Design – A forma das coisas
Olhe ao seu redor: todos os objetos que você vê certamente são úteis para alguma coisa. Mas cada um deles também foi projetado para seduzir as pessoas com atributos que extrapolam a simples função prática. É aí que entra o design
Texto Mariana Sgarioni
Você está sentado? Calma, o que você vai ler nas próximas páginas não é nenhuma catástrofe. Apenas repare com alguma atenção no lugar em que está sentado. Seja lá um banco, uma cadeira, um sofá. Preste atenção também em tudo o mais que estiver ao seu redor. Se estiver tomando um café, por exemplo, aposto que você não queimou a mão – isso graças a uma quase imperceptível asa na xícara que foi, de caso pensado, instalada para facilitar seus goles e evitar bolhas na mão.
Vivemos rodeados de objetos especialmente inventados para nos agradar. Somos livres para escolher aquilo que mais nos apetece, é verdade. Mas, lá do outro lado, existem profissionais, os designers, pesquisando e criando coisas para resolver nossos percalços, desde a colherzinha que mexe o nosso café até o carro que nos leva para cima e para baixo. Muito bem. É sobre isso que vamos falar aqui: sobre esse amontoado de tralhas que nos rodeia e que, sabe-se lá como, foi parar aí.
Se você acha que nossas vidas estão entupidas de coisas sem muita razão de existir, é bom lembrar que tudo tem sua importância, sim. Ninguém consegue passar a vida inteira num espaço vazio. “Vivemos em ambientes repletos de objetos que definem a relação que temos com o mundo”, afirma Chico Homem de Melo, professor de programação visual da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “A forma como a cadeira do chefe é posicionada, por exemplo, determina a relação que ele mantém com sua equipe: muitas vezes ela é maior, mais confortável e fica com o assento ligeiramente mais alto que as demais. Pronto, a relação hierárquica está estabelecida sem que uma palavra seja pronunciada.” Segundo ele, o ponto zero dessa história toda é a roupa que escolhemos vestir em cada ocasião – uma roupa preta num velório é capaz de transmitir sentimentos de luto. Já um smoking numa festa de casamento passa formalidade, elegância.
“Os objetos são uma forma de interagirmos com os outros. Eles servem para que sejamos aceitos socialmente, para nos tornar mais adequados à sociedade em que vivemos. Quando você compra um sofá, certamente pensa também nos seus amigos que vão se sentar nele”, afirma a designer Vera Damazio, autora da tese Artefatos de Memória da Vida Cotidiana – um Olhar sobre as Coisas que Fazem Bem Lembrar, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Como escolhemos as coisas
Já que precisamos dos objetos para compor nossas relações, de que forma então os escolhemos? Não há como negar que alguns parecem nos atrair mais do que outros – tanto é que muita gente confessa já ter comprado um livro ou disco só por causa da capa. Mesmo na hora de comprar um eletrodoméstico, em que, à primeira vista, a funcionalidade estaria em primeiro lugar, temos lá nossas preferências – que nem sempre são tão lógicas como se imagina. “Quem comanda as nossas escolhas são as emoções. Elas estão em tudo pelo que optamos. Servem, inclusive, de guia para o nosso comportamento”, diz o psicólogo americano Donald A. Norman, professor da Universidade Northwestern, em Illinois, e autor do livro Emotional Design – Why We Love (or Hate) Everyday Things (“Design Emocional – Por que Adoramos [ou Odiamos] os Objetos do Dia-a-Dia”, sem tradução para o português). Segundo ele, quem entra em ação nessa hora é o sistema afetivo – o responsável, em nosso organismo, por julgar o que é bom ou ruim, seguro ou perigoso. Nada a ver com a razão ou com a lógica.
O neurologista português Antonio Damásio, da Universidade de Iowa, nos EUA, endossa essa idéia. Autor do livro O Erro de Descartes – Emoção, Razão e o Cérebro Humano, ele afirma que, diferentemente do que dizia o filósofo francês (que imortalizou a máxima “penso, logo existo”), a tomada de decisões do ser humano está diretamente ligada à capacidade de sentir. A explicação para esse fenômeno é simples: quando nos deparamos com algo que julgamos atraente, isso nos causa uma sensação de bem-estar.
A emoção positiva de um belo objeto é imediatamente lida por nosso cérebro como vinda de uma coisa boa, funcional. “É por isso que escolhemos sempre aquilo que nos parece mais bonito, e não coisas que são apenas uma utilidade pura e simples. Até porque as coisas bonitas, por causarem uma boa sensação, também nos dão a impressão de funcionarem melhor”, diz Donald. Deve ser por essas e outras que achamos que aquele carrão lindo e lustroso anda muito mais rápido do que o nosso velho, empoeirado e riscado possante – ainda que os dois tenham exatamente o mesmo motor. Ou que um iPod branco e moderno toca um som muito mais puro do que um toca-mp3 qualquer, sem o sobrenome Apple, de especificações técnicas idênticas. “A funcionalidade não explica o mundo. Não dá para pensar que cadeira só serve para sentar ou texto só serve para ler”, diz Chico Homem de Melo, da FAU-USP.
O que é design
Como a beleza é fundamental, eis que surgiram os designers para colocar o belo na nossa vida cotidiana. Eles são os responsáveis por fazer dos objetos muito mais do que meros utensílios – os objetos devem ser também capazes de melhorar nossa vida, de deixá-la mais bonita.
A definição de design é controversa até mesmo entre os designers. É algo bem parecido com aquela velha discussão sobre o que é arte. O Dicionário Aurélio define design como “concepção de um projeto ou modelo”. Steve Jobs, presidente-executivo da Apple, costuma dizer que o design é “a alma das criações humanas”. Não foi à toa que ele ergueu a empresa investindo na fabricação de computadores esteticamente irresistíveis. Hoje em dia, comprar um produto com a logomarca da empresa, a maçã mordida, é sinônimo de modernidade, status. E não pense você que foi só a Apple que percebeu o quanto a beleza vende. Num mundo em que a eficiência, durabilidade e qualidade dos produtos são semelhantes, de que forma é possível chamar a atenção do consumidor? Pela beleza, pela diferença – pelo design. Portanto, as empresas têm apostado todas as fichas no negócio, a ponto de consultores e analistas atestarem que vivemos na economia do design. Afinal de contas, está nas mãos dos designers o poder de criar coisas dirigidas para nos agradar e assim nos convencer – ou não – a comprar algo. Ou seja: eles influenciam diretamente a forma gastamos nosso dinheiro. “Como a criatividade acaba sendo o motor do crescimento econômico, a classe criativa [da qual fazem parte os designers] está se tornando a classe dominante da nossa sociedade”, escreve Richard Florida, professor de economia na Universidade Carnegie Mellon, na Pensilvânia (EUA), no livro The Rise of the Creative Class (“A Ascensão da Classe Criativa”, sem tradução para o português).
“Todos os objetos que criamos são uma extensão do que o nosso corpo não pode fazer”, afirma a designer Vera Damazio. “O carro é uma extensão dos nossos pés; as armas, da capacidade de nossas mãos nos proteger, e assim por diante. Foi assim que começamos a inventar as coisas, para vencer o meio, que é muito hostil.”
A partir daí, é possível dizer que o design, então, está longe de ser somente a arte de fazer coisas bonitas e sedutoras. As coisas devem ser belas, sim. Mas também devem ser funcionais, úteis. Foram designers, por exemplo, que deram um jeito de comprimir aparelhos de emergência médica para que coubessem dentro de uma ambulância ou de um helicóptero. Além da forma e da função, as coisas ainda têm que carregar um significado: este é o terceiro elemento do design. Se a cadeira em que você está sentado tem algum tipo de ornamento, além de exibir formas bonitas e ser confortável, ela carrega também um significado – é um instrumento de expressão do designer. Pois é aqui, no campo dos enfeites, que o mundo do design de hoje se diferencia do que era feito no passado.
Design para as massas
O surgimento da escola Bauhaus, na Alemanha dos anos 20, pode ser considerado o pulo-do-gato para a idéia de design que temos hoje. Até então, os objetos eram produzidos em pequena escala, quase artesanalmente. Fundada pelo alemão Walter Gropius, a Bauhaus reunia arquitetura, artes plásticas, escultura e desenho, a partir da necessidade de fabricar objetos em quantidade industrial. Sob a influência do modernismo da época, tudo era desenhado geometricamente, com poucas cores, e a forma deveria servir à função. Ou seja, a beleza do objeto deveria ser útil para alguma coisa. E ponto final. Tudo o que fosse ornamento sem sentido prático deveria ser cortado. Após a Segunda Guerra, a Universidade Gestaltung, criada na cidade de Ulm, adaptou a filosofia da Bauhaus às exigências da indústria atual. Só que logo surgiram outras preocupações: seria mesmo possível viver num mundo tão objetivo assim, desprovido de qualquer significado? O design deveria apenas atender à produção em massa?
A primeira questão fica fácil responder. Por mais que quisessem, nem mesmo os modernistas conseguiram o feito de resumir as coisas somente em forma e função – até porque o próprio conceito de belo, baseado nas linhas geométricas, já tinha algum significado, tinha uma mensagem, queria dizer alguma coisa. Sem contar que, muitas vezes, o significado atribuído a determinada coisa independe da vontade do projetista – um banco que lembra as tardes que você passava com sua avó, por exemplo, é carregado de uma emoção um tanto particular. Segundo Vera Damazio, nesses casos, os objetos adquirem significado porque estão o tempo todo ali, testemunhando passagens da nossa vida. “Quanto mais velhos ficamos, menos neutros ficam os objetos à nossa volta. A gente mede a maturidade de uma pessoa a partir da história das suas coisas”, diz.
Foi então que chegamos à definição mais próxima do design que é feito hoje em dia: projetar o mundo dos objetos levando em conta seus valores culturais, estéticos e funcionais. O que não significa que estes valores não possam, muitas vezes, cruzar-se ou ainda andar separadamente – com certeza você já deparou com uma cadeira onde é impossível sentar. Outro exemplo: tem muita gente que desenha um calendário com a intenção de aquilo ser uma obra com uma mensagem a passar e não exatamente algo para anotar uma visita ao dentista no dia tal de tal mês. E você acaba comprando para enfeitar uma parede da sua casa, deixando atrás da porta, para rabiscar e usar, o calendário que ganhou de brinde na papelaria.
O design está em tudo
Com isso em mente, vem a segunda questão lá de trás: só é considerado design algo que foi concebido para a produção em massa? Ou melhor: o que podemos considerar design, afinal de contas? “Historicamente, nós nos acostumamos a associar design a tudo aquilo que tem uma forma geométrica e pouca variação de cor. Na verdade, existem lugares na Europa, por exemplo, em que o design está ligado ao artesanato, à perpetuação das técnicas rudimentares”, diz João de Souza Leite, professor da Esdi (Escola Superior de Desenho Industrial) e da PUC-RJ. “Por isso, considero design o ato de projetar e tudo aquilo que for objeto de um projeto.” Isso quer dizer que tudo, absolutamente tudo estaria incluído nessa miscelânea – inclusive seu corte de cabelo (é por isso que alguns salões de cabeleireiros têm as palavras hair design estampadas no letreiro?), o formato da sua sobrancelha esculpida com capricho, e até mesmo o verdinho-claro da alface do sanduíche do McDonald’s, denominado food design.
O design pode parecer estar em tudo, mas nem tudo o que é design faz sucesso. Para funcionar, um design precisa ser único. Os produtos que, por meio da forma, função e significado, conseguem se diferenciar dos demais certamente vão atrair nossos olhos. É o caso, por exemplo, da inconfundível garrafinha de Coca-Cola. Ela apareceu em 1915, quando todas as garrafas de refrigerante eram rigorosamente iguais. Seu desenho ergonômico e sedutor ganhou pela diferença e virou marca registrada. O mesmo aconteceu com o frasco do perfume Chanel nº 5, um ícone no mundo da perfumaria – suas linhas retas e secas romperam um universo de frascos curvilíneos, característicos das formas femininas. “O ser humano anseia por individualização. Ninguém quer ser massa. Todo mundo quer garantir sua identidade pessoal, sua marca, sua diferença. E assim acontece também com os produtos que escolhemos ter em casa”, diz João de Souza Leite.
Há quem defenda, no entanto, que o diferente pelo diferente nada quer dizer. Nem o bonito pelo bonito, muito menos o funcional pelo funcional. Então qual seria o papel do design a partir de agora? “O design tem que favorecer as relações sociais, proporcionar momentos com os outros, cuidar da sociabilidade. Só assim ele ficará gravado na memória”, afirma Vera. Para ela, a graça da garrafa de Coca-Cola são as lembranças que ela evoca – normalmente envolvendo outras pessoas. Por isso tanto sucesso. Talvez então os designers, que já vêm controlando o que sentimos por meio de cores, formas, texturas, estejam diante de um novo desafio: provocar respostas emocionais mais profundas, cavar relacionamentos. Algo como criar guarda-chuvas bem grandes, prontos para oferecer uma carona em dia de tempestade.
Para saber mais
Emotional Design – Why We Love (or Hate) Everyday Things – Donald A. Norman, Basic Books, EUA, 2005
Alexandre Wollner e a Formação do Design Moderno no Brasil – André Stolarski, Cosac Naify, 2005
The Rise of the Creative Class – Richard Florida, Basic Books, EUA, 2004
O Erro de Descartes – Emoção, Razão e o Cérebro Humano, Antonio R. Damásio, Companhia das Letras, 1996
https://www.designandemotion.org – Site da Sociedade Design e Emoção, sediada na Holanda