Simplicidade que salva vidas
Como o lugar que já foi o mais violento do mundo conseguiu reduzir a criminalidade, sem mágica
JARDIM ÂNGELA – Cidade de São Paulo
O sargento da Polícia Militar David Monteiro da Conceição e o padre Jaime Crowe passaram muitos anos em lados opostos, quase como inimigos, há cerca de uma década. Para os padrões do padre e de boa parte da população do Jardim Ângela, na zona sul da capital paulista, onde ambos trabalham, o sargento David era violento.
Pois não é que, hoje, o sargento e o padre são parceiros em uma das mais vitoriosas iniciativas de combate à violência urbana? Com 41 anos e 22 na Polícia Militar, o sargento David é atualmente comandante da Base Comunitária de Segurança do Jardim Ângela, onde, com poucos recursos, a polícia tenta implantar conceitos do policiamento comunitário. “O atendimento psicológico na PM despertou meu lado humano”, diz o sargento, ao recordar quando foi afastado do policiamento de rua após ter participado de operações policiais em que morreram civis.
O padre é responsável por uma das paróquias da região e coordenador do Fórum em Defesa da Vida, que reúne mensalmente representantes da comunidade, da polícia e dos governos estadual e municipal.
A região foi selecionada para o projeto por ser um dos locais mais violentos de São Paulo. Em 1996, foi considerada o local mais violento do mundo, com mais de 100 homicídios por 100 000 habitantes. Mas a base não atende todo o bairro. O pedaço escolhido para receber o policiamento comunitário foi o mais violento, uma fatia onde vivem 80 000 habitantes e que, até então, registrava a mais alta taxa de homicídios da região. Em 1998, morreram ali 97 pessoas assassinadas, 41% do total de 236 mortes violentas ocorridas na área dos distritos policiais do Capão Redondo e do Jardim Ângela, onde vivem 500 000 pessoas.
Atendendo aos pedidos do Fórum em Defesa da Vida, a base da PM foi instalada em outubro de 1998. Resultado: o número de homicídios despencou pela metade e a participação da área no total de homicídios da região caiu a menos de 20%.
O policiamento comunitário aplicado ali nada tem de sofisticado, tecnológico ou avançado. Trata-se apenas de aplicar o conceito básico que é a razão de existir da polícia: servir aos cidadãos. Com rondas a pé, diálogo constante com os moradores e encaminhamento de pessoas para serviços sociais, os policiais resolvem conflitos e se aproximam da população.
“Pra cada problema a gente tem uma solução. Se uma criança detida furtando no comércio não está estudando, a gente vê escola para ela”, diz o sargento, que percorre os colégios do bairro ministrando palestras.
O policiamento comunitário trabalha em parceria com organizações não-governamentais que atuam na região, como a Casa Sofia, que atende mulheres vítimas de espancamentos, o RAC (Reintegração do Adolescente na Comunidade) e a Uniad (Unidade de Álcool e Droga), mantidos pela paróquia do padre Jaime, Santos Mártires. Todas elas surgiram nos últimos cinco anos na esteira das discussões do Fórum em Defesa da Vida, que percebeu que, para combater a violência, era preciso atacar a falta de lazer e emprego para os jovens e melhorar a qualidade de vida no bairro.
O resultado do trabalho aparece onde menos se espera. “Voltei a colocar o Jardim Ângela nos currículos que envio para procurar emprego”, conta Roseli Barbosa da Silva, que trocava o nome do bairro por causa da má-fama que o lugar possuía.
Para manter vivo o espírito de mudança, alguns símbolos da virada contra a criminalidade foram criados. Um deles é a Caminhada em Defesa da Vida. No dia de Finados, em 2 de novembro, milhares de moradores da região se dirigem ao cemitério São Luís, onde está enterrada boa parte das vítimas dos crimes violentos.
E é preciso, mesmo, manter a vigilância em alta. No ano passado, o número de homicídios cresceu 35%, atingindo 83 assassinatos. Continua baixa a participação da área das duas bases de segurança no total de mortes violentas da região, em torno de 18%. Fora da área das bases o total de homicídios disparou, alcançando 383 mortes no ano passado, 175% a mais que os 139 assassinatos ocorridos em 1998.
Mas teme-se que o aumento possa estar acompanhando um certo recuo oficial no projeto, como relata padre Jaime. Segundo ele, o efetivo da base, que era de 30 policiais, chegou a ser reduzido a 18 e hoje possui 25 pessoas. O pior, diz o padre, é que apenas seis dos 30 policiais que iniciaram no projeto continuam lá. Em um trabalho que carece da confiança da população, a estabilidade é fundamental.
Dos policiais lotados hoje na base, apenas sete moram na região, contrariando um dos princípios mais caros à polícia comunitária. E há outros sinais de desprestígio: as duas viaturas novas que foram entregues à base ficaram poucas semanas por lá e hoje o único veículo da base foi entregue já deteriorado, quebrou logo e provavelmente não voltará mais a funcionar. Em um bairro tão carente, um carro presta grande ajuda aos moradores.