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Coleções: passatempo ou obsessão?

O sujeito que guarda 3.240 sacos de vômito de avião, e outras coleções singulares. Entenda a ciência do colecionismo.

Por Leandro Narloch
Atualizado em 26 set 2019, 19h14 - Publicado em 31 mar 2004, 22h00

Sacos de vômito de avião não têm valor algum. Mas não tente convencer disso o holandês Niek Vermeulen. Ele não sofre enjoos terríveis durante voos, e sequer tem medo de avião: Vermeulen é um colecionador. Guarda 3.240 sacos de vômito – vazios, pelo menos a maioria deles – que podem dar-lhe o título de maior colecionador do mundo na categoria. Sim, existem outros nessa atividade, assim como há fanáticos por selos ou qualquer outra coisa.

Desde que o ato de colecionar deixou de ser restrito a reis e aristocratas, há cinco séculos, é difícil dizer o que ainda não virou coleção. Figurinhas, fetos, latinhas de cerveja, pedras de rim, bolacha de chope, jóias, embalagens usadas, defuntos: nada escapou dos fiéis seguidores da tradição de juntar e guardar bugigangas.

Afinal, por que alguém resolve gastar dinheiro com coisas que não vai usar? Por que é preciso possuí-las, e não só saber que elas existem? Apesar de não colecionar objetos, o historiador alemão Philipp Blom coleciona teorias para explicar essa mania. Seu livro Ter e Manter: Uma História Íntima de Colecionadores e Coleções é um álbum de histórias grotescas e engraçadas dos primeiros e maiores colecionadores.

Para Blom, o hábito de juntar quinquilharias tem justificativas históricas, filosóficas e psicológicas – todas tratam o colecionismo como algo mais que um simples passatempo de adolescentes. Tem a ver com sentimento de grupo, competição, medos, fracassos, desejos não realizados, vontade de se isolar num mundo e ser capaz de comandá-lo. Colecionar, para ele, também é uma tentativa de escapar da morte.

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“Um mundo diferente, mais significativo, mais ordenado, pode nos falar a partir de coisas humildes, como sapatos ou garrafas, autógrafos ou primeiras edições, os quais, em seu agradável arranjo, em sua estrutura e variedade, nos falam da beleza, da segurança”, afirma o historiador. “Cada objeto que tanto desejamos é, de fato, um atributo daquilo que desejamos”. Ou seja: coleções ajudam a nos livrarmos da impotência de não coordenarmos inteiramente nem mesmo a nossa vida.

Não pense que todo colecionador é um sujeito mal-amado, reprimido, solitário. Colecionar quando criança tem lá suas vantagens. O hábito nos ensina a organizar e controlar as coisas, decidir a vida e a morte de cada objeto. Eis uma boa forma de aprender a tomar decisões e a lidar com o mundo exterior.

Quem passa da adolescência e continua colecionando pode ter sido fisgado pelo saudosismo. Muitos colecionadores voltam ao hábito depois de adultos para reviver o tempo que jogavam bafo com o vizinho ou iam de mãos dadas com o pai comprar brinquedos. “Virei colecionador por saudades”, conta o ítalo-brasileiro Antonio Apuzzo, dono de 6 750 carrinhos de brinquedo, que lhe valeram uma participação no Livro Guinness dos Recordes de 1997 como o maior colecionador de miniaturas do mundo. “Gosto muito de lembrar que ia com meu pai para o centro da cidade comprar os carrinhos”, diz ele, que usa três cômodos de sua casa para guardar os brinquedos.

Brinquedos? Bem, as peças de Apuzzo não são para brincadeiras. A regra número 1 de um colecionador de respeito é não usar o objeto para seu fim primário. As latas de uma coleção de cervejas, por exemplo, devem estar cheias – embora não haja motivo lógico para isso. Para Blom, esse é um dos lados mais dramáticos do colecionismo: ao tentar recriar mundos passados, o colecionador destrói sua coleção para o mundo. “Tudo o que colecionamos, seja o que for, precisamos matar”, afirma. Ele não se refere só a borboletas, besouros ou animais empalhados.

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O colecionador, no entanto, não enxerga seus badulaques como objetos mortos. Pelo contrário: quando um selo vai para um álbum, passa a ser visto com olhos mais atenciosos e brilhantes. Um defeito no corte ou na impressão, que passaria despercebido por pessoas comuns e carteiros, passa a ser valorizado. Em coleções de objetos produzidos em massa, imperfeições dão à peça uma individualidade e um preço diferenciado.

Colecionar para descobrir

É bem provável que o homem pré-histórico já tivesse, num cantinho da caverna, uma coleção de crânios como talismãs.

Sabe-se hoje que já existiam colecionadores na Roma antiga e até no Egito – o faraó Tutancâmon tinha o seu acervo de cerâmicas finas. Mas o colecionismo só saiu das mãos dos reis quando a visão medieval do mundo se enfraqueceu, no século 16. Depois de perceber que poderia perseguir a eternidade neste mundo, e não no céu, o homem passou a prestar mais atenção em si mesmo – uma onda de auto-retratos invadiu a Europa – e nas coisas da natureza.

É aí que entra a ciência, e, na garupa, o colecionismo. “Gabinetes de espécies naturais foram os principais locais de pesquisa e de divulgação científica antes dos laboratórios”, afirma Silvia De Renzi, historiadora da ciência da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Para analisar e conhecer a natureza, era preciso guardar e comparar tudo que havia de estranho pelo mundo. “As coleções foram fundamentais para a organização da natureza como fazemos hoje”, diz Silvia.

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Na euforia de conhecer a natureza e juntar objetos curiosos, os nobres enviavam marinheiros mundo afora para adquirir tudo que fosse digno de nota. Os portos de Roterdã e Amsterdã enchiam-se de coisas maravilhosas e exóticas: conchas, moedas estrangeiras, múmias, artefatos chineses. Essas expedições fizeram a Europa conhecer tecnologias diferentes e se modernizar. Sem elas, hoje, até mesmo a paisagem de alguns países seria diferente. Destacado para encontrar plantas exóticas pelo planeta para enfeitar o palácio de Buckingham, o jardineiro inglês John Tradescant percorria o mundo de carona em navios caça-piratas no século 18. Na volta, levava ao país espécies como a castanha, a tulipa e o limão.

O conhecimento científico, na Idade Moderna, engatinhava. Os colecionadores expunham “achados da natureza” que hoje pareceriam puro estelionato. Uma das mais badaladas coleções da Itália, a exposição de Ulisse Aldrovandi, chegou a ter 20 mil objetos, mas apenas um deles era responsável por atrair estudiosos e nobres de toda a Europa no século 14: um corpo de um filhote de dragão. Baseado em sua “relíquia”, o colecionador escreveu o tratado Dracologia, sete tijolões em latim sobre a complexa anatomia do bicho – que não passava de um prosaico lagarto. Seria injusto rotular Aldrovandi de vigarista: ele era um cientista honesto, levantando hipóteses sobre o mundo. Naqueles tempos, outras coleções da Europa também estavam repletas de chifres de unicórnios.

Não demorou muito para os curiosos descobrirem o corpo humano. Acervos de respeito, nos séculos 16 e 17, tinham que ter pelo menos uma cabeça ou um feto – o ideal era um corpo inteiro. Nessa seara, ninguém superou o imperador russo Pedro II, o Grande. Conhecido por surrar quem se recusasse a frequentar suas festas (e por incendiar casas para se acalmar), Pedro também era dado ao colecionismo. Um dos seus temas preferidos eram dentes – que estão expostos até hoje: “Dentes extraídos pelo imperador Pedro de diversas pessoas”. Seu acervo tinha outro diferencial: gente viva. Um hermafrodita, por exemplo, recebia salário para somente existir e não se distanciar do castelo. A peça predileta do czar era Foma, um anão. Além da baixa estatura, Foma tinha só dois dedos em cada mão e pé, parecidos com garras.

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Colecionar para classificar

À medida que os fenômenos naturais eram explicados, guardar esquisitices perdeu a graça. No século 19, a nova ordem era catalogar tudo: todos os elementos químicos, todos os seres vivos, todas as partes do corpo humano. As áreas temáticas foram divididas – e assim surgiram os colecionadores especializados. Os colecionadores de tudo passaram a manter coleções de borboletas e só borboletas, pedras e apenas pedras, selos e somente selos.

Um dos últimos e mais famosos dos “colecionadores de tudo” foi o químico e médico inglês Hans Sloane. Sua memorabilia incluía besouros, aranhas, cobras e borboletas, além de 268 focas, 756 cálculos renais e o corpo de uma criança com quatro braços e quatro pernas. Mesmo quando atraíam curiosos de toda parte, coleções assim se tornavam um trambolho com a morte do dono. O destino de coleções como a de Sloane acabava sendo uma instituição que também estava na moda: o museu.

Quando morreu, em 1753, Sloane deixou seu acervo para a Real Sociedade de Londres – a doação resultou no nascimento de nada menos que o Museu Britânico, hoje um dos mais importantes do mundo. Outro museu europeu, o Ashmolean, em Oxford, nasceu da arca de Tradescant – o homem que levou a tulipa e a castanheira para a Inglaterra. Nessas novas galerias as coleções eram organizadas de modo sistemático – segundo o recém-inventado sistema de nomenclatura das espécies em latim, que usamos até hoje.

Cem anos depois, as coleções dos museus seriam usadas pelos países colonialistas – Inglaterra e França, notadamente – para afirmarem sua força. A ordem era encher os museus com relíquias pilhadas de nações como o Egito: as peças seriam uma prova da subordinação dos países conquistados. Assim nasceram as coleções de artefatos egípcios no Museu do Louvre, em Paris.

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Durante todos esses séculos, a vontade de juntar bricabraques também esteve ligada aos objetos sagrados. O problema é que aquela que seria a principal relíquia cristã – o corpo de Cristo – não existia. Segundo o próprio cristianismo, Jesus havia subido aos céus para sentar-se à direita do Todo-Poderoso. Sem o tesouro-mor, os colecionadores logo se voltaram para objetos como a cruz, o santo sudário e os pregos que teriam crucificado Jesus. Apesar de terem sido usados só três pregos (um em cada braço e outro nos pés cruzados), 29 cidades da Europa já afirmaram possuir uma das peças que fincaram o mártir na cruz. Também perambulavam pela Europa dentes de Cristo, cabelos de Cristo e fios da barba de Cristo. Gotas do leite dos seios da Virgem Maria eram exibidas em 69 igrejas europeias.

Coleções para todos

O costume de venerar objetos sagrados continua com toda força. Nós apenas trocamos de figurinhas. Um rapaz de 16 anos pode não dar a mínima para o Santo Sudário, mas nada garante que ele não se emocione com uma camisa do Neymar. “Pouca gente é imune ao culto aos antepassados e à magia física no tempo”, afirma Blom. Quanto mais intimidade o colecionador quer ter com a celebridade morta, mais íntimos são os objetos que procura guardar como talismãs. Você pode se perguntar o que o culto a relíquias cristãs tem a ver com um álbum de cartões telefônicos. Mas o impulso que move as duas coleções é o mesmo: resgatar um mundo que não existe mais e, se possível, ser capaz de controlá-lo.

Se a motivação permaneceu imutável por séculos, não se pode dizer o mesmo do perfil dos colecionadores. A partir do século 20, a produção em massa possibilitou que coisas antes restritas a reis – do papel higiênico perfumado a um copo de vidro – fossem acessíveis a toda a população. Antes, quem quisesse colecionar tinha de viajar pelo mundo e encontrar espécies raras de borboleta. Hoje, bugigangas coloridinhas, engraçadinhas, fofinhas e quase sem valor são reapropriadas: em vez de ir para o lixo, vão parar na gaveta ou na prateleira de gente que gosta de comprá-las, não tanto de usá-las. Se a bugiganga for produzida em edições limitadas, como cartões telefônicos, cairá no gosto de colecionadores facilmente.

Panfletos, pacotes de leite e embalagens de comida ganham valor conforme saem de moda. Décadas depois, são raridades: não há exemplo melhor do cotidiano de uma época que seu próprio lixo. O inglês Robert Opie, que guarda cerca de 500 mil embalagens, de caixas de televisão a caixas de fósforo, começou sua mania de juntar coisas quando comia salgadinhos. “Pensei no enorme pedaço de história social que eu estava prestes a jogar fora”, conta ele, que vive de vender ou alugar sua coleção para a produtores de filmes de época.

Objetos aparentemente banais podem atingir valores absurdos para quem não é do ramo. Um exemplar do primeiro selo brasileiro, impresso em 1843, chega a valer hoje 2,3 milhões de reais. O alto custo da brincadeira não intimida compulsivos sem dinheiro. O americano Stephen Blumberg, por exemplo, foi preso em 1990 por ter roubado 24 mil livros raros de 268 bibliotecas. Ele se defende: roubou não para vendê-los, mas porque “precisava tê-los”. Um colecionador, mesmo quando obtém uma raridade, não sente seu desejo atenuado. Na verdade, nada é mais triste que pensar em completar uma coleção. Quando as mãos seguram a nova aquisição, os olhos já vislumbram a próxima peça.

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