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Campeões medievais dos torneios de cavalaria

Ninguém como os cavaleiros andantes conquistou a imaginação popular da Europa medieval.Cantados em prosa e verso, seus feitos venceram a passagem do tempo. Mas na vida real nem tudo era glória.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 30 nov 1988, 22h00

Então Boorz correu até os três cavaleiros e disse-lhes: “Guardai-vos de mim, eu vos desafio”. Eles ficaram maravilhados com sua coragem e, para não parecerem covardes, decidiram não atacar juntos. No primeiro que se adiantou, Boorz deu tão forte golpe de lança que o derrubou; depois, investiu contra o outro que já avançava, e também o derrubou, tão violentamente que o cavalo caiu por cima dele. O terceiro, ao ver esses lances, fugiu. Boorz não quis persegui-lo. Foi olhar os dois que havia derrubado, e Gamaliel correu até ele e lhe pediu: “Senhor Boorz, outorgue-me que fique com as armas de um desses cavaleiros”. Gamaliel pegou o elmo e a espada de um dos cavaleiros, e seu cavalo, e correu até o Castelo de Galahad, a quem rogou que o fizesse cavaleiro.” Boorz e Galahad são dois lendários cavaleiros da Távola Redonda, a qual o rei Artur instalou em seu castelo de Camelot, na Inglaterra, para significar que ali pelo menos os nobres cavaleiros eram iguais. Gamaliel é o escudeiro que acompanha seu valoroso cavaleiro e sonha ser como ele. Esse é apenas o singelo relato, devidamente traduzido para linguagem moderna, de uma das aventuras que enchem as páginas dos dois volumes de A demanda do Santo Graal — as mil peripécias vividas por aqueles cavaleiros na busca do cálice onde teria sido recolhido o sangue de Jesus, durante a crucificação.

Tudo isso é lenda, das mais encantadoras, por sinal. Mas, como tantas outras ao longo dos tempos, essa também tem suas origens solidamente fincadas na realidade. O mundo cristão vivia, na Europa, tempos difíceis, cheios de medo e ignorância. De um lado, assustava-o a derrocada dos grandes impérios que fez com que o poder se diluísse nas mãos de milhares de proprietários rurais, capazes tão – somente de prover a própria segurança; de outro, a crescente ameaça do poder muçulmano que ocupava a Espanha e Portugal e fazia incursões por toda parte. Natural, portanto, que a chegada do ano 1000 fosse precedida de profecias catastróficas, que anunciavam tudo de mau para aquele pequeno mundo espremido nos territórios onde alguns séculos depois surgiriam a França, a Alemanha, os países da Europa Central, a própria Itália e a Inglaterra do outro lado do canal da Mancha. Quando o ano 1000 chegou, nada de especialmente catastrófico aconteceu. Aconteceram, sim, modificações muito positivas na vida dos cristãos europeus. Por exemplo, eles começaram a utilizar melhor a força motriz das águas dos rios e assim puderam construir moinhos que dispensaram o uso dos trabalhadores no preparo dos cereais. Com muita mão – de – obra disponível, lançaram-se à regulagem dos rios, construíram açudes, drenaram os pântanos e conquistaram vastas áreas de terras férteis para a agricultura. Ao mesmo tempo, técnicas mais apuradas na fundição do ferro permitiram a construção de ferramentas agrícolas melhores, sobretudo arados e grades. Os arreios tornaram-se mais eficientes e, assim, a força de tração dos cavalos podia ser melhor aproveitada.

Essa renovação técnica, de aparência tão simples, provocou uma completa mudança da vida rural. Conseqüência: colheitas muito maiores, comida em abundância e pessoas mais fortes e saudáveis. Já não havia grandes períodos de fome, antes tão comuns. Mas uma outra novidade tecnológica, de aparência tão simples quanto as anteriores, iria provocar profundas modificações na arte da guerra — e, por conseqüência, na própria organização social.

Foi o estribo que permitiu ao cavaleiro firmar-se melhor sobre o cavalo, ficando com as mãos livres enquanto executava manobras complicadas. Os cristãos tinham muita dificuldade em lutar contra os árabes, muito mais ágeis, unidos e numerosos. A cavalo, os guerreiros cristãos puderam proteger-se melhor, com escudos e armaduras de metal, e usar lanças e espadas mais pesadas. O resultado imediato foi o abandono das táticas de arremesso de projéteis com arcos ou catapultas: O combate passou a ser um encontro corpo a corpo.

Outra conseqüência imediata foi a especialização dos guerreiros. Já não bastava recrutar camponeses a esmo para a batalha. Esses guerreiros precisavam de cavalos, armaduras, escudos, espadas e lanças. Tudo muito dispendioso — só os nobres, ou seus protegidos, tinham condições, então, de se dedicar à carreira das armas. Embora as canções de gesta, os poemas medievais que narram aventuras guerreiras, falem de jovens plebeus que se ordenavam cavaleiros, “a maioria dos que constituíam a cavalaria eram senhores feudais e talvez os que entre eles possuíssem apenas o cavalo fossem exceção”, observa o professor Vítor Deodato da Silva, que há 26 anos leciona História Medieval na Universidade de São Paulo.

O que fazia, de fato, um cavaleiro desses? Se fosse de família rica, poderia custear seu próprio aprendizado. Mais comum, porém, era ser de boa linhagem familiar, mas de escassos recursos. Dependia, então, da generosidade de algum rico senhor, que o financiava até a ordenação; a partir daí, ele se integrava ao exército desse nobre, participando de suas guerras particulares. Até os 12 anos o aspirante a cavaleiro vivia com a família, aprendendo os rudimentos de equitação, a caça e o manejo das armas. A partir daí, já no castelo do padrinho, completava sua educação. E, enquanto aprendia, trabalhava como serviçal servindo à mesa, limpando as armas, cuidando dos cavalos.

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Um capítulo importante de sua formação era o aprendizado da ética da cavalaria, baseada em três grandes princípios: lealdade e fidelidade à palavra empenhada; generosidade, proteção e assistência aos necessitados; obediência à Igreja e defesa dos sacerdotes e de seus bens. Na condição de escudeiro, o candidato acompanhava o senhor na caça, nos torneios ou na guerra. Sua ordenação coincidia, geralmente, com uma grande festa religiosa ou civil. Antes do grande momento, o futuro cavaleiro confessava seus pecados, comungava, passava uma noite em vigília de armas. Só depois recebia do padrinho a espada, as esporas, a cota de malha, o elmo, o escudo e a lança.

No mundo da fantasia, os cavaleiros viajavam de um lado para outro, combatiam mouros e infiéis, dragões, feiticeiros, outros cavaleiros — e suspiravam por suas donzelas. Na vida real, sua existência era um pouco diferente, embora pelo menos o capítulo das mulheres se aproximasse bastante do que constava nas canções de gesta. O pai de Lalang, um bravo cavaleiro francês, recomendou-lhe: “Poucos homens nobres alcançaram a alta virtude da proeza se não tiveram uma dama ou uma donzela de que estavam apaixonados”. Pelas damas faziam-se promessas difíceis, extravagantes mesmo. Os companheiros de armas do rei inglês Eduardo III juraram às suas damas, em 1337, que andariam com um olho tapado por uma pala preta enquanto não cumprissem determinada façanha.

Uns mais, outros menos fantasiosos, os romances de cavalaria giravam, em geral, em torno do interminável conflito entre os Capeto — a dinastia que dominava, entre 987 e 1328. o território que viria a ser a França — e os Plantageneta, que dominaram a Inglaterra de 1154 a 1485. Essas autênticas guerras particulares foram um dos traços marcantes da sociedade medieval européia.

A guerra, mais do que um esforço para conquistar territórios, era uma busca de despojos. Os bens saqueados do adversário vencido serviam para pagar aos mercenários, fortificar o castelo, recompensar os vassalos. Naturalmente, os cavaleiros que acompanhavam os senhores beneficiavam-se desses saques — os cantados ideais cavalheirescos não implicavam nenhum respeito especial pelos adversários vencidos ou por suas fortunas. Em geral, as lutas eram suspensas em novembro, com a chegada do inverno, e só recomeçavam em março, com a primavera. Mas, a partir do século XII, a Igreja começou a impor aos nobres guerreiros suas próprias restrições. Tornaram-se tantas, com o correr do tempo, que houve época em que era proibido atacar mulheres, crianças, comerciantes, agricultores, padres, moinhos, igrejas, colheitas, animais domésticos. E guerrear durante a Quaresma, a Páscoa, Pentecostes e da noite de sexta-feira até a manhã da segunda. Ninguém se arriscava a desrespeitar essas regras; o castigo era a excomunhão — terrível, pois quem não fosse cristão na Europa daquele tempo estava banido da sociedade, literalmente.

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À medida que cresciam as restrições à guerra de verdade, os cavaleiros passaram a dedicar-se mais e mais aos torneios, que se tornaram a principal diversão do povo. A maioria se realizava na França, e era comum os cavaleiros ingleses atravessarem o canal para participar deles. Guilherme Marechal, talvez o mais famoso cavaleiro inglês desse tempo, levou essa vida de viagens constantes durante 25 anos, acompanhando seu senhor, primeiro o rei Estêvão, em cuja corte cresceu e se educou, e depois o filho do rei Henrique II. Na época, só o filho mais velho herdava os bens da família. Como Marechal não era primogênito, precisou dedicar-se à carreira das armas para fazer fortuna e conquistar suas terras.

A organização de um torneio envolvia muita gente e dinheiro. Era preciso alojar os participantes, oferecer-lhes banquetes e festas, que alegrassem as noites. Os combates começavam ao raiar do dia e só terminavam à noite e eram uma atividade de equipe. Num descampado sem limites precisos, erguiam-se áreas neutras cercadas de madeira onde os cavaleiros descansavam entre um combate e outro.

De cada lado do campo se postava numerosa tropa. Era um festival de cores: bandeiras, lenços, braçadeiras azuis e brancas, lanças azuis, vermelhas, douradas, prateadas, listradas; elmos de ferro coloridos reluziam ao sol. Cotas de malha, escudos, espadas e cavalos magníficos ajudavam a compor o belo cenário. Os combates eram singulares, cavaleiro contra cavaleiro. Eles se golpeavam com as lanças, pois o objetivo era apenas derrubar o adversário — vestido com armadura tão pesada, fora do cavalo, no chão, o combatente ficava imobilizado. O vencedor ficava com o cavalo, os arreios e as armas do vencido, que se tornava seu prisioneiro. Para se libertar, era obrigado a pagar resgate.

No último dia do torneio, o cavaleiro considerado mais valente e cortês recebia um prêmio simbólico da mais nobre entre as damas presentes. E assim, de torneio em torneio, de aldeia em aldeia, sob o comando de um príncipe ou conde, os cavaleiros viviam suas aventuras e conquistavam fortuna. Mas, fora desse pequeno mundo fantástico e maravilhoso, o mundo real mudava. As grandes colheitas transformavam-se em riqueza, que fomentava o comércio, a circulação de mercadorias e bens em geral. A necessidade de segurança para essas atividades fez com que o poder, pouco a pouco, escapasse das mãos dos senhores feudais. Arcos e bestas capazes de atirar flechas e dardos com força prodigiosa começaram a violar a invulnerabilidade das armaduras.

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Finalmente, quando por volta do século XIII se acertaram no Ocidente o refino do salitre e as proporções em que ele deveria ser misturado ao enxofre e ao carvão de madeira, a pólvora começou a fazer ouvir sua voz potente — e junto com a inexpugnabilidade dos castelos e das armaduras desmoronou aquele reino de ócio, privilégio e fantasia.

“O desgaste da cavalaria está ligado à evolução das técnicas de guerra e a modificações dentro do próprio sistema feudal”, explica Vânia Leite Fróes, professora de História Medieval na Universidade Federal Fluminense. À medida que o poder dos reis foi-se fortalecendo, as tropas particulares cederam espaço aos exércitos nacionais. E quando Guilherme Marechal morreu, em 1219, a cavalaria andante de que ele era um paradigma já começava a exibir sinais de decadência, que logo a tornaria um ponto apenas na efervescente cultura européia.

Uma figura quixotesca

Inspirado nos romances de cavalaria dos séculos XII e XIII, o espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) escreveu, em pleno século XVII, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, um romance que satiriza os cavaleiros andantes, já completamente fora de moda na época. Dom Quixote, ou o Cavaleiro da Triste Figura, como ficou conhecido, era magro, alto e meio capenga. Seu cavalo também era uma tristeza: velho e desnutrido, chamava-se Rocinante, em alusão ao rocim, um tipo de cavalo de tração, empregado nas lavouras européia. No Brasil, seria o popular pangaré. Dom Quixote não passava de um fidalgo espanhol empobrecido chamado Alonso de Quijano, que certo dia resolveu tomar como verdades as façanhas dos heróis dos livros, tornando-se um deles.

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Sua ordenação deu-se num albergue que ele imaginava ser um castelo; como elmo, que ele acreditava mágico, usava na cabeça uma modesta bacia de barbeiro. Sua paixão ideal e impossível, Dulcinéia, que ele supunha ser uma linda donzela, era uma simples camponesa. Seu escudeiro, um simplório camponês de nome Sancho Pança, embarcou muito a contragosto nas miragens do estranho cavaleiro e senhor, seguindo-o fielmente, à falta de alternativa. Assim, os dois percorreram a Espanha travando inglórias batalhas contra moinhos de vento, que na imaginação de Quixote eram imensos gigantes maus. Talvez o primeiro anti-herói da literatura ocidental, Quixote fez de sua vida uma sucessão de equívocos. Quando volta à sua aldeia, já quase à morte, recupera a razão e torna a ser Alonso de Quijano. É o triunfo da vida real sobre os dourados castelos que os romances de cavalaria construíam no ar.

As armas dos barões

Poucos vestígios restaram dos armamentos que os cavaleiros utilizavam. A partir de desenhos e descrições literárias, os historiadores reconstituíram o pesado equipamento militar medieval:Cota de malha: espécie de túnica de ferro ou aço que ia até os joelhos. Um capuz envolvia o pescoço, a nuca e o queixo. Composta por cerca de 30 mil anéis, pesava até 12 quilos. No século XIV, acrescentaram-se placas de ferro ou latão, aumentando o peso da armadura em prejuízo da flexibilidade do cavaleiro.Elmo: a princípio um capacete de aço com uma calota em cima. De um aro espesso na base pendia uma barra de ferro retangular para proteger o nariz. Com o tempo, a parte de trás desceu até a nuca e a barra passou a proteger também as faces.Escudo: em forma de amêndoa, media 1,5 metro de altura por 70 centímetros de largura. Uma ponta permitia fixá-lo ao chão. À medida que a cota foi reforçada por placas, perdeu importância como proteção, tornando-se menor.Espada: a mais comum era a “normanda”, com 1 metro de comprimento, pesava 2 quilos. Era usada com as duas mãos — mais para espancar os adversários do que para perfurá-los.Lança: a haste era feita de madeira rígida e a ponta de ferro tinha a forma de losango, folha ou cone. Costumava medir 3 metros e pesar entre 2 e 5 quilos.

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