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E se você pudesse gravar seus sonhos?

Se essa tecnologia surgisse, descobriríamos que nosso inconsciente tem muito mais caos e tensão do que podemos imaginar. Foi o caso do consumidor insatisfeito da história abaixo

Por Amarílis Lage
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 27 jan 2015, 22h00

 

Aos 15, ele compôs uma canção que mudaria a história do rock. Melodia rica, letra genial, refrão para o estádio repetir. Só que, quando ia assinar o contrato milionário com a gravadora… ele acordou. Aos 22, escreveu o poema perfeito para conquistar Lili. Mas as rimas sumiram assim que se levantou para pegar papel e caneta. E Lili casou com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história. Aos 34, encontrou a fórmula do sucesso, um negócio inovador que o enriqueceria, mas… Pois é, você já deve ter entendido: foi um sonho.

Aos 39, sem fama, sem dinheiro, sem amor e com uma gastrite de estimação, ganhou uma insônia. Virava as noites em frente à TV, em busca de um sonífero.

“Quero levar você a uma viagem onde tudo é possível, onde você pode ser e fazer o que quiser”, disse a moça na tela plana – curiosamente parecida com Lili. “Quero levar você para viajar no seu subconsciente”, continuou ela, com uma piscadinha. “Conheça o Top Dream Recorder, capaz de gravar os sonhos do usuário e exibi-los depois, como um filme. Ligue agora para…”

Ele ligou. Dois dias depois, recebeu a caixa da Onírica Ltda, leve como se estivesse vazia. Dentro, apenas uma tiara com sensores, um cabo USB e uma tomada. O manual veio mal impresso, mas ele logo descobriu como funcionava e se jogou na cama para um teste.

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Um carneirinho, dois carneirinhos, três carneirinhos, quatro carnei…

Acordou vibrante, animado para conferir seu “filminho”. De tiara, ligou o cabo na TV, clicou em “reproduzir sonho” e… nada. Ligou para o SAC da Onírica.

“Em que posso estar lhe ajudando, senhor?”

“Meu Top Dream Recorder veio com defeito.”

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“Qual o suposto defeito que o senhor alega?”

“Seguinte: tive um sonho simples, agradável, desses em que a gente está voando. Mas o que apareceu é completamente diferente.”

“Entendo, senhor. O que pode estar ocorrendo é que os clientes geralmente só se lembram do final do sonho. Isso porque a serotonina, neurotransmissor que vai estar registrando suas memórias, só volta a ser produzida no fim do sono. É exatamente por esse motivo que nosso aparelho é revolucionário: ele mostra aquela parte do sonho que as pessoas esquecem.”

“Moça, deixa eu explicar: esse sonho não é meu. Não tem nada a ver comigo. São imagens perturbadoras: ruínas, monstros, violência. Eu sou um cara supercalmo. Nunca briguei com ninguém! Além disso, me mostra no trabalho sem calças! Exijo ressarcimento.”

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“Muitos clientes relatam essa surpresa. O fato é que os sonhos também servem como válvula de escape para desejos e emoções reprimidas, como raiva, medo, inveja. O senhor está estranhando porque, assim que desperta e busca reconstruir o sonho, ativa uma autocensura, para adequar o sonho à sua autoimagem.”

“Quem disse?”

“Novos estudos, senhor.”

“Então, estudiosa, me explica esta: no sonho, eu usava umas galochas que tive na infância, o chuveiro pingava café, e meu chefe era ao mesmo tempo um coelho e um mordomo. Ou seja, uma bagunça. O que isso tem a ver com desejos reprimidos?”

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“Tem a ver com o córtex pré-frontal, senhor.”

“Oi?”

“Ele gerencia o pensamento racional. Como fica menos ativo durante o sono, informações de partes distintas do cérebro acabam se misturando: memórias de infância e sensações ligadas ao seu emprego atual, por exemplo. O sonho é seu, pode ter certeza.”

Enquanto falava ao telefone, ele revia a gravação. Aquilo tudo era dele? Era ele? Será que, após tantos sonhos desperdiçados, seu subconsciente estava dominado por caos e vingança? E sem calças? Como viver agora, depois de encarar seus pesadelos?

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“Ainda na linha, senhor?”

“Sim, sim. Desculpe, me distraí.”

“Sem problema. Eu estava esclarecendo que o córtex pré-frontal também está associado às memórias de curto prazo. É por isso que, no sonho, você não conseguiu ler o manual de instruções e os rostos mudam. Aí seu chefe vira um coelho, depois se parece com o J. Pinto Fernandes.”

“Como você sabe do J. Pinto Fernandes?”

Acordou assustado e levou às mãos à cabeça: nem sinal da tiara. Tudo um sonho. Parece que foi um sonho bom, agradável. Que boa ideia essa de máquina para gravar sonho, será possível construí-la?
“Agora eu enriqueço!”

Ilustração: Fábio Zimbres

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