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Em busca da bola da Copa

Nosso repórter foi até os confins do Paquistão procurar a bola que irá atrair a atenção do mundo no ano que vem, na Copa do Brasil

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 7 abr 2014, 22h00

Maurício Horta

O carro está a poucos quilômetros da tensa fronteira entre duas potências nucleares arqui-inimigas: a Índia, de maioria hindu, e o Paquistão, território muçulmano. Estamos em um dos territórios mais militarizados do mundo. À beira da estrada empoeirada, pastores com turbantes conduzem suas ovelhas pintadas com hena em direção ao mercado de animais, onde elas serão vendidas para o sacrifício no feriado islâmico do Eid al-Adha. Conforme as pequenas plantações de arroz vão dando espaço a bazares apinhados, o trânsito de riquixás, motos e minicarros Suzuki engrossa. Nas ruas, nenhuma criança chuta bolas.

Aí o carro para diante de uma rotatória. No centro dela há um monumento dourado com uma enorme bola de futebol no topo. Estou em Sialkot, conhecida como a capital mundial da bola de futebol. Minha missão para a SUPER? Encontrar a Brazuca, bola oficial do Mundial de 2014, antes de 3 de dezembro de 2013, quando o véu de segredo será levantado e a Adidas anunciará a bola para todo o planeta.

Na década de 1990, Sialkot produzia três de cada quatro bolas de futebol do mundo. Hoje, a competição chinesa lhe deixou com cerca de 40% do mercado global. Ainda assim, entre as bolas costuradas à mão – que continuam sendo as de maior qualidade -, Sialkot permanece na liderança. São, no total, 40 milhões de bolas produzidas manualmente por 60 mil trabalhadores em centenas de pequenas e médias fábricas e milhares de oficinas de costura. Um orgulho para um país mais conhecido pelo caldeirão de instabilidade política, extremismo religioso e subdesenvolvimento do que por suas façanhas industriais.

A pelada da coroa

Poucos lugares no mundo ignoram o futebol. Um deles são os EUA, que preferem as emoções do basquete, do beisebol e do futebol americano. Outro é aqui. Em todo o sul da Ásia, o esporte preferido é o críquete, um parente mais elegante do “taco”, ou “bet”, que se joga nas ruas do Brasil. Como é então possível que o Paquistão tenha despontado na produção de bolas de futebol?

Tudo começou na segunda metade do século 19, quando os britânicos transformaram o subcontinente indiano na joia da coroa de seu imenso império, e os homens da rainha Vitória trouxeram consigo a pelada. Mas bolas de couro se desgastam, ainda mais com o calor úmido daquelas terras. E demorava até oito meses para uma bola nova chegar do porto de Londres até os pés dos jogadores.

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Foi por isso que a indústria de Sialkot surgiu, há mais de 120 anos. A história varia dependendo do narrador, mas uma versão é a contada no livro History of Foot Ball por Iqbal Sandal, cronista das bolas e diretor de uma das mais antigas fábricas da cidade, a Durus, inaugurada em 1904. Segundo Iqbal, tudo começou em 1889, quando um sargento britânico se viu com a pelota em frangalhos, de tanto jogar com os colegas. Como os hindus da cidade se recusavam a tocar o couro porque vacas são sagradas para eles, o sargento recorreu a Fazal Elahi, um artesão muçulmano. Ele fez o trabalho, mas bastaram três partidas para que o remendo se desfizesse. Se os ingleses não quisessem esperar oito meses para a próxima pelada, teriam de produzir uma bola do zero. Numa estratégia de engenharia reversa, Elahi desfez os gomos e, usando-os como molde, cortou novos gomos numa peça de couro. Costurou os retalhos, inseriu a câmara dentro e, tcharam!, nascia a primeira bola de Sialkot.

O sargento ficou tão satisfeito que fez de Elahi fornecedor de bolas dos regimentos britânicos – não só em Sialkot, mas em todo o subcontinente. Com a independência, em 1947, que deu origem à Índia (com maioria hindu) e ao Paquistão (que virou uma república islâmica), a elite hindu foi embora para o país vizinho, levando consigo quase toda a atividade econômica do Paquistão. Mas a indústria das bolas de couro, tradição dos muçulmanos, sobreviveu, com fábricas pipocando e sendo transmitidas de geração a geração.

A grande oportunidade de Sialkot veio com o boom econômico na Europa pós-guerra. A alemã Adidas produzia na França as bolas licenciadas pela Fifa, mas, com o encarecimento da mão de obra europeia, começou a procurar alternativas. Em 1974, enviou a Sialkot os painéis prontos das bolas da Copa da Alemanha Ocidental para serem costurados. O outsourcing deu tão certo que a Adidas transferiu para a cidade a produção das bolas da Copa da Espanha, em 1982. Assim começou a era de (c)ouro da cidade.

Gol contra

Passados segundos, estou coberto de suor, com olhos e garganta incendiados pelo vapor pungente da amônia. Na sala escura e apertada, tambores de látex de borracha dissolvido em amônia dividem espaço com um forno de dois metros de altura e três tanques de água. Em meio ao desconforto, o sorridente Saeed-ur-Rehman segue impassível na visita de apresentação da Reemaxe, a fábrica de sua família. Por oito horas diárias, trabalhadores mergulham conjuntos de 12 moldes nos tambores, levam-nos ao forno que evapora a amônia e endurece o látex e depois os submergem na água para produzir as câmaras de borracha que inflarão as bolas.

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No prédio em frente, trabalhadores cortam lâminas de PVC com prensas para obter pequenos painéis brancos que servirão de gomos de bola – desde a Copa do México, em 1986, o couro, que absorve muita água, foi substituído por materiais sintéticos na fabricação de bolas. Trabalhadores então imprimem manualmente com telas de silkscreen desenhos em verde, azul e amarelo. Conforme a tinta é aplicada cor por cor, surgem nos gomos o logo da Copa (aquele que parece o Chico Xavier psicografando) e o mascote, o tatu Fuleco. Fico entusiasmado. Teria eu encontrado a Brazuca logo de cara?

Não. Na bola, não há logotipo da Adidas. É que essas pelotas não são para os jogos, são para a Globo vender. A Globo Marcas tem o direito exclusivo de explorar marcas da Copa da Fifa de 2014 em mais de 1.500 produtos. São chinelos, bonecos de pelúcia… e, claro, a bola com a imagem do tatu de nome infeliz, produzida aqui na paquistanesa Reemaxe. A pelota recebe até o selo holográfico da Fifa, vindo diretamente da Europa. Mas não é essa a bola que estufará as redes da Copa.

Um tanto decepcionado, prossigo na linha de produção. Depois de empacotadas em kits individuais, as câmaras e os painéis de PVC são enviados para 1,5 mil costureiros que a empresa subcontrata em pequenas oficinas espalhadas pela região. É essa a principal diferença entre o Paquistão e outros produtores de bola. Aqui, a costura é feita artesanalmente em vilarejos. Cada costureiro demora aproximadamente duas horas para transformar um kit em bola e ganha algo como US$ 1 por isso, no caso de bolas de maior qualidade (a Fifa tira algo como US$ 1,50 por bola, 50% a mais que o costureiro). Esse esquema tinha a vantagem de dar trabalho para mulheres, que, por motivos culturais, teriam dificuldades de trabalhar em uma fábrica – mulheres raramente trabalham fora no conservador Paquistão.

Mas o sistema de subcontratação também tem seus problemas. Em 1996, um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou em 7 mil o número de crianças entre 7 e 14 anos trabalhando na indústria de bolas de Sialkot. Em junho do mesmo ano, a finada revista americana Life publicou uma matéria com a imagem de Tariq, um garoto paquistanês de 12 anos que trabalhava em sistema de escravidão por dívida costurando bolas da Nike. “Seis cents a hora” era o título da reportagem. De orgulho nacional, Sialkot se transformou em escândalo mundial. Não que o trabalho infantil fosse novidade. Naquele ano, um estudo do governo concluíra que 8,3% das crianças paquistanesas entre 5 e 14 anos eram “economicamente ativas”. Lá, o trabalho infantil está presente na agricultura, em serviços domésticos, na construção civil, na produção de tijolos, na tecelagem de tapetes…

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Mas há uma pequena diferença entre bolas e tapetes: o logotipo. Marcas multinacionais têm imagem a preservar, e o envolvimento com “escravidão infantil” definitivamente não é algo que os diretores de marketing da Nike ou da Adidas vejam com bons olhos. Com a ameaça de debandada da clientela, a Câmera de Indústria e Comércio de Sialkot assinou em 1997 junto com a Unicef e a OIT um compromisso para erradicar o trabalho infantil na indústria de bolas.

Havia um problema, no entanto. Uma de cada seis casas nas centenas de vilarejos em volta de Sialkot estava envolvida na costura. Era inviável monitorar casa por casa. A solução? Vedar o trabalho em casa e transferi-lo para pequenas oficinas. Funcionou. Em três anos, Sialkot praticamente eliminou o trabalho infantil na indústria da bola (ainda que crianças possam ter migrado para outros trabalhos). Hoje, 1.967 centros de costura são monitorados na região e quase todas as fábricas da cidade recebem o certificado de que não usam trabalho infantil.

Bela história. Mas ela contribuiu para aumentar outro velho conhecido do país: o Custo Paquistão. Os centros de costura, o transporte e a mão de obra adulta representaram custos extras. Com isso, a bola paquistanesa ficou mais cara. Foi aí que o pobre Paquistão ficou de frente com um gigante. A China.

Custo Paquistão

“O aeroporto internacional com voos diretos para Dubai? Foi a indústria de Sialkot que fez. O porto seco? Também. Energia? A gente se vira com o próprio gerador, mesmo pagando pela rede elétrica que não funciona”, diz Faraz Zafar, gerente de exportação da Madrigal, fábrica que produz para a americana Voit as bolas do campeonato mexicano (novamente, nenhum sinal de bola da Copa por aqui).

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Desde sua independência, o Paquistão vive à beira de se tornar um Estado falido. A primeira vez na história que um governo democraticamente eleito conseguiu suceder um outro governo democraticamente eleito foi agora, em 2013. Mas esse governo é tão disfuncional que não consegue coletar impostos, e, sem impostos, não há infraestrutura. Partes do país chegam a ficar até 20 horas por dia sem energia no verão.

Os insumos da indústria precisam ser importados via porto de Karachi, eleita pela revista americana Foreign Policy a megacidade mais violenta do mundo, tomada por gangues políticas e sob uma crescente influência do Taliban. Na hora de negociar, estrangeiros têm medo de ir ao país – tanto que muitas reuniões são feitas em Dubai para escapar da violência.

Já a concorrente China tem energia subsidiada e transportes de sobra, mantém ditatorialmente a ordem social, produz os próprios insumos e compensa a mão de obra mais cara usando um maquinário moderno. Com a mecanização, um trabalhador chinês consegue fazer 40 bolas por dia, em vez de cinco manualmente, como no Paquistão. A qualidade pode não ser a mesma da bola feita à mão, mas o preço baixo da bola produzida em massa domina o mercado.

Última esperança

A visita segue para a Duros, fábrica de Iqbal Sandal, o historiador das bolas de Sialkot. Com várias visitas anuais aos seus clientes brasileiros, Iqbal é provavelmente o cidadão paquistanês que mais viaja ao Brasil – e adora falar da felicidade com que atendentes em hotéis brasileiros recebem suas bolas de gorjeta. Em 1974, a Durus enviou seu primeiro lote ao Brasil. Em 1992, passou a exportar regularmente ao país, que hoje recebe 95% de sua produção diária de 10 mil bolas. Nos galpões da fábrica, um mar de bolas em verde e amarelo. Eu me animo. Na linha de produção, funcionários imprimem com telas de serigrafia a palavra “Brasil”. Será que finalmente encontramos a Brazuca?

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Não. Apesar das cores e do nome, não há nenhuma menção à Copa. Aquelas eram apenas bolas produzidas para a brasileira Topper – que, como tantas outras marcas, deve trazer o verde e o amarelo para seus produtos em 2014.

Começo a me sentir derrotado. Já são cinco da tarde e a visita organizada pela embaixada brasileira precisa acabar – melhor evitar a estrada à noite. A missão de trazer a Brazuca para a SUPER se frustrou. Só me resta, de volta ao Brasil, procurar as vias oficiais, antes que, no dia 3 de dezembro, a Adidas faça o seu lançamento público no Rio.
Então, a empresa dá a notícia: tal como a controversa Jabulani (criticada pela irregularidade de sua trajetória por goleiros, pelo Cid Moreira, pelo Maradona, por Fidel Castro e até pela Fifa), a Brazuca oficial das partidas também será feita na China, provavelmente de forma automatizada. O fornecedor e a cidade são mantidos em sigilo. E o Paquistão, que nunca foi o país do futebol, é cada vez menos o país da bola de futebol.

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