TV a cabo roubado, saía por R$ 18
• A taxa mensal de segurança dos comerciantes ficava entre R$ 50 e R$ 200

Dilo Pereira Soares Júnior, major da PM do Rio e acusado de chefiar a milícia de Rio das Pedras, tem patrimônio de R$ 7,2 milhões

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Fonte: Ministério Público do RJ

O jeitão truculento de Fortunato inspirado no de Wagner Montes, apresentador de programas policiais no Rio e deputado estadual.

Filme
A CPI das Milícias da realidade só saiu do papel depois que uma equipe de jornalistas de O Dia foi sequestrada, em 2008. Ao contrário do que aconteceu no filme, eles escaparam com vida. Graças a um SMS.

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