O Brasil na caçapa
Você ficou tonto com o economês e ainda não entende por que a inflação voltou? Pois saiba que tudo pode ser explicado numa mesa de bilhar. A SUPER mostra os lances, tacada a tacada.
Ivonete D. Lucírio
Ah, que pena que acabou… Foram quatro anos sem o revólver da remarcação de preços atirando etiqueta sobre etiqueta nos produtos do supermercado. Sem, também, o bombardeamento do salário, que, mês a mês, valia menos. O real tinha o mesmo valor do dólar. Dava até para comer macarrão importado e planejar uma viagem ao exterior. De repente, em janeiro deste ano, veio o susto. Os noticiários gritaram: a inflação vem aí!
O que deu errado? Nem os economistas têm uma opinião unânime a respeito. Uns acusam o déficit público – o saldo negativo das contas do país. Outros, os governadores que ameaçaram não pagar as dívidas de seus Estados. “Achar o culpado pela crise é tão polêmico quanto explicar por que o Brasil perdeu a Copa”, compara Fernando Haddad, da Universidade de São Paulo. “Cada um tem um palpite.” É que a Economia é uma ciência, sim. Porém, é uma ciência humana, regida não por leis exatas, como a Física, mas por decisões políticas, impossíveis de prever com fórmulas.
Bem, um consenso existe: a história toda começa com a criação do Plano Real, em 1994. Daí para a frente é uma confusão danada. Um jeito de entender o que se passa é pensar na situação toda como um jogo de bilhar. O governo dá tacadas nas bolas que considera fundamentais para defender a estabilidade econômica. Às vezes erra. A economia mundial, então, reage. Assim, ao longo dos últimos anos, as bolas foram mudando de posição, até empurrar o Plano para a caçapa. Quer ver como? Vire a página.
O fim do sossego
O Brasil botou o pé no breque. A recessão – recuo nas atividades econômicas – engrossou a fila de desempregados e trouxe de volta a inflação. Para o governo, ela deve ficar em torno de 11% ao ano, mas alguns economistas acham que pode bater em 25%.
A mesa está preparada
Antes de começar o jogo, é preciso saber quem vai segurar os tacos e que bolas vão rolar.
Plano Real
Em 1994, a moeda mudou de cruzeiro para real, que passou a valer 1 dólar. Com isso, as importações ficaram mais baratas e as exportações, menos lucrativas. O país começou a comprar mais e a vender menos.
Inflação
É o aumento sistemático dos preços.
Investidores estrangeiros
São bancos, empresas, indivíduos e fundos de pensão (aplicações feitas por cidadãos para melhorar sua futura aposentadoria) que investem no mercado financeiro brasileiro.
Dólar
Toda negociação entre o país e o restante do mundo é feita na moeda americana.
Reservas
Constituem a poupança do país. São dólares tomados por empréstimo de bancos estrangeiros ou recebidos como investimento e depositados no exterior. Essa conta tem que estar sempre gordinha porque, se os investidores debandarem, vão querer levar o dinheiro, é claro.
Crise internacional
Começou em dezembro de 1994, no México, quando os investidores resolveram sacar suas aplicações naquele país para ganhar mais em outros lugares.
Juros
É o que se paga pelo dinheiro emprestado. Quando o governo precisa de recursos, vende uns documentos chamados títulos da dívida pública. Pega o dinheiro e promete devolver tudo depois, pagando uma porcentagem a mais.
Déficit público
O saldo negativo das contas nacionais surge quando o governo gasta mais do que arrecada em impostos.
Ajuste fiscal
A proposta de alguns economistas para diminuir o déficit público e ficar com saldo positivo é cortar a despesa e elevar a receita governamental.
Os rebeldes
Em janeiro deste ano, os governadores Olívio Dutra (Rio Grande do Sul), Anthony Garotinho (Rio de Janeiro) e Itamar Franco (Minas Gerais) ameaçaram não pagar dívidas de seus Estados com a União e com credores estrangeiros.
Os jogadores
1. O governo
O presidente da República e seus assessores escollhem em que bola bater para manter a situação do país equilibrada.
2. Economia mundial
É a movimentação do dinheiro entre as nações. A globalização tornou mais fácil para os investidores aplicar e desaplicar aqui ou ali quando bem entendessem. Ao fazer isso, eles desestabilizam a economia das nações que dependem dos recursos de fora, como o Brasil.1994
A primeira tacada
O lançamento do Plano Real foi o lance do governo para acabar com a inflação.
1. A quinta tentativa
Uma seqüência de planos (Cruzado, em 1986; Bresser, em 1987; Verão, em 1989; e Collor, em 1990) fracassou na tarefa de derrubar a inflação. Em 1994, o governo tenta de novo.
2. Bola forte
Em 1994, o então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso lançou o Plano Real, que igualou a moeda brasileira ao dólar.
3. Pro bem e pro mal
Com o real e o dólar valendo a mesma coisa, as mercadorias importadas passaram a concorrer com as nacionais, ajudando a manter os preços baixos. A inflação rolou para a caçapa. Mas a concorrência esmagou a indústria doméstica e gerou desemprego.
4. Linha de defesa
O governo só deu essa tacada no Plano Real porque confiou que a estabilidade do país seria protegida por três alicerces (veja 5, 6 e 7).
5. Ânimo do investidor
Havia muito dólar circulando no mercado financeiro internacional. O governo apostou que parte desse dinheiro seria investido aqui.
6. Dinheiro no cofre
As reservas estavam em 40 bilhões de dólares e a equipe econômica esperava que subissem. Isso era importante porque, com o aumento das importações e a queda das exportações, o Brasil precisaria de caixa para bancar a gastança.
7. Contas equilibradas
O governo dizia que o déficit público estava sob controle. Segundo alguns economistas, esse controle era conseguido à custa do corte de investimentos sociais, fundamentais para o país. De qualquer modo, não houve fabricação de dinheiro, o que aumentaria a inflação.1998
A vez da economia mundial
Durante quatro anos, o Plano foi bem. Mas lá fora as regras mudaram.
1. O novo cenário
Aqui dentro, o Plano Real segurava a inflação e os investimentos estrangeiros elevavam as reservas, que chegaram a 74,6 bilhões de dólares em abril. Enquanto isso, lá fora, a ciranda financeira se acelerava e detonava crises em vários países.
2. Nações em apuros
O primeiro a sentir os efeitos da saída dos investidores foi o México, em 1994. Depois vieram os países da Ásia, em 1997, e por fim a Rússia, em 1998. A bagunça repercutiu no mundo todo.
3. Ricos ressabiados
Os investidores passaram a desconfiar: o Brasil podia ser o próximo a ter problemas para devolver a eles os dólares colocados aqui. Na dúvida, começaram a ir embora em silêncio.
4. Caixa baixa
As retiradas foram solapando as reservas. Com tanta mão na cumbuca, as reservas caíram para 38 bilhões em dezembro.
5. Mais vantagens
Para frear a sangria, o governo aumentou os juros que pagava aos compradores dos seus títulos. Como conseqüência, os bancos também elevaram as taxas cobradas de seus clientes. A indústria não consegue financiamento para manter a produção. Crescem a recessão e o desemprego.
6. Efeito colateral
Com os juros mais altos, a dívida do governo também cresceu. Alguns dizem que isso aumentou o déficit público. Outros acham que ele subiu porque Fernando Henrique aumentou os investimentos sociais para ganhar votos e se reeleger.
7. Posição periclitante
A saída, para alguns especialistas, seria reduzir o déficit. Mas, sem diminuir os gastos nem aumentar a receita, só restaria fabricar dinheiro para pagar as contas – o que, você se lembra, causaria inflação. O governo não fez isso. Mas a simples ameaça de alta de preços deixou o Plano Real sob suspeita.
8. Cinto apertado
Há economistas que propõem o ajuste fiscal como o remédio que vai solucionar o problema do déficit público. Eles acham que o melhor negócio é aumentar os impostos e cortar investimentos e pagamentos do governo.1999
O taco escorregou
Em janeiro deste ano, o governo bateu no dólar. O investidor se assustou mais ainda.
1. Um empurrãozinho
A ameaça de calote dos governadores recém-empossados no início do ano aumentou o receio dos investidores. A situação parecia estar escapando do controle e eles corriam o risco de não receber seus dólares de volta. Aceleraram a saída, o que fez as reservas despencarem para 32 bilhões.
2. Sabe lá quanto vale
Para sair do país, os investidores compravam muitos dólares. Com isso, a moeda americana tendia a aumentar de preço. A fim de manter o valor baixo, o governo vendia dólares das reservas. Mas teve de interromper a operação porque elas estavam caindo muito rápido. O dólar subiu livremente.
3. Círculo vicioso
A subida do dólar assustou os investidores ainda mais. Agora, para receber 1 dólar de volta, eles teriam de pagar mais de 1 real.
4. Mergulho no escuro
A instabilidade derrubou os três alicerces sobre os quais se apoiava o plano econômico: os investidores foram embora, o déficit cresceu demais e as reservas caíram. O Plano Real foi para a caçapa.
5. De volta ao jogo
O fim da igualdade entre o real e o dólar aumentou o preço dos produtos cuja matéria-prima vem de fora. Sem contar os oportunistas que aproveitaram para reajustar os preços sem motivo. A onda de alta, encaçapada em 1994, retornou à mesa.
Três táticas para tirar o país do buraco
O jogo não acabou. Quando a partida envolve o país, não dá para largar o taco e ir embora, assim, sem mais nem menos. É preciso buscar soluções. Começa, então, o festival de palpites. Todo mundo conhece um jeito de recolocar o Brasil estável na mesa. Por ora, o governo espera receber os 9,3 bilhões de dólares prometidos para o final de março pelo Fundo Monetário Internacional – um banco que acode as nações em desespero financeiro. “Com isso, tenta-se reequilibrar as reservas”, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo. “Mas acredito que a pressão gerada pela saída dos investidores não vá parar tão cedo.”
Há também os otimistas. “Acho que o Brasil resolve definitivamente a crise fazendo uma reforma fiscal que ponha um fim no déficit público”, diz Mailson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda do governo Sarney. “É preciso, no entanto, ter coragem política para enfrentar os prejudicados por essas medidas, que certamente vão reclamar.”
Está vendo como a ciência econômica não é exata? Como no bilhar, há aqui várias formas de chegar a um mesmo objetivo – mas nenhuma delas com total garantia de sucesso. Cada economista tem uma receita para livrar a cara do Real (veja abaixo). E você, que acabou de ler esta reportagem e entendeu tudinho, há de ter, também, algum palpite a dar – vai dizer que não?
Polêmica entre mestres
Veja as soluções para o problema sugeridas por três economistas.
Fernando Haddad, da USP, defende a reforma tributária e a queda dos juros. “Taxando o contribuinte certo, conseguiríamos melhor distribuição de renda. Baixar os juros, apesar de arriscado, reduziria o déficit público.”
Luiz Gonzaga Belluzzo, da Unicamp, sugere renegociar a dívida com credores estrangeiros e com o FMI. “Seria mais fácil manter as reservas num nível alto e, assim, evitar a desvalorização do real.”
O controle do déficit público é a solução proposta pelo ex-ministro Mailson da Nóbrega. “É preciso fazer uma reforma na Previdência, para diminuir os gastos do governo e acabar com privilégios e incentivos concedidos a algumas fatias do funcionalismo.”