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Vendedor de problemas

Um jornaleiro faz pensar no quanto nossas escolas deixam de lado o prazer, um aspecto essencial na conquista do conhecimento.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h53 - Publicado em 31 out 1996, 22h00

Luiz Barco

Tenho estado regularmente em Bauru, no interior de São Paulo, onde gravo um programa educativo para uma emissora local. E, como os artistas de novelas, acabo sendo reconhecido na rua. Foi o que aconteceu outro dia, na rodoviária da cidade. A garota me olhou curiosa e perguntou se eu tinha algum parentesco com o Barco que escreve na SUPER. Quando eu disse que era o próprio, ela reclamou: como não era assinante da revista, gostaria que as respostas dos problemas viessem na mesma edição. Sua reivindicação me fez lembrar um trecho do livro Filosofia da Ciência (Brasiliense, 1981), de Rubem Alves: “Dê um peixe a um homem faminto. Quando o peixe acabar, e a fome voltar, ele retornará para pedir mais. Ensine o homem a pescar. Ele não voltará nunca mais”.

Nossa fome de conhecimento e de descoberta tem sido saciada por uma escola que nos dá o peixe pronto. Ou, quando muito, nos mostra como é sofrido aprender a pescar. O lúdico e gostoso da pescaria sumiu. Assim tem sido o nosso treinamento na arte de resolver situações novas. Aqueles que sabem soluções já concebidas são mendigos permanentes. Aqueles que se tornam capazes de inventar soluções são os que de fato fazem andar essa grande carruagem. E, é curioso, sentem grande prazer nas suas tarefas.

Pensava nisso enquanto conversava com minha nova amiga, que também estava esperando seu ônibus. Ao chegarmos a uma banca de revistas, vi três caixas de papelão, quase escondidas atrás do balcão do vendedor. Duas tinham etiqueta. Numa estava escrito “jornais”, na outra, “revistas”. A terceira não tinha sido etiquetada. Perguntei ao menino da banca para que serviam as caixas. Ele disse que ao final de cada semana precisa levar as sobras de jornais para um lugar e as de revistas para outro. Como seu irmão, que cuida de outra banca, é menos cuidadoso, lhe traz as sobras misturadas na caixa sem etiqueta, para que ele selecione antes de devolver. Aproveitei a camaradagem que se instalara entre nós para propor à jovem e ao menino uma velha questão. Imaginem, eu disse, que fosse colocada uma etiqueta dizendo “jornais e revistas” na terceira caixa. Se o irmão descuidado do jornaleiro fosse também brincalhão e tivesse trocado todas as etiquetas, qual o menor número de exemplares que precisariam ser pegos, e de quais caixas, para que pudéssemos recolocar as etiquetas adequadamente?

A jovem se apressou: “Com um exemplar de cada caixa eu recoloco as etiquetas no lugar. Mas vou ver se consigo resolver com um número menor”. Já o garoto pensou alto: “Você disse que ele trocou todas as etiquetas. Então, na caixa em que está escrito ‘jornais’ ou só tem revistas ou tem jornais e revistas, nunca só jornais, já que a etiqueta foi trocada”.

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Percebi que logo mataria a charada. Enquanto ele pensava, a garota emendou: “Ele tem razão. Se a gente tirar um único exemplar da caixa com a etiqueta ‘jornais e revistas’, já saberá o seu conteúdo”. Rápido, o jornaleiro concluiu: “É isso. Basta tirar um único exemplar da caixa ‘jornais e revistas’”. Por quê, perguntei? “Bem, se sair jornal é porque só tem jornal e sua etiqueta correta é ‘jornais’”, ele respondeu. E a menina completou: “A caixa ‘revistas’ não pode ter só revistas, e nem só jornais, como já vimos. Então ela certamente contém jornais e revistas. E a outra, claro, só terá revistas.”.

Nesse ponto da conversa chegou o ônibus com a etiqueta “São Paulo” e eu tive de me despedir. A garota ainda esperaria um pouco pelo ônibus com a etiqueta “São Carlos”, enquanto o garoto, mais sorridente do que antes de nosso encontro, perguntava a uma cliente: “Para onde a senhora vai?” Ela respondeu: “Para São Manuel, por quê?” Sem perder tempo, ele começou a aplicar o que acabara de aprender: “Imagine que o homem da limpeza tenha trocado todas as placas de destino dos ônibus…” A mulher, que não tinha paciência para esse tipo de conversa, cortou: “Eu só quero comprar o jornal”. O jornaleiro calou-se, mas continuou sorrindo. Ela não percebeu que ele vendia mais do que jornais.

Luiz Barco é professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo

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