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Somos todos mutantes

O racismo é um instinto tão profundo que precede a humanidade: existe em todas as espécies. Mas o fato de ele estar firme entre nós só mostra uma coisa: que ainda ignoramos o princípio mais básico da evolução

Por Alexandre Versignassi
Atualizado em 7 mar 2024, 11h14 - Publicado em 29 set 2014, 01h00

 

A cor da pele não é assunto entre os chimpanzés. Se você depilar um, uma pele branca vai aparecer por baixo da manta de pelos. Passa a gilette em outro e surge uma pele preta. Manda mais outro para a cera quente, e quem sai da depilação é um chimpanzé rosa. Na verdade, eles mudam de cor ao longo da vida: nascem mais claros e vão escurecendo. Mas não importa. A cor da pele é tão relevante para eles quanto a do pâncreas é para a gente. Não que os macacos não sejam racistas. No mundo chimpanzé, o pelo pode ser de qualquer cor, contanto que seja preto. Quando nasce um macaquinho albino, não tem jeito. Os outros não vão aceitá-lo como um igual. E ele vai apanhar, ficar isolado. E morrer logo – de pancada ou de fome.

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Nosso ancestral comum com os chimpanzés, um símio que viveu há 6 milhões de anos, provavelmente obedecia à mesma regra. A cor da pele não tinha importância, só a dos pelos. Mas essa história mudou.

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Há coisa de 2 milhões de anos, alguns dos descendentes desse ancestral comum começaram a perder pelos. A cada mil partos nascia um macaco pelado. Um mutante. Algumas dessas aberrações genéticas tinham o mesmo destino dos albinos: bullying e morte prematura. Outros não. Talvez a falta de pelos tenha os ajudado a lidar melhor com o calor africano, e eles conseguiam ir mais longe para arranjar comida. Desse jeito, viviam mais e melhor. Então se reproduziam mais.

Deu tão certo que, uma hora, esses macacos pelados tinham formado uma superespécie – eram maiores e bem mais inteligentes que seus antepassados peludos. Nada mal para quem começou a vida evolutiva apanhando. Hoje esse animal sem pelos é conhecido como Homo erectus – são os nossos avós diretos. E as mutações não pararam, lógico. Quanto maior a inteligência de um erectus, maior era a chance de ele deixar mais descendentes. Então 1,8 milhão de anos depois já havia alguns erectus com cérebro gigante, e, de quebra, com traços idênticos aos dessa maravilha genética que você vê no espelho todas as manhãs. Era o Homo sapiens. Você, em suma.

E você era negro. A pele escura era a melhor para aguentar o sol africano sem a proteção de uma camada de pelos, já que é menos propensa a brindar seu dono com um câncer de pele. Por essas, nossa linhagem trocou o arco-íris de pigmentação que provavelmente tinha antes de perder os pelos por uma tonalidade só. Ficamos monocromáticos.

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Mas não demorou e o sapiens começou a colonizar outras partes do mundo. Há 40 mil anos, chegamos à Europa e exterminamos os neandertais. Eles eram nossos primos, também descendentes do erectus. A diferença é que os ancestrais deles tinham saído da África havia 400 mil anos (200 mil antes de a nossa espécie surgir). Por essas, os neandertais já nasciam adaptados ao frio: eram fortes que nem um bisão e, como todo mamífero que vive no gelo, tinham pele e cabelos claros. Não que camuflagem na neve fosse tão importante para eles. Os neandertais mantiveram a mutação dos seus avós africanos – a de ter perdido a manta de pelos. Então precisavam se cobrir para aguentar o frio. A vantagem da pele clara era outra: ela sintetiza melhor a vitamina D nas altas latitudes, onde não existe sol o bastante para fazer esse trabalho a contento. Num tempo em que nutriente era tudo o que faltava, qualquer vantagem na absorção de algum deles fazia a diferença. O processamento mais eficaz de vitamina D, então, era uma bela vantagem. Então os neandertais foram embranquecendo de geração em geração.

Não que isso tenha ajudado muito quando nós, negros Homo sapiens, entramos na Europa. Nossa tecnologia àquela altura era bem superior à dos neandertais, com lanças mais leves e afiadas. Mas o que fazia mesmo a diferença era a nossa organização social: andávamos em grupos de cem, 200 pessoas. Eles, em famílias com no máximo dez indivíduos. Cada encontro, então, era um massacre. Não demorou e já tínhamos matado todos os neandertais. E aí foi a vez do sapiens empalidecer, pelo mesmo processo de sempre: a cada mil, 10 mil nascimentos, aparecia um mutante, com pele mais clara. Eles deviam levar seus pescotapas na infância, por serem diferentes. Alguns certamente eram mortos pela própria família logo que viam a luz. Mas naquele ambiente ser branco ainda era vantagem, também por causa da vitamina D. Uma vantagem grande o bastante para que, em poucas dezenas de milhares de anos, só nascessem sapiens de pele clara nas latitudes mais altas.

Hoje a cor da pele não faz diferença do ponto de vista evolutivo: por mais que a nossa dieta não seja uma maravilha, temos acesso a tantos nutrientes que a capacidade de sintetizar mais vitamina D não tem mais com apitar na cor da pele. Nem a vitamina D, nem a quantidade de sol do ambiente.

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O mais provável, então, é que fiquemos todos marrons em alguns milhares de anos, já que mais hora menos hora todos os genes de pigmentação dos sapiens vão acabar misturados, em todos os indivíduos. Não que isso vá ser a panaceia da humanidade. Na Índia todo mundo é marrom faz tempo, e isso não impediu que surgisse o sistema de castas. Os Hutus e os Tutsis, de Ruanda, são quase idênticos, mesmo para os ruandeses, e nem por isso deixaram de protagonizar um dos maiores massacres étnicos da história, com 800 mil Tutsis assassinados por Hutus. Um corintiano pode ser geneticamente indiscernível de um palmeirense, e de vez em quando um acha motivo para matar o outro pela cor da camisa.
O problema é que sempre nos juntamos em tribos de “iguais” para lutar contra qualquer coisa que pareça “diferente”. É parte da nossa natureza. É parte da natureza de qualquer animal – até por isso todos os mutantes sofrem, em todas as espécies. Mas, ironicamente, são os mutantes, os diferentes, que fazem a evolução andar. Não fosse por eles, nem seríamos todos macacos. Seríamos todos amebas, porque a evolução nem teria acontecido. Mas graças a ela, hoje, temos neurônios o bastante para decidir não nos comportar como amebas; cérebro suficiente para entender que o próprio conceito de raça é uma ilusão. Perpetrada por um instinto estúpido.

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