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O Haiti é daqui

Uma nação caribenha com tropas, empresas e ONGs brasileiras. Saiba por que o Haiti virou praticamente o 27° estado do Brasil - e como isso influi no futuro dos dois países

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h53 - Publicado em 25 fev 2014, 22h00

Renato Machado

Do calçadão à beira-mar, vê-se a grande baía, emoldurada por prédios, morros e favelas. Numa das favelas, ocupada por soldados, uma coreógrafa ensina dança para jovens com camisas verde-amarelas. Em um gabinete do governo, uma construtora pressiona para ganhar mais por uma obra. Em outro, engenheiros buscam acelerar o projeto de uma hidrelétrica.

Rio de Janeiro? Salvador? Florianópolis? Na verdade, todas essas cenas se passam em Porto Príncipe, capital de um pequeno país caribenho marcado pela miséria, tragédia e, mais recentemente, pela influência do Brasil. Nossa presença no Haiti tem sido constante e marcante: é quase como se esta meia-ilha fosse o 27º Estado brasileiro.

Estima-se que haja cerca de 2 mil brasileiros no Haiti. São 1.200 militares, membros da missão de paz comandada pelo Brasil desde 2004. Mas há também policiais, professores, executivos, jornalistas, missionários, gente da ONU, de ONGs e até do MST. É um pequeno contingente com uma grande influência, visível em uma caminhada pelo centro da capital. De tanto em tanto, você vê alguém com uma réplica da camisa da seleção canarinho. Em frente a prédios condenados pelo terremoto de 2010, camelôs vendem CDs piratas de ídolos do sertanejo universitário, como Michel Teló e Gusttavo Lima. No trânsito de poucos semáforos e nenhuma multa, se destacam os tap-taps, caminhões transformados em ônibus. Com a traseira coberta e bancos de tábua, eles trazem na carroceria rostos de craques brasileiros.

Nos cruzamentos, as crianças que limpam os carros costumavam pedir “give me one dollar”, herança da ocupação americana dos anos 90. Hoje, a frase é em português: “me dá um dólar”.

MISSÃO CUMPRIDA

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O Haiti divide com a República Dominicana a Ilha de Hispaniola – onde Colombo desembarcou em 1492. Virou colônia da França até se tornar, em 1804, a primeira república negra do mundo. A conquista da liberdade foi seguida de uma série de colapsos econômicos, invasões estrangeiras, golpes de estado, que em conjunto fizeram do país o mais pobre do continente. A última crise, em 2004, teve fim com a intervenção da ONU.

Em fevereiro daquele ano, explodiu um conflito entre inimigos e partidários do presidente Jean-Bertrand Aristide – que fugiu em um avião americano. A ONU aprovou uma intervenção, e em abril foi criada a Missão da Organização das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah). Pela primeira vez, o comando de uma missão de paz não seria rotativo, ficaria com um único país: o Brasil.

Por que nos metemos nessa? A meta principal era chegar ao Conselho de Segurança da ONU. Descascar o abacaxi haitiano somaria créditos para entrar no clube onde EUA, Reino Unido, França, Rússia e China (os vencedores da 2ª Guerra) debatem os conflitos mundiais. E lá se foram para o Caribe nossos blindados e soldados – o Brasil sempre teve o maior contingente e comanda 7 mil homens e mulheres de 19 nações.

A Minustah foi recebida à bala: toda patrulha era sinônimo de troca de tiros. As operações começaram em Bel-Air, região pobre no centro da capital e muito próxima ao antigo Palácio Nacional, e seguiram até chegar a Cité Soleil, favela que era considerada o lugar mais perigoso do mundo. “Nossa estratégia era conquistar um ponto estratégico de onde a gente irradiava a segurança”, diz o tenente-coronel do Exército Adriano Fructuoso. Chefe de operações do Brabat 1 (1º Batalhão de Infantaria de Força de Paz do Brasil) até maio deste ano, já havia atuado no “período quente” da missão, entre 2005 e 2006. “O blindado Urutu ia avançando e a gente não sabia de onde vinham os tiros. Só os escutava batendo na parte de fora e continuava atirando”, afirma um cabo (que pediu para não ser identificado) que esteve no Haiti em 2006. As gangues resistiam horas até permitir a tomada de um ponto. Só três anos depois, em 2007, Cité Soleil foi considerada pacificada.

Até hoje, a Minustah teve 175 baixas. O Brasil perdeu 25 militares e civis – ninguém em combate, só em acidentes.

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MISSÃO COMPRIDA

De lá para cá, mudou o Haiti e mudou a Minustah. Urutus deixaram de circular pelas ruas e são usados apenas em operações especiais. Se um protesto sai de controle, a primeira força empregada é a polícia haitiana. Caso aumente o risco, chama-se o reforço da UnPol (a Polícia da ONU) e só em último caso são enviados os militares. “O país está mais seguro e ganhando estabilidade”, diz o coronel Rogério Rozas, que comandou o contingente brasileiro até maio. “Com isso, a Minustah pode gradualmente passar a responsabilidade para as instituições locais e planejar a sua saída do país”. A previsão oficial para o fim da missão é 2016. Mas, nos bastidores, a maioria acredita que ela deve se estender.

Se o Haiti já precisava de ajuda, precisou mais ainda: na tarde de 12 de janeiro de 2010, um terremoto devastou Porto Príncipe. Os 47 segundos de tremor foram suficientes para derrubar casas, prédios e até o Palácio Nacional. O centro da cidade, repleto de escombros e soterrados, parecia ter passado por um bombardeio. A ONU calculou que foram 200 mil mortos, enquanto o governo mantém que foram 300 mil. Morreram também 18 brasileiros.

Passados três anos, destroços e ruínas ainda são visíveis. Cerca de 350 mil haitianos ainda estão desabrigados, e a economia nunca se recuperou. Mesmo assim, o mundo começa a virar a página e o Haiti fica para trás. A ONG brasileira Viva Rio, por exemplo, chegou a ter 1.500 funcionários (90% haitianos) nos meses após o terremoto. Mas os recursos internacionais foram sendo reduzidos, obrigando a uma demissão em massa. Agora, são pouco mais de 200 na equipe. A Viva Rio chegou em 2006, logo após a pacificação do centro da capital. O objetivo era revitalizar a região. “Mas então veio o terremoto e mudou tudo. O centro simplesmente ruiu”, afirma o diretor-executivo da Viva Rio, Rubem César Fernandes. A ONG mantém atualmente quatro bases no Haiti: um centro de cidadania, um parque de reciclagem, uma academia de futebol e um centro para formar profissionais de turismo.

Vieram religiosos brasileiros, católicos e evangélicos. Um grupo de missionários atua no coração de Wharf Jérémie, um dos maiores focos de miséria e criminalidade do Haiti. Outros estão no norte e no vale do Rio Artibonite, no centro. A Igreja Bola de Neve também organiza missões frequentes ao país.

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No campo haitiano, já tremula a bandeira do MST. Os sem-terra criaram a Brigada Dessalines, que atua em parceria com quatro organizações haitianas. Além de ensinar técnicas para a reprodução de sementes e de caprinos, o MST enviou jovens haitianos para estudar português e práticas agrícolas em suas escolas no Brasil.

MISSÃO MIGRATÓRIA

Além das crianças que pedem dinheiro, muitos haitianos aprenderam a falar português fluente. O Centro Cultural Brasil-Haiti mantém turmas de português para cerca de 200 haitianos todos os semestres. Em fevereiro, durante o período de inscrições, interessados madrugaram em frente ao local. “Nós podemos aumentar as turmas no futuro, porque houve uma grande lista de espera”, disse o diretor do centro, Werner Garbers. “Os haitianos querem aprender o português para oportunidades de trabalho ou porque têm interesse na cultura.”

Outro motivo para aprender é morar no Brasil, vontade que se tornou óbvia e lógica na cabeça dos haitianos. Se o Brasil é respeitado a ponto de liderar uma missão de paz, se tem empresas multinacionais e recursos para financiar grandes projetos, então certamente tem empregos. Nosso país hoje disputa imigrantes com EUA, Canadá e França.

A principal rota é partir de Porto Príncipe de ônibus para a República Dominicana. Mas o controle na fronteira vizinha ficou mais rígido, e por isso agora muitos vão de barco. De lá seguem por via aérea até o Panamá e depois para o Equador – ambos países dispensam vistos. Há rotas pela Bolívia e pela Colômbia, mas a maioria atravessa o Peru até chegar à distante fronteira com o Acre.

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Não há estimativas oficiais, mas cruzando dados chega-se a uma estimativa de 6 mil vistos concedidos e mais 6 mil haitianos que entraram no Brasil ilegalmente. Parte conseguiu viver o “sonho brasileiro”: chegou a um outro Estado, conseguiu emprego e envia dinheiro para a família. Outros continuam presos num limbo diplomático onde falta trabalho, água, comida.

Em 2012, o governo brasileiro tentou barrar a imigração ilegal oferecendo vistos permanentes para famílias. Filas se formavam diariamente em frente à embaixada. Agora, a ordem é emitir o máximo de vistos que o consulado brasileiro em Porto Príncipe conseguir – algo como 2.500 por ano. Mesmo com o aumento na emissão, haitianos dormem na calçada do prédio em que fica a embaixada brasileira para conseguir o documento.

Há quem defenda que a emigração de haitianos é um dos melhores termômetros para analisar se a atuação brasileira obteve sucesso. Quanto melhor a atuação do Brasil no Haiti, menor será a ânsia de deixar o país caribenho.

MISSÃO imPOSSíVEL?

Combustível, munição, uniformes, alimentação, comida, bônus salariais. A missão de paz no Haiti já custou ao Brasil R$ 2 bilhões – ou dois Maracanãs. Os apoiadores da missão dizem que o investimento se justifica pela experiência: 25 mil militares conheceram ação real. E a janela está se fechando: em 11 de outubro, o Conselho de Segurança aprovou uma redução no contingente da Minustah. O efetivo militar total será reduzido ao longo dos próximos meses de 6.270 para 5.021. Ainda não foi definido qual será a redução do contingente brasileiro.

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Mas o Brasil também quer que o Haiti seja uma vitrine de outras áreas. No pais caribenho estão nossos maiores projetos de cooperação internacional. Com graus variados de sucesso.

Um plano é o de melhorar o fornecimento de energia elétrica, um problemão que emperra a economia e prejudica a população. Em 2010, nosso governo criou um projeto para hidrelétrica de 32 megawatts, que custaria cerca de US$ 190 milhões. O Brasil repassou US$ 40 milhões, o Banco Interamericano de Desenvolvimento deu mais US$ 30 milhões. E foi isso: nenhum outro país quis embarcar na empreitada. A usina Artibonite 4C está perto de completar três anos no papel.

O setor privado também enfrenta problemas. A construtora baiana OAS foi ao Haiti fazer o trecho de uma rodovia no sul do país mas, no meio do ano passado, exigiu uma indenização do governo haitiano, que estaria sendo lerdo nas desapropriações. No fim, a OAS acabou substituída por uma empreiteira dominicana, que vai receber mais do que a indenização pedida pelos baianos. Existem articulações para que outras empresas sigam para o Haiti, mas já foi acionado o pé atrás.

Como contraponto, um projeto de US$ 70 milhões já rendeu a inauguração de dois laboratórios e um hospital, com mais dois na fila. Outro desdobramento é a futura atuação de mil agentes comunitários de saúde brasileiros – 200 já estão por aqui.

O Brasil também investiu US$ 20 milhões na agricultura haitiana e está cooperando para que o país caribenho organize uma polícia rodoviária federal – serão doadas motos Harley-Davidson aposentadas em nossas estradas. Isso sem contar os recursos enviados após o furacão Sandy no ano passado e a mesada para a realização de eleições. “O Brasil simplesmente não pode ignorar um Estado em necessidade”, afirma o embaixador do Brasil no Haiti, José Luiz Machado e Costa. “Se nós queremos ser um ator importante no mundo, é preciso se envolver.”
Gostemos ou não, o Brasil decidiu se envolver. Assumimos uma responsabilidade pelo futuro do Haiti. E é por esse futuro que seremos cobrados.

História do Haiti

1492

Colombo descobre a América ao desembarcar na ilha onde hoje fica o Haiti.

1697

A Espanha cede metade da ilha para a França – essa parte se torna o Haiti.

1801

Um ex-escravo, Toussaint Louverture, proclama a independência. Seguem-se 100 anos de conflitos internos.

1915

Os EUA invadem o Haiti e permanecem controlando o país até 1947.

1956

O médico e praticante do vudu Papa Doc lidera um golpe militar e assume o governo.

1971

O filho de Papa Doc, Baby Doc, herda o governo.

1988

Baby Doc é deposto e foge.

1991

Organiza-se uma democracia, dominada pelo grupo político de Jean-Bertrand Aristide.

2004

Aristide foge e é deposto.

2004

ONU aprova missão de paz, liderada pelo Brasil. Realizado o “Jogo da Paz”, mais diplomacia que futebol: Brasil 6 x 0 Haiti.

2006

Novas eleições restabelecem a democracia.

2010

Terremoto devasta o país.

2013
ONU anuncia redução do contingente militar da Minustah.

Design: Ricardo Davino

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