Vá as compras e salve o mundo
Finalmente, um discurso sustentável vem absolver nosso pecado favorito: o consumismo. Entenda aqui como é possível se esbaldar nas lojas sem poluir o ambiente. A resposta está na árvore ao seu lado
Sabine Righetti e Karin Hueck
Não ande de carro, não coma carne, não produza lixo, não gaste água e nem ouse ter filhos. Poucas coisas são tão negativas (e chatas) quanto o discurso ecológico radical, que prega que devemos fazer de tudo para causar o menor estrago possível ao ambiente. Não é à toa que muitos não aguentam mais ouvir falar no assunto. Mas finalmente uma nova proposta percebeu que fazer “menos mal” ao planeta ainda não é o suficiente – é preciso não causar mal algum. (Afinal, gastar menos água ainda é gastar água.) E o melhor: esse novo discurso alivia a consciência dos ecopecadores. Com ele poderemos – não, melhor, precisaremos – fazer compras à vontade, porque assim estaremos também salvando o planeta. Já que empresas sempre vão procurar o lucro e as pessoas sempre vão querer o novo iPod ou a TV de led, o jeito é fazer isso combinar com sustentabilidade. E como isso seria possível? Imitando a natureza e reciclando os produtos eternamente. Parece difícil, mas já está acontecendo – e vai exigir uma mudança de hábito comparável à Revolução Industrial, envolvendo empresas, cidades, casas e pessoas.
À moda antiga
É assim que se reaproveitam os materiais na reciclagem tradicional. Mas, mesmo quando a garrafa pet vira brinquedo, seu destino continua sendo o lixo.
Problema
1. A garrafa é produzida para embalar refrigerante, apenas.
2. Algumas, no entanto, são reaproveitadas e viram tapetes, roupa ou brinquedos, por exemplo.
3. Mas isso não basta. O destino do brinquedo continuará sendo o lixo.
Uma dupla de pesquisadores tem trabalhado com fervor nessa, digamos, missão impossível da sustentabilidade. William McDonaugh, designer americano, e Michael Braungart, químico alemão, lançaram a nova proposta num livro chamado Cradle to Cradle – Remaking the Way We Make Things (“Do Berço ao Berço: Repensando a Maneira Como Fazemos as Coisas”). Sua teoria defende que nossos produtos de consumo sejam fabricados imitando as leis da natureza, reaproveitando todos os elementos, num ciclo de vida infinito. As empresas seriam sediadas em prédios que, assim como as árvores, produzem mais energia do que consomem (já existe uma construção assim nos EUA, que é mantida com placas de energia solar). Os dejetos seriam tão saudáveis quanto a água potável. E o mais importante: os produtos seriam feitos já pensando em como seriam reciclados e reabsorvidos pela natureza – como uma maçã que cai da árvore é reaproveitada pelo solo ao redor.
Colocando em ordem prática, isso não é exatamente difícil de fazer. Os autores testaram a lógica em seu próprio livro, que foi impresso em folhas de plástico com tinta não poluente que, ao serem folheadas, fazem um som de cartas de baralho. A publicação pode se transformar em outra desde que suas páginas sejam aquecidas e limpas de uma maneira específica. É um livro se transformando em outro – em uso interminável como a natureza. Mas a verdade é que isso pode ser feito com quase tudo: boa parte do que consumimos hoje em dia, de embalagens a eletrônicos, tem insumos suficientes para gerar novos produtos iguais aos anteriores, sem perda de qualidade. Basta que se aprendam os processos necessários para extrair, purificar e reutilizar esses insumos. No extremo ideal, seria fazer com que tudo funcionasse como as latinhas de alumínio. O caso do alumínio é espetacular: a lata pode ser reciclada infinitamente sem perder qualidade, e cada item vendido num supermercado volta a ser colocado na prateleira para o consumidor em 30 dias.
Mas o melhor exemplo para essa nova ideologia de produção é um tecido desenvolvido pela empresa suíça Rohner com a ajuda dos dois pesquisadores do Berço ao Berço. O DesignTex serve para forrar móveis de escritório – só que com uma diferença. Ele é totalmente biodegradável e seu dejeto tem impacto zero no ambiente. Para chegar a esse resultado, a empresa examinou os 8 mil materiais que normalmente são usados na fabricação de tecidos, e escolheu apenas os 16 mais seguros e de origem garantida (até o algodão ficou de fora porque seu plantio é responsável por 20% dos inseticidas usados no mundo). O resultado? “O time desenhou um tecido tão seguro que poderia ser comido”, escreve McDonaugh em seu livro. De fato, os restos de tecidos que hoje são fabricados na Rohner viram adubo para fazendeiros próximos.
Nova ordem mundial
Ampliando a proposta dos pesquisadores, a mudança é ainda mais radical. No caso dos eletrônicos, por exemplo, o que a dupla prega é que as pessoas continuem consumindo, mas que o consumo sofra uma alteração. Por exemplo, do mesmo modo que hoje uma pessoa recebe em casa um aparelho que dá sinal à TV a cabo, e depois devolve esse aparelho quando termina o contrato do serviço, o mesmo poderia acontecer com a própria TV. Os usuários receberiam uma espécie de licença para usar aquele produto e, quando não o quisessem mais ou quando quisessem trocá-lo por um mais novo, esse produto voltaria à fábrica que o produziu – que passaria a ser responsável pela reutilização de seus componentes. Essa concepção altera por completo o conceito de “posse” sobre os bens e afeta a percepção que as pessoas têm de consumo – ao mesmo tempo em que o estimula. Pela visão dos autores, é mais sustentável que os consumidores paguem pelo serviço do eletrônico, e não pelo produto em si. A comparação é com as antigas garrafas de refrigerante, que eram feitas de vidro: pagava-se pelo líquido, e a embalagem era devolvida e reutilizada. A consequência positiva desse novo conceito é que o consumismo perde o estigma ambiental negativo: você poderá trocar de aparelho de TV infinitamente sem gerar mais lixo por isso.
As empresas são as que mais vão ter de se adaptar a essa nova realidade. A ideia é que elas – e não o setor público – fiquem responsáveis pela gestão dos resíduos, ou seja, que a recepção dos produtos descartados após uso faça parte da logística da empresa. Isso, se bem planejado, poderia ser altamente lucrativo: estima-se que hoje o Brasil jogue fora cerca de R$ 5 bilhões em produtos que poderiam ser reaproveitados nos processos produtivos – especialmente os eletrônicos. Mas há uma questão ainda mais urgente no caso dos eletrônicos. Muitos deles dependem de metais pouco abundantes para serem fabricados – como o antimônio para controles remotos e o índio para TVs de lcd. Pois esses metais estão com os dias contadosna Terra: em 13 anos o antimônio estará extinto e o índio, em 4. A única maneira, então, para continuar produzindo os aparelhos será reutilizar os metais dos produtos antigos.
Essa nova concepção de sustentabilidade vai além da reciclagem tradicional – a reinserção de materiais que seriam jogados fora sem passar por processos físicos ou químicos complexos. Os produtos mais famosos dessa técnica são os feitos de garrafa PET, como árvores de natal, tapetes, roupas etc. O upcycling prolonga a vida do material descartado – mas não resolve o problema. Depois de um tempo, o dono da árvore de natal de garrafa PET vai enjoar do estilo da árvore – ou simplesmente o Natal vai passar – e o destino das PET será, enfim, o lixo. Se o Berço ao Berço pegar, ninguém mais vai ter que se contentar com reciclados mais ou menos bonitos e mais ou menos funcionais. Em vez de pensar no que será “menos ruim” pro planeta, finalmente poderemos pensar no que faz “bem” para ele.
O papel, apesar de vir de um recurso renovável (as árvores), também não é infinito. Não é possível reciclar o papel eternamente, porque suas fibras vão se desgastando.
Solução
1. Na versão do livro infinito, as páginas são feitas de plástico.
2. Quando o livro não for mais usado, a impressão poderá ser apagada.
3. Aí é só imprimir outro conteúdo nas mesmas folhas: será o livro eterno.
No berço-ao-berço, as indústrias e empresas serão responsabilizadas pelos produtos depois que eles forem dispensados. O consumidor vai comprar apenas o direito de ter o serviço – e não o produto em si.
Solução
1. O consumidor compra uma licença para ter uma TV – ele não será dono da TV física.
2. Quando a TV estiver velha, será devolvida para o fabricante, que usará os mesmos materiais em uma nova.
3. Em troca da TV antiga, o consumidor receberá uma mais moderna. E não terá gerado nenhum lixo com a troca.
Para saber mais
Cradle to Cradle: Remaking the Way We Make Things
William McDonaugh e Michael Braungart, North Point Press, 2002.