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Sonhos de Einstein

Um físico do MIT e um poeta autor de best-sellerslevam a relatividade para o mundo do realismofantástico. E os dois são a mesma pessoa

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 28 fev 2005, 22h00

Alexandre Versignassi

Pouca gente sabe misturar ciência e literatura como o americano Alan Lightman (ao lado), 56 anos. Não é à toa: “Desde quando me conheço por gente, construo foguetes e escrevo poesia. Sempre me senti dividido entre dois mundos”, disse certa vez. E olha que ele se deu bem nos dois. Tornou-se físico, foi professor da Universidade de Harvard, Estados Unidos, por 12 anos e hoje está no não menos prestigioso MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Aos 43 decidiu virar escritor de ficção, e seu primeiro livro tornou-se um best-seller mundial, traduzido para 30 idiomas.

O livro é Sonhos de Einstein, uma coleção de contos de realismo fantástico inspirada em dois ídolos de Lightman: o escritor argentino Julio Cortázar, de onde ele bebe para montar o clima insólito de cada história, e, claro, o cientista alemão que empresta o sobrenome ao título. Albert Einstein, no entanto, é só um coadjuvante ali. Quem reina são as idéias dele. Einstein, afinal, mostrou para o mundo que o tempo é maleável. E Lightman abusa, no melhor sentido da palavra, desse conceito.

Por exemplo: uma hora o físico leva o leitor para um mundo onde o tempo é circular: “Cada beijo, cada nascimento, cada palavra são precisamente repetidos. E também o serão todos os momentos em que dois amigos deixam de ser amigos, toda promessa não cumprida. Todas as coisas serão repetidas no futuro”, escreve Lightman. Essa idéia, veja bem, não é ficção pura. Depois de Einstein ter aberto caminho para que o tempo fosse entendido como uma dimensão, como uma coisa que tem forma, como você ou uma cadeira, a física teórica passou a trabalhar com a hipótese de que talvez realmente haja dimensões temporais “fechadas”, circulares mesmo, em que o futuro sempre desemboca em um momento anterior ao presente. Poucas coisas fogem tanto à intuição quanto conceitos desse tipo. E Lightman, como poucos, consegue deixar essas abstrações mais do que paupáveis.

E não faltam bizarrices. A maioria, deliciosa: em outro conto, chegamos a um lugar onde o futuro é completamente invisível (e não só parcialmente, que nem aqui). Então é impossível fazer planos. E cada dia é como se fosse o último. “Alguns ficam paralisados, inativos. Passam o dia na cama, acordados mas com medo de se vestirem. Outros pulam da cama pela manhã, despreocupados (…). Vivem para o momento, e cada momento é pleno.”

Em mais outro, estamos numa terra de homens que vivem para sempre. E isso é bom, senhor Lightman? Nem sempre: “Com o tempo, alguns chegam à conclusão de que o melhor jeito de viver é morrer”. É isso aí: em Sonhos de Einstein, o físico e o poeta que existem na cabeça do autor se encontram, tomam várias cervejas e falam coisas que um nunca teve coragem de dizer para o outro. Aproveite.

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11 de maio de 1905

Caminhando pela Marktgasse, vê-se uma imagem assombrosa. As cerejas nas bancas de frutas estão alinhadas em fileiras, os chapéus nas chapelarias estão empilhados impecavelmente, as flores nas sacadas arranjadas em perfeita simetria, não há migalhas no chão da padaria, não há leite derramado no piso de pedra da despensa. Nada está fora de lugar.

Quando um grupo alegre deixa um restaurante, as mesas estão mais limpas do que antes, quando um vento sopra suavemente na rua, a rua fica mais limpa, a sujeira e a poeira são levadas para a periferia da cidade. Quando a maré explode na costa, a costa se reconstrói. Quando as folhas caem das árvores, as folhas se alinham como uma revoada de pássaros em formação “V”. Quando as nuvens adquirem forma de rostos, os rostos permanecem. Quando um cano solta fumaça em uma sala, a fuligem concentra-se em um dos cantos, deixando o ar limpo. Sacadas pintadas expostas ao vento e à chuva ficam mais brilhantes com o passar do tempo. O estrondo do trovão faz um vaso quebrado restaurar-se, os cacos de uma peça de louça saltarem de volta para a posição exata onde cabem e se encaixam.

A fragrância de uma carroça de canela aumenta com o tempo, não se dissipa.

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Esses acontecimentos parecem estranhos?

Neste mundo a passagem do tempo faz aumentar a ordem. Ordem é a lei da natureza, a tendência universal, a direção cósmica. Se o tempo é uma flecha, esta flecha aponta para a ordem.

O futuro é padrão, organização, união, intensificação; o passado é acaso, confusão, desintegração, dissipação.

Filósofos argumentam que, sem uma tendência no sentido da ordem, o tempo não teria significado. O futuro não poderia ser diferenciado do passado. Seqüências de eventos seriam apenas inúmeras cenas aleatórias de milhares de romances. A história seria indefinida, como a bruma que lentamente se acumulou em torno dos cumes das árvores durante a noite.

Em um mundo como este, as pessoas com casas bagunçadas ficam deitadas em suas camas esperando que as forças da natureza soprem a poeira de seus parapeitos e arrumem os sapatos em seus armários. As pessoas cujos negócios são desorganizados podem sair e fazer um piquenique enquanto suas agendas são ordenadas, suas reuniões marcadas, suas contas equilibradas. Batons e pincéis e cartas podem ser jogados dentro das bolsas com a satisfação de que se ajeitarão automaticamente. Jardins nunca precisam ser desbastados, ervas daninhas nunca precisam ser arrancadas. Escrivaninhas ficam organizadas ao final do dia. Roupas deixadas no chão à noite encontram-se penduradas em cadeiras na manhã seguinte. Meias perdidas reaparecem.

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Se um viajante chega a uma cidade na primavera, vê uma outra imagem assombrosa. Pois na primavera as pessoas ficam cansadas de tanta ordem em suas vidas. Na primavera, as pessoas viram furiosamente suas casas de pernas para o ar. Varrem sujeira para dentro, destroem cadeiras, quebram janelas. Na Aabergergasse, ou qualquer outra avenida residencial, ouve-se, na primavera, os sons de vidro quebrado, grito, uivos, risadas. Na primavera, as pessoas se encontram sem combinar, queimam suas agendas, jogam fora seus relógios, bebem a noite inteira. Este descontrole histérico continua até o verão, quando as pessoas recuperam o juízo e voltam à ordem.

 

14 de maio de 1905

Há um lugar em que o tempo fica parado. Pingos de chuva permanecem inertes no ar. Pêndulos de relógios estacionam no meio do seu ciclo. Cães empinam seus focinhos em uivos silenciosos. Pedestres estão congelados em suas ruas poeirentas, suas pernas erguidas como se amarradas por cordas. Os aromas de tâmaras, mangas, coentro, cominho estão suspensos no ar.

À medida que um viajante se aproxima deste lugar, vindo de qualquer parte, ele anda cada vez mais devagar. As batidas do seu coração ficam cada vez mais espaçadas, sua respiração arrefece, sua temperatura cai, seus pensamentos diminuem, até que ele atinge o centro morto e pára. Pois este é o centro do tempo. A partir deste lugar, o tempo se distancia em círculos concêntricos – inerte no centro, lentamente ganhando velocidade à proporção que aumenta o diâmetro.

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Quem faria uma peregrinação ao centro do tempo? Pais com seus filhos, e amantes.

E assim, no lugar onde o tempo fica parado, vêem-se pais agarrados a seus filhos, em um abraço petrificado que nunca se desfará. A linda filhinha de olhos azuis e cabelos loiros nunca parará de sorrir o sorriso que está sorrindo agora, nunca perderá este brilho róseo de suas bochechas, nunca ficará enrugada nem cansada, nunca se ferirá, nunca desaprenderá o que seus pais lhe ensinaram, nunca pensará pensamentos que seus pais desconheçam, nunca tomará contato com o mal, nunca dirá a seus pais que não os ama, nunca deixará seu quarto com vista para o mar, nunca deixará de tocar seus pais como está tocando agora.

E, no lugar onde o tempo fica parado vêem-se amantes se beijando nas sombras dos prédios, em um abraço petrificado que nunca se desfará. O amado nunca tirará os braços de onde estão agora, nunca devolverá o bracelete de memórias, nunca viajará para longe da pessoa amada, nunca se sacrificará expondo-se a perigos, nunca deixará de mostrar seu amor, nunca sentirá ciúme, nunca se apaixonará por outra pessoa, nunca perderá a paixão que existe neste instante no tempo.

É importante considerar que estas estátuas são iluminadas apenas por uma brandíssima luz vermelha, pois a luz fica reduzida a quase nada no centro do tempo, suas vibrações reduzidas a ecos em vastos desfiladeiros, sua intensidade diminuída ao brilho tênue dos vaga-lumes.

Aqueles que não estão exatamente no centro morto de fato se movem, mas no ritmo das geleiras. Uma escovadela no cabelo pode levar um ano, um beijo pode levar mil anos. Enquanto um sorriso é retribuído, estações passam pelo mundo exterior. Enquanto uma criança é abraçada, pontes são construídas. Enquanto uma pessoa diz adeus, cidades desmoronam e são esquecidas.

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E aqueles que regressam ao mundo exterior… Crianças crescem rapidamente, esquecem o abraço de séculos de seus pais, que para elas durou não mais que alguns segundos. Crianças tornam-se adultos, vivem separados dos pais, vivem em suas próprias casas, desenvolvem suas próprias maneiras de fazer as coisas, sentem dor, envelhecem. Crianças maldizem os pais por tentarem segurá-las para sempre, maldizem o tempo pelas rugas em suas próprias peles e vozes ásperas. Essas crianças agora envelhecidas também querem parar o tempo, mas em outro momento. Querem congelar seus próprios filhos no centro do tempo.

Amantes que regressam descobrem que os amigos partiram muito tempo antes. Afinal, suas vidas se passaram. Eles transitam em um mundo que não reconhecem. Amantes que regressam ainda se abraçam nas sombras dos prédios, mas agora seus abraços parecem vazios e solitários. Logo esquecem as promessas feitas para durar séculos, que para eles duraram apenas segundos. Sentem ciúme mesmo entre estranhos, falam coisas terríveis entre si, perdem a paixão, distanciam-se, envelhecem e se isolam em um mundo que não conhecem.

Alguns dizem que não se deve chegar perto do centro do tempo. A vida é um barco de tristeza, mas é nobre viver a vida, e sem tempo não há vida. Outros discordam. Prefeririam viver uma eternidade de felicidade, mesmo que essa eternidade fosse fixa e petrificada, como uma borboleta instalada em uma redoma.

 

 

Nada do que foi será

Lightman brinca aqui com a mais implacável das leis do Universo: a tendência à desordem, ao caos (ou à entropia, como preferem os iniciados). Essa tendência é a única coisa que deixa o passado diferente do futuro. Sim: imagine um filme cujo único ator seja uma bolinha que rola da esquerda para a direita. Se você passar esse filme de trás para a frente – do futuro para o passado -, a direção da bolinha vai se inverter, certo? Mas alguém que chegar na sala nesse exato momento não tem como dizer se o filme está passando na ordem certa ou de trás para a frente. Já se o filme for o de um ovo quebrando não tem erro: se você resolver passá-lo de trás para a frente e alguém chegar na sala, esse alguém vai ver pedaços de casca e gema se juntando para formar um ovo. Vai ver o caos gerar ordem, e vai entender na hora que a fita está passando de trás para a frente, do futuro para o passado. Ou seja, a seta do tempo aponta para o aumento da desordem, da bagunça. Não tem outro jeito.

 

Buraco negro na praça

Existe, sim, uma pracinha onde o tempo congela no centro. Bilhões e bilhões delas, aliás: são os buracos negros. Einstein mostrou que quanto maior for a gravidade mais lentamente o tempo vai passar. E nada tem mais gravidade do que um buraco negro. Quanto mais perto você chegasse de um, mais devagar envelheceria. Os “abraços que duram séculos” de Lightman só não são possíveis porque não dá para ficar próximo o suficiente da gravidade monstro de um buraco negro. A força que puxa seus pés, por exemplo, seria milhões de vezes maior do que a que atrai sua canela. Você acabaria todo retalhado. Mas uma coisa é fato: a alegoria do autor explica precisamente as distorções do tempo nos arredores de um buraco negro. Ah, e se alguém chegasse no centro do buraco negro, ou no “centro do tempo” como diz o autor? Todo tempo do lado de fora “da praça” se esgotaria. A vida acabaria, já que as pessoas que lá chegassem não teriam para onde voltar. O sorriso de quem chegasse lá dentro seria o último sorriso do Universo.

 

Vale a pena ler

Sonhos de Einsten, Alan Lightman, Companhia das Letras, 2004, R$ 27

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