Cacilda Paranhos
A maioria das pessoas encara com naturalidade o gesto de bater nos filhos, como se a violência física fosse um instrumento legítimo (e até necessário) para a educação das crianças. É um hábito tão arraigado em nossa cultura que não é raro ouvirmos o argumento de que “os filhos já não respeitam mais seus pais porque não apanham”. Mas essa agressão não deveria ser vista com tanta naturalidade, já que é uma violência proibida por lei em países como Finlândia, Suécia, Dinamarca, Chipre, Letônia, Áustria, Croácia e Noruega. E eles não são uma exceção. Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Itália, Irlanda, Escócia, Israel e Bulgária estão caminhando na mesma direção, criando leis para proibir os pais de bater em seus filhos.
No Brasil, antes da chegada dos portugueses, os índios não tinham o costume de castigar fisicamente as crianças. Diversos relatos de padres no início da colonização revelam que, entre os índios, nem pai nem mãe agrediam seus filhos. Foram os jesuítas e os capuchinhos que introduziram o castigo físico como forma de “disciplinar” as crianças no Brasil. Durante esses 500 anos, os menores sofreram surras aplicadas com os mais inóspitos instrumentos: varas de marmelo e de açaí, rabo de tatu, chicote, cintos, tamancos, chinelos, palmatórias e as próprias mãos paternas e maternas, cocres na cabeça, puxões de orelha, palmadas…
Além da covardia que está presente no ato de bater em alguém mais fraco, a violência não é, definitivamente, um bom instrumento de disciplina. Ela perde o seu efeito a longo prazo e a criança, aos poucos, teme menos a agressão física. Com o tempo, a tendência dos pais é ainda bater mais, na busca dos efeitos que haviam conseguido anteriormente. O resultado desse aumento da violência pode trazer seqüelas físicas e psicológicas permanentes para as crianças. Os filhos também vão se afastando gradualmente de seus pais, pois a agressão física, em vez de fazer a criança pensar no que fez, desperta-lhe a raiva contra aquele que a agrediu.
Ao ser punida fisicamente, a criança tem a sua auto-estima comprometida – passa a se enxergar como alguém que não tem valor. Esse sentimento pode comprometer a imagem que faz de si pelo resto da vida, influenciando negativamente sua atitude durante a adolescência até a vida profissional. Como a criança pode se sentir tranqüila quando sua segurança depende de uma pessoa que facilmente perde o controle e a agride? Ela também passa a omitir dos pais os seus erros, com medo da punição, e sente-se como se tivesse pago por seu erro – e acredita que por isso pode cometê-lo novamente.
Enfim, não é preciso enumerar todos os problemas que são causados pela violência familiar. Bater nos filhos é um atestado de fracasso dos pais, uma prova de que perderam o controle da situação. Por mais inofensiva que possa parecer uma “pequena palmada”, é importante saber que a força física empregada pelo adulto é necessariamente desproporcional. É verdade que os castigos imoderados e cruéis estão proibidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990. Mas como definir claramente o que é castigo imoderado? Há vários casos de crianças que morreram depois de ter sido castigadas “cruelmente”. Embora um tapa e um espancamento sejam diferentes, o princípio que rege os dois tipos de atitude é exatamente o mesmo: utilização da força e do poder.
Por trás da violência física está a idéia implícita de que os pais têm total direito sobre a vida e a integridade física da criança. A maioria dos adultos com que tenho contato foram educados com surras e palmadas e reproduzem esse modelo, pois acreditam que o tapa tem a capacidade de modificar comportamentos. A meu ver, a proibição por lei de qualquer castigo físico eliminaria a violência familiar e ajudaria a formar pessoas melhores. A lei não precisa ter caráter punitivo (os pais não deveriam ser presos depois de uma palmada, a história mostra que não se deve tratar violência com violência). Mas eles deveriam ser advertidos caso fossem reincidentes, podendo até perder a posse da criança. Seriam obrigados a participar de um programa de educação, semelhante aos que já existem na legislação de trânsito. Estamos conscientes de que a lei, sozinha, não seria suficiente para impedir o comportamento violento dos pais. Somente um trabalho educativo poderia trazer a consciência de que o amor e o carinho são fundamentais para formarmos cidadãos capazes, seres humanos de verdade.
Psicóloga e pesquisadora da USP, coordenadora da campanha “Palmada Deseduca”.
Os artigos publicados nesta seção não traduzem necessariamente a opinião da revista.