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Corrida do queijo

11.148 caracteres de literatura

Por Clara Madrigano
Atualizado em 24 out 2020, 18h22 - Publicado em 24 abr 2018, 17h22

Meu pai acha que os Beatles definiram a cultura do século 20. Ele costuma categorizar as coisas entre o antes e o depois dos Beatles; ou, de uma forma mais abrangente, o antes e o depois dos anos 60, quando a sociedade mudou de uma forma radical, um movimento que meu pai sempre viu capitaneado pelos Beatles. Eu fico imaginando como eu definiria o século 21, aquele em que eu nasci e cresci, e a única coisa que me vem à cabeça é dizer que foi o século em que se tornou popular usar maquiagem na academia, e que também é o século em que o Kanye interrompeu de uma forma triunfalmente patética o discurso de agradecimento da Taylor Swift em um VMA. É o século do YouTube. Do Facebook. É o século com o primeiro presidente negro dos EUA, e o século em que disseram que o Brasil ia para frente, mas aí não foi, e agora ninguém sabe para onde vai. É o século da Lady Gaga. Eu não estou dizendo que qualquer uma dessas coisas seja mais relevante do que os Beatles; o século 21 ainda é muito novo, pode ser que nosso grande artista nem tenha nascido. O que eu quero dizer é que a História é uma coisa engraçada, e que às vezes temos por certo que as coisas que julgamos importantes são aquelas que vão sobreviver, mas nunca dá para ter certeza. Pode ser que, a milênios daqui, alguma raça alienígena decida que a humanidade foi realmente importante porque inventou uma corrida em que um bando de pessoas sai descendo por uma colina lá na Inglaterra atrás de um queijo rolante. A humanidade é surpreendente, e não de uma forma positiva ou negativa, mas só aleatória.

(Helena Sbeghen/Superinteressante)

Eu cogito perguntar isso para o meu pai, o que ele acha que tem mais chances de sobreviver ao tempo: os Beatles ou a corrida do queijo, mas ele está muito concentrado na estrada, com No Reply tocando a toda no aparelho de CDs do carro (meu pai nunca fez o salto para o streaming).

– Você sabe ­– eu digo, mas volto atrás, não quero mesmo falar do queijo. – Essa música aí é meio bizarra.

– Quê? – meu pai pergunta.

– É sobre um cara que fica espionando a garota e se escondendo debaixo da janela dela. Só escuta. É um stalker.

Meu pai me olha, faz uma careta, como se não soubesse bem aonde eu quero chegar.

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– Bom, no tempo deles…– meu pai começa, mas nem dou a chance:

– Vai, você mesmo me disse que a melhor fase dos Beatles começa depois do Rubber Soul. A fase baladinha deles é a pior.

– Eu sei, mas ainda são os Beatles – diz o meu pai. – O que significa que, mesmo na pior fase, eles eram melhores do que todo mundo – e, de qualquer forma, nós não estamos indo ver a fase pós-Rubber Soul, como eu faço questão de me lembrar.

Nós pagamos salgado pela simulação. Digo, meu pai pagou. Eu ainda tenho dezoito anos, e nem de longe a capacidade financeira de bancar uma experiência assim. Para o meu pai, é a realização de um sonho. A simulação chegou ao Brasil faz alguns meses, e está sediada em São Paulo. Meu pai e eu estamos, no momento, cruzando os limites entre Sul e Sudeste, subindo para a grande capital paulista e sua feiura de concreto. A simulação está instalada em uma universidade, e é para lá que vamos depois de largar as coisas no hotel. No subsolo da universidade, já há uma fila. Passamos por uma pequena triagem, e então somos levados para uma sala relativamente luxuosa, bebidas de graça, ainda que nada com álcool, canapés, ar-condicionado e poltronas reclináveis nos mantendo confortáveis. Depois, os assistentes da empresa que criou a simulação nos guiam até salas que têm um estranho aspecto hospitalar. Um dos assistentes indica uma cadeira para mim, outra para o meu pai. São cadeiras que parecem demais com as de um dentista, e meu coração está pulando, mas gastamos dinheiro demais por essa brincadeira.

– Vai doer? – eu pergunto, me sentindo uma criança.

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– De jeito nenhum – diz o assistente responsável por nós. Ele usa um uniforme cinza, igual ao de todos os demais colegas.

Ele injeta algo na minha veia, algo gelado, que logo me dá uma sonolência, e aí, quando já estou deitada, meio grogue, ele encaixa o capacete na minha cabeça.

E então eu estou lá. No Washington Coliseum. No meio de uma baderna ensurdecedora, completamente perdida. Sinto alguém segurar a minha mão, e é o meu pai, com uma expressão atônita que parece refletir a que eu imagino ter. Está acontecendo. Primeiro, sinto o cheiro de suor e de milhares de perfumes diferentes. Garotas e garotos, todos trajados a la 1964. Estamos no primeiro show dos Beatles em solo americano. Eu olho para o palco e lá está o quarteto, sacudindo as cabeleiras, cantando e tocando debaixo das luzes quentes, que quase me cegam. Mal se escuta a música, no meio de tantos gritos. Olho à volta e identifico mais uma pessoa, acotovelada entre o público, que parece chocada demais; é um rapaz, e acho que o reconheço da sala de espera. Parece ser algo que todos nós compartilhamos, os usuários da simulação: aquela cara de incredulidade.

– Caramba – eu digo.

– Caramba – meu pai repete, e logo estamos rindo, e não sei exatamente por quê.

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Os Beatles precisam trocar as posições dos instrumentos de vez em quando, para girar sobre o palco e poder encarar cada parte do público abrigado naquela arena coberta. É estranho, no começo, até que deixa de ser; até que você finalmente é vencida pelos sentidos e começa a aceitar o que está vendo como real. E os Beatles parecem tão reais. E John Lennon parece tão sólido, como se eu pudesse me aproximar do palco e tocá-lo. Eu estou começando a curtir, me esquecer de que é só simulação, só uma mentira, e os Beatles já estão tocando há uns 15 minutos quando percebo alguém se aproximar.

– Oi – é um homem, falando em inglês, e só me dou conta de verdade dele ao escutar sua voz, que soa perto demais do meu ouvido. Quase dou um pulo, e o homem ergue as mãos, como se para mostrar que não oferece ameaça nenhuma. Ele é alto e loiro e usa um rabo de cavalo. Um reconhece o outro. Ele é como eu, como eu e meu pai, uma criatura do futuro, e não do mundo da simulação.

– Oi – eu respondo, também em inglês. Os lábios dele se movem, mas não escuto nada. – O quê?

Ele se inclina mais:

– Onde estamos agora? – e faz um gesto giratório com o indicador, e entendo que ele quer dizer o planeta, o mapa-múndi.

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– Brasil – eu digo.

– Brasil. Legal.

– Como é que você não sabe onde a gente tá? De onde você se conectou?

O homem sorri.

– De Helsinki – ele diz. – Estou na simulação já faz alguns meses. Eu sou engenheiro. Eu fiz aquilo – e ele aponta para o palco. Dá para perceber um sotaque duro debaixo do inglês. – E o que está lá fora – ele usa o dedão para indicar algo acima dos ombros, para além das paredes.

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– O que está lá fora?

– O mundo – o homem ri. – Os anos sessenta – mas eu percebo que responder às minhas perguntas não é bem o que ele tem em mente. É ele que quer ter a curiosidade saciada. – Me conte alguma coisa. Algo sobre o outro lado. O que está acontecendo?

Digo a primeira coisa que me vem à cabeça:

– Donald Trump é o presidente dos Estados Unidos.

–Ah – o homem parece decepcionado. – Eu já sabia disso.

– Ei, algum problema? – quem faz a pergunta é meu pai. O homem o encara, parece alarmado com alguma coisa e se afasta, vai se embrenhando no meio da multidão e desaparece, antes mesmo que eu consiga perguntar seu nome.

– Quem era ele? – Meu pai quer saber, a testa com uma ruga de dúvida.

– Ele disse que é um dos engenheiros da simulação – eu conto. – Que fez a simulação. Parece que eles estão construindo mais coisas aí fora. Quer ver?

Mas meu pai segura a minha mão.

– Eles nos disseram para não sair da arena – diz.

Eu não protesto, apesar da curiosidade. Depois de trinta minutos, retornamos ao mundo real, ainda tontos enquanto retiram nossos capacetes. Nós somos levados de volta à sala de espera, agora para descansar, beber água, deixar os sentidos se recuperarem. A simulação leva algum tempo para se dissipar. Por até quinze minutos depois, eu ainda sou capaz de cheirar a arena do Washington Colliseum, de escutar as músicas dos Beatles como um eco distante no ouvido. Me sinto drogada. Me sinto feliz, sem muitos freios.

(Helena Sbeghen/Superinteressante)

– É verdade que vocês estão construindo mais coisas dentro da simulação? – Eu pergunto para uma mulher que vem checar a nossa temperatura. A mulher me olha com surpresa, e um pouco de desconfiança.

– Quem disse isso? – ela pergunta. Mas nem me dá tempo para responder: – Não. Estamos planejando simular mais shows, mas não para agora – ela constata que a nossa temperatura já está normalizada e depois nos libera. Passamos uma noite no hotel, meu pai e eu, dormindo profundamente, mentalmente exaustos pela simulação. Retornamos para casa no dia seguinte, cantando as músicas dos Beatles que os CDs tocam. Nem imaginávamos que o Brasil seria uma das últimas paradas da simulação. A empresa declararia falência alguns meses depois.

***

Um ano mais tarde, a verdade viria à tona: engenheiros da simulação haviam realizado uma espécie de motim, dando um jeito de se conectar permanentemente a ela; eles queriam refazer o mundo a partir daquele ponto, 1964. Mudar a História, tornar o planeta um lugar melhor, impedir guerras, massacres, o 11 de Setembro; queriam um presente diferente do nosso, ou foi o que disseram. Agora, a empresa tem um problema bem grande em mãos: corpos de vários funcionários conectados à rede que eles criaram, em várias partes do mundo, alimentados por sondas e que não podem ser simplesmente desligados sem causar morte cerebral, o que seria assassinato. A empresa está sendo acusada de todas as violações possíveis. “Mas como é que deixavam essas pessoas conectadas 24 horas por dia e esperavam que elas não enlouquecessem?”, um apresentador americano perguntou, e existe muita verdade nisso. Como?

– Você faria? – pergunto para o meu pai, quando estamos vendo uma matéria sobre os engenheiros rebeldes. Na internet, eles se tornaram uma espécie de heróis; existem vários grupos dedicados a escrever uma História Alternativa e a construir suas próprias simulações, mas falta a tecnologia certa na mão de meros mortais como nós.

– Não – meu pai diz, depois de alguns segundos de contemplação. – Não seria real.

– Mas você pensaria que é – eu digo. – Não se lembra? No show? Como era sentir tudo aquilo… o cheiro, os sons.

– Sim – meu pai concorda. – Mas eu sabia que não era real. Aqui, no fundo da minha mente – ele bate um dedo contra a têmpora. – Não dá
para ignorar.

–Nem com o tempo?

Meu pai meneia a cabeça.

– Por que deixar para trás tudo que eu já tenho aqui? –ele pergunta, enfim.

– Para ser alguém novo.

– Eu já sou a pessoa que eu tinha que ser – meu pai diz. – Não dá para fazer mais do que isso.

Eu não insisto, porque a verdade é que eu também não trocaria o mundo em que vivo pela simulação. Mas frequentemente eu gostaria de poder espiar esse mundo novo que os engenheiros estão criando. Será que ainda estão em 1964? Às vezes, tudo isso me parece mágico, um universo paralelo ao alcance do nosso, como Nárnia ou Hogwarts. Outras vezes, me parece só uma enorme besteira. Mas aí eu penso em pessoas rolando por colinas, atrás de um pedaço de queijo, e considero que é bem possível que nosso mundo também seja uma simulação, e que quem quer que tenha nos criado, nos colocado aqui, tenha um senso de humor bem estranho.

Clara Madrigano é escritora e editora. É também uma das donas da Dame Blanche, que publica novelas de fantasia e ficção científica.

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