Em defesa das cotas
Em compensação, cruzei com centenas de negros limpando as salas, cuidando dos jardins da universidade, servindo café e atuando em outros serviços em tese menos qualificados.
Wilson da Silva
Estudo na Universidade de São Paulo (USP) desde 1985. Sou formado em História, sou mestre em Cinema e, atualmente, faço doutorado na mesma área. Centenas de outros já trilharam esse percurso. O que poderia fazer desse caso algo digno de nota nesta revista?
Provavelmente uma coisa: sou negro.
Para a maioria dos leitores, minha história é um exemplo de que sempre “é possível chegar lá”, desde que haja esforço e determinação. Eu não vejo as coisas assim. Sou uma exceção às regras perversas que regem a vida de negros e negras neste país.
Isso ficou evidente desde o primeiro dia em que cheguei à universidade. Fui praticamente o único estudante negro nas salas de aula. E nunca tive um professor negro. Em compensação, cruzei com centenas de negros limpando as salas, cuidando dos jardins da universidade, servindo café e atuando em outros serviços em tese menos qualificados. Seriam essas tarefas o indício de que os negros são piores do que os brancos? Evidentemente não. Apenas revelam o fato de que o Estado e a sociedade no Brasil continuam impedindo que os negros construam uma história diferente. Mesmo depois da abolição.
Como podemos ser livres se, no supermercado ou nas portas giratórias dos bancos, somos tratados como “suspeitos até que se prove o contrário”? Como conseguir oportunidades profissionais numa sociedade que nos vê como seres inferiores, cidadãos de segunda linha?
A resposta a essas perguntas é complexa e passa inevitavelmente pela criação de uma política de cotas para os negros nas universidades, no serviço público e até na publicidade. Hoje, ser negro significa ocupar um papel pre-determinado na sociedade. E mais: quem operou essa discriminação foi o próprio Estado e seus representantes. Foi a própria sociedade brasileira, por meio de suas instituições ou com o apoio delas, que seqüestrou meus ancestrais da África e os transformou em um insumo barato. Assim como foram as políticas estatais que, após a abolição, inviabilizaram toda forma de reparação oficial pelos quase 400 anos de escravidão, jogando milhões de pessoas das senzalas para as ruas, da escravidão para o desemprego ou para as garras de patrões que nunca deixaram de tratá-las como seus “negrinhos” e suas “negrinhas”.
Foi também o Estado brasileiro que tentou nos transformar em uma “Terra Nostra” embranquecida, já que, como pregavam diversos intelectuais no final do século XIX, o Brasil não seria desenvolvido enquanto fosse habitado por negros. Mais tarde, esse racismo foi disfarçado em nome de uma falsa democracia racial, cujo único objetivo tem sido procurar conter a revolta de negros – tentando fazer crer que aqui não há racismo.
Para cada negro que conquista algum espaço no mercado de trabalho, milhões vagam na mais completa desesperança. De quem é a culpa por essa situação?
Por isso, defendo a política de cotas, uma forma legítima de fazer com que o Estado brasileiro assuma que é o principal responsável pelo racismo no país e tome medidas efetivas para sanar seus efeitos. Não tenho a mínima ilusão de que as cotas – seja na universidade, no serviço público ou na publicidade – signifiquem a resolução definitiva dos problemas enfrentados pelos negros. Sei que esse sistema é um paliativo necessário para que seja possível, pelo menos, começar a superar séculos de opressão e exploração que foram impingidos aos negros pela sociedade brasileira.
Essa política não é um favor. Muito menos uma ação que irá desqualificar o negro ou a negra que porventura ingresse na USP, por exemplo, através desse sistema. Não se trata, portanto, de um empurrãozinho. É um dever do Estado reparar, de todas as formas possíveis, a sua ação racial deletéria realizada ao longo de cinco séculos.
Não aceito o argumento de que o sistema de cotas ameaça a qualidade de ensino, como dizem os opositores da idéia dentro da universidade. Não acredito que o filtro que é colocado hoje na porta da universidade seja uma garantia de qualidade. É, sim, uma garantia de homogeneidade social. Uma tentativa de fazer da universidade um espaço exclusivo para a elite.
Por fim, defendo que as cotas sejam aplicadas de acordo com a presença populacional de negros e negras em cada região. Em São Paulo, por exemplo, os negros deveriam ocupar cerca de 31% das vagas. Em Salvador, na Bahia, eles teriam direito a 80%. Eis aí uma pequena parcela da enorme dívida que nunca nos pagaram.
Coordenador executivo do Núcleo de Consciência Negra na USP
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Frase
“É um dever da sociedade brasileira reparar cinco séculos de discriminação”