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Para que servem as ONGs?

Há uma década, as ONGs pareciam ser a salvação do país. Hoje, há quem ache que elas são um enorme problema. Entre o céu e o inferno, o terceiro setor tenta descobrir quem é, para que serve e qual seu futuro

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 31 mar 2004, 22h00

Sérgio Gwercman

Um outro mundo é possível. Ou outro Brasil, que seja. Era o que se prometia para o futuro em junho de 1992, quando governantes de 108 países e 9 mil ONGs se reuniram no Rio de Janeiro para discutir os rumos ecológicos do planeta. A Rio-92, como foi batizado o encontro, entrou para a história das organizações não-governamentais brasileiras. Nunca elas haviam conseguido tanto destaque e espaço para debater suas posições, lado a lado com os mais importantes chefes de Estado.

Havia no ar a sensação de que estava surgindo um novo modelo de trabalho. Revolucionário e eficiente. Sem os vícios políticos e burocráticos do Estado, sem a ganância das empresas, formado apenas por cidadãos comprometidos com uma causa e dispostos a trabalhar por uma sociedade mais justa.

Dez anos mais tarde, o sonho de transformação deu lugar a uma realidade bem menos otimista. Uma pesquisa do Ibope revelou que 73% dos brasileiros nem mesmo sabem o que é uma ONG. Em algum lugar tanta expectativa se desfez. “Chegamos a um paradoxo em que há muito espaço para atuação e pouco para conseguir resultados”, afirma Jorge Eduardo Durão, presidente da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong). Nas próximas páginas você vai ler cinco perguntas e respostas essenciais para entender esse movimento. E saber o que podemos esperar dele.

O que é uma ONG?

Se levássemos ao pé da letra o significado da sigla poderíamos colocar na lista das organizações não-governamentais tudo aquilo não é empresa, mas também não faz parte do Estado. Incluindo aí o elitista Jockey Club ou a organização terrorista Al Qaeda. A bem da verdade, não existe uma definição clara de o que venha a ser uma ONG.

Pode-se dizer que ser organização não-governamental é uma filosofia de vida. A legislação cita associações, fundações e organizações civis de interesse público – não há uma lei no Brasil que utilize a palavra ONG. Os pilares em que elas estão fundamentadas foram desenhados e construídos pelos ideais de seus próprios participantes.

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As portas dessa comunidade, no entanto, não estão abertas para todos. Alguns pré-requisitos precisam ser atendidos para um grupo ser considerado ONG. Fins lucrativos, claro, estão banidos. E o foco das atividades deve, sempre, estar voltado para a sociedade. “As ONGs são entidades comprometidas com determinadas causas. É um projeto político, uma interferência direta na sociedade”, diz Jorge, da Abong.

A falta de um conceito para definir o terceiro setor tem explicação. Estamos falando de uma experiência recente, ainda mais se comparada com o surgimento do primeiro setor (o Estado moderno, nascido das revoluções francesa e americana no século 18 ), e do segundo setor (a iniciativa privada, que opera da maneira como a conhecemos desde meados do século 17). O termo ONG apareceu na década de 50, durante uma convenção da ONU. No Brasil, elas são ainda mais novas. “Interferência direta na sociedade” e “projeto político”, lembrando as palavras de Jorge, são idéias impensáveis em tempos de ditadura. Assim, começamos a conhecer essas organizações apenas há duas décadas, quando o regime militar colocou pijama e saiu de cena. “‘Quem somos nós’ e ‘o que é uma ONG’ foram perguntas formuladas pela primeira vez na América Latina em meados dos anos 80”, escreve a antropóloga Leilah Landim, no livro ONGs e Universidades.

Para disciplinar a vida dessas “jovens”, o governo produziu em 1999 uma lei específica para o setor. A legislação, que não fala em “ONGs”, criou aº não menos enigmática “Oscip”, ou Organização da Sociedade Civil de Interesse Público. Sua inovação foi estipular critérios objetivos que uma entidade deve atender para ganhar do governo o reconhecimento de interesse público. “Para ser Oscip a organização deve disponibilizar ao público todas suas informações e atuar em áreas como assistência social, cultura e educação gratuita”, diz Maria Nazaré Barbosa, professora de legislação do terceiro setor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Para que serve uma ONG?

“ONGs são as ferramentas que a população tem para participar da sociedade”, diz Plínio Bocchino, diretor de marketing da S Mata Atlântica, uma ONG fundada em 1986 para combater o desastre ecológico na mata que já ocupou 15% do território brasileiro e hoje mal chega a 2%. Até 20 anos atrás, participar da sociedade era sinônimo de votar ou ser membro de um partido político. Hoje, quem está insatisfeito pode entrar para uma ONG. Lá encontrará pessoas unidas por uma causa comum, lutando por ideais que consideram relevantes e, até por isso, focadas e especializadas nesses temas – sejam eles a utilização de bicicletas nas cidades, a construção de casas populares ecologicamente corretas ou a promoção do teatro nas periferias.

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Mas o poder de ação das ONGs é limitado. Todos os entrevistados para esta reportagem são unânimes em dizer que elas não podem – e não devem – substituir o Estado. Pegue-se o exemplo do rio Tietê. “Jamais vai surgir uma ONG capaz de limpar o rio. Ela não teria dinheiro nem autoridade política para isso”, diz Luiz Carlos Merege, coordenador do Centro de Estudos do Terceiro Setor da FGV. Cabe à ONG protestar, organizar a sociedade, apresentar propostas, pressionar o governo e até associar-se a ele na execução do projeto. Mas ainda assim seria do Estado a responsabilidade de colocar a mão na massa.

As ONGs cumprem sua função?

Peguemos um exemplo de sucesso: o programa brasileiro de combate à aids. É impossível concebê-lo sem o terceiro setor. “Se não existissem ONGs especializadas em aids o atendimento aos portadores do HIV entraria em crise”, afirma Sergio Haddad, ex-presidente da Abong, em ONGs e Universidades. Nesse caso, assim como em muitos outros, o terceiro setor atingiu seus objetivos: levantou a discussão, pressionou o governo e auxiliou na execução do projeto. Há diversas histórias de sucesso como essa. Na década de 80, quando as ONGs ambientalistas começaram a crescer, ecologia era uma palavra desconhecida. Hoje, se é verdade que o desmatamento continua avançando, o debate ambiental vai das salas de aula às campanhas políticas. E há por todo lado ótimas iniciativas, como as campanhas de preservação de espécies capitaneadas pela S Mata Atlântica.

Enumerar sucessos, no entanto, pode deixar esquecida outra questão: todo esse movimento é suficiente para transformar o país ou estamos diante de um paliativo para que a sociedade possa dormir tranqüila acreditando que “alguém” está cuidando dos problemas do Brasil? Essa dúvida existencial tem feito parte das sessões de terapia do terceiro setor. “As ONGs vivem um momento de frustração. Estamos sendo um fracasso coletivo na tentativa de reverter o modelo de exclusão econômica”, diz Jorge Durão. Na verdade, podemos estar diante não apenas de uma crise de identidade, mas de dúvidas sobre a real capacidade de ação do terceiro setor. “As pessoas cristalizaram a idéia de que as ONGs são mais rápidas e menos burocratizadas que o Estado. Essa idéia é falsa”, diz o senador Mozarildo Cavalcanti, que em 2002 presidiu a CPI das ONGs, criada para investigar a atuação dessas entidades. Mozarildo toca num ponto nevrálgico do terceiro setor, que cresceu como alternativa a um Estado tão inchado quanto caro e ineficiente. A imagem que temos do Estado espelha a realidade. Mas as ONGs têm estruturas melhores? O senador acredita que não. “As ONGs gastam 60% dos recursos que recebem do governo na parte administrativa”, afirma. Segundo Mozarildo, em vez de esvaziar a máquina do Estado, estamos montando uma máquina paralela.

Quem financia as ONGs?

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Ninguém sabe exatamente. Até hoje, nenhum estudo foi feito no Brasil para mapear em detalhes o funcionamento do terceiro setor. Assim, além de desconhecermos a origem do dinheiro, também não sabemos quem as ONGs são ou mesmo em que áreas atuam. O levantamento mais confiável sobre o assunto é o catálogo das filiadas à Abong. É bem pouco. A entidade reúne apenas 250 ONGs, enquanto estima-se que o país tenha algo como 250 mil.

De acordo com a Abong, seus principais financiadores são entidades internacionais, em especial da Europa. Em 2000, elas contribuíram com 50% do orçamento total do terceiro setor brasileiro filiado à Abong. A origem desse dinheiro está, em sua maioria, nos governos da Comunidade Européia. Assim, por mais paradoxal que seja, as maiores organizações não-governamentais do Brasil são financiadas com dinheiro governamental europeu.

Há um problema nesse mecanismo: quem decide o destino do dinheiro são os europeus. Por um lado, nada pode ser mais justo – é dinheiro deles, afinal. Mas a questão é qual o critério utilizado para escolher quem precisa de auxílio. “A comunidade internacional vê os bolsões de pobreza como um problema interno do Brasil. Assim, têm prioridade as ONGs que lidam com meio ambiente, que para os estrangeiros é um dos principais focos de atuação”, diz Nilto Tatto, secretário-executivo do Instituto Socioambiental (ISA), uma das mais ricas ONGs brasileiras, com orçamento anual de 11 milhões de reais, conseguidos principalmente no exterior.

A boa notícia é que, segundo especialistas, esse quadro está mudando. E ficando mais plural. A Abong já detectou um aumento do dinheiro estatal brasileiro no orçamento do terceiro setor. São parcerias com governos municipais, estaduais e federal. E, na iniciativa privada, o investimento social começa a deixar os departamentos de marketing e migrar para diretorias especializadas no assunto. “Isso é positivo, porque os marqueteiros pautam suas prioridades apenas pela possibilidade de exposição das marcas”, diz Luiz Merege, da FGV.

Qual o futuro das ONGs?

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Uns erram, todos pagam o pato. É assim na política e na vida em sociedade, e não seria diferente no terceiro setor. No Rio de Janeiro, uma CPI estadual que investigou as ONGs apurou que algumas serviam de fachada para o governo contratar e comprar sem licitação. “A solução é separar as ONGs do Estado. Se é não-governamental, não deve dispor de recursos públicos”, afirma o deputado Paulo Ramos, presidente da CPI. O país, no entanto, está caminhando em outra direção. Além de regulamentar o setor, a lei das Oscips aumentou as possibilidades de parcerias entre Estado e sociedade civil. Por enquanto esses convênios são poucos, mas parecem apontar para um modelo que crescerá no futuro. O governo coloca dinheiro e as ONGs entram com seu conhecimento especializado.

Mas ninguém quer depender exclusivamente do Estado, até porque estamos falando de organizações não-governamentais – e não neo-estatais, como apelidaram alguns críticos. O desafio então é aumentar o dinheiro privado para o terceiro setor. E isso poderia acontecer com a mudança de algumas regras do jogo. Uma delas é seguir o modelo norte-americano e permitir que doações feitas por cidadãos possam ser deduzidas do imposto de renda – atualmente isso é privilégio das empresas. Há também quem defenda a redução da diferença entre a renúncia fiscal para a área social e para a cultura, por exemplo. “Quem dá dinheiro para música erudita recupera até 100% do investimento com a dedução de impostos. Na área social, chega-se no máximo a 30%”, diz Maria Nazaré, da FGV. Ou seja, é mais barato investir em cultura que em reduzir a pobreza. É óbvio que os empresários vão levar isso em conta ao aplicar seus recursos.

A mudança nessas regras poderia ajudar a desatar o nó da sustentabilidade, um dos principais entraves para o sucesso do terceiro setor. Como as pequenas empresas, as ONGs enfrentam forte concorrência e boa parte delas não supera os primeiros anos de vida. Passam mais tempo lutando por dinheiro que pelas causas que originaram sua existência. A saída, não há dúvidas, está na profissionalização do setor. “Profissionalização é essencial para conseguir eficiência. E eficiência é saber como eu, com poucos recursos, posso lidar com problemas tão amplos”, diz Célia Cruz, diretora da Ashoka, uma ONG que financia profissionais do terceiro setor, os chamados “empreendedores sociais”. Em resumo: um outro mundo é possível, sim. Mas, para construí-lo, é preciso mais que idealismo.

Para saber mais

Na livraria:

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O Público Não-Estatal, Luiz Carlos Bresser Pereira e Nuria Grau (organizadores), Fundação Getúlio Vargas, 1999

ONGs e Universidades, Sérgio Haddad (organizador), Abong, 2002

Na internet:

https://www.abong.org.br, Site da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais

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