Filosomática ou Matelosofia?
Se você prestar atenção, verá que a história da Matemática está recheada de filósofos.
Luiz Barco
Estive recentemente na cidade de Catanduva, no interior de São Paulo, para falar aos alunos e aos professores na Semana da Matemática. Ali, conheci uma jovem estudante que logo, logo será professora de Matemática mas que, confessou-me, tem a Filosofia como seu primeiro amor. Inquieta, a moça quis saber por que os grandes filósofos não haviam se notabilizado também como matemáticos.
Nada mais falso, retruquei prontamente. Ela estava tocando numa de minhas mais renitentes rabugices. Tenho insistentemente dito, em todas as oportunidades que encontro, que quem é capaz de extasiar-se com uma música, uma pintura ou ainda uma escultura, quem é capaz de expressar-se com clareza, admirar um poema ou uma bela apresentação teatral faz, ainda que mentalmente, matemática da melhor qualidade, pois fazê-la é mais do que passar um x de um lado para outro do sinal de igual.
Recomendei que nossa jovem colega apanhasse um exemplar do livro História da Matemática, de Carl B. Boyer, cuja primorosa tradução para o português, da professora Elza F. Gomide, foi editada pela Edgard Blücher Ltda, junto com a Editora da Universidade de São Paulo, em 1974. Lá, ela poderia sentir, ao percorrer os quatro primeiros capítulos, que muitos homens notáveis que antecederam Pitágoras (século VI a.C.) aparecem quase que indistintamente em obras de História da Filosofia e da Matemática.
No quinto capítulo, o livro de Boyer se dedica a explicar as idéias de Anaxágoras (500-428 a.C.) de espírito mais prático e forte inclinação metafísica, a visão materialista do mundo de Demócrito (460-370 a.C.) e as análises mais idealistas, tanto da ciência como da filosofia, de Pitágoras. Talvez nossa jovem encontre alguma ressonância de suas idéias no início do capítulo 6, sobre Platão (428-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), pois lá, no diálogo em que Platão descreve as últimas horas de Sócrates (470-399 a.C.), infere-se que profundas dúvidas metafísicas impediam que este último se dedicasse a contento à Matemática. Por isso, Boyer diz que a influência dele na Matemática foi ínfima, senão negativa. O que, entretanto, não impediu que seu admirador e discípulo Platão se tornasse inspiração para a Matemática do século IV a.C.
Se não nos contentarmos com todos os indícios citados, podemos lembrar ainda a influência que o matemático Arquitas (490-360 a.C.) teve sobre seu amigo Platão, a quem visitou em 388 a.C. Dele, se supõe, Platão recebeu uma visão forte e favorável da Matemática.
Poderíamos, como se vê, levantar uma razoável lista de filósofos que desfilam no livro de Carl Boyer e poderíamos também pinçar tópicos importantes, como o efeito quase devastador que suscitou para a Filosofia kantiana a emergência das geometrias não-euclidianas. Melhor que isso, no entanto, é lembrar à jovem que daqui a pouco se tornará professora, que, se Platão não foi um matemático ortodoxo, foi seguramente um criador de matemáticos, pois mesmo sem ter dado contribuição específica digna de nota a resultados matemáticos técnicos, foi o centro da atividade matemática da época e guiava o seu desenvolvimento.
Ah, e só para lembrar: à porta da Academia de Platão, em Atenas, lia-se, numa placa, a seguinte frase: “Que ninguém que ignore a Geometria entre aqui.” Que tal se, parodiando o grande filósofo, nas portas de nossas escolas escrevêssemos: “Que ninguém que ignore a Matemática saia daqui”?
Luiz Barco é professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo