O prazer de jogar tem se manifestado através dos tempos numa infinidade de alternativas que atendem praticamente a qualquer gosto. Na construção deste acervo, o homem não economizou meios para se expressar. Tem jogado com pedras, fósforos, cartas, conchas, areia, gravetos, moedas, papel, lápis e muitos outros, materiais e objetos – nem, os próprios dedos foram esquecidos, como demonstram o par-ou-ímpar, o morra e vários outros exemplos praticados pelas crianças de todo o mundo.
Sendo assim, seria uma anomalia o homem não ter criado jogos que utilizassem tão-somente a voz, sem necessidade de outro equipamento. Afinal, em todas as épocas, o tédio sempre esteve pronto para atacar grupos de pessoas reunidas em tomo de uma mesa, ou numa sala de estar, desarmadas para combatê-lo com instrumentos mais sofisticados, como, digamos, um baralho.
Esse tipo de divertimento inclui-se genericamente entre os chamados jogos de sociedade, cujo mais ilustre representante deve ser provavelmente o charades, conhecido no Brasil como jogo de mímica. Depois que algumas indústrias de brinquedos adotaram a mesma expressão para classificar determinados produtos, talvez ela já não seja adequada. Na verdade, trata-se de bons jogos para serem improvisados na sala, com um grande número de participantes, ideais como quebra-gelo, ou para matar meia hora, antes de algum compromisso. Alguns também são excelentes no automóvel, para entreter as crianças durante uma viagem. Nos séculos XVIII e XIX essas brincadeiras eram muito populares nos lares europeus. É bastante conhecida uma aquarela que retrata o compositor Franz Schubert e um grupo de amigos entretidos num desses jogos. Deviam ser comuns em suas reuniões, chamadas de “schubertíades”.
Neste tempo em que a liberação dos costumes produz jogos de sociedade picantes como o mental strip poker, o sexual secrets e outros do gênero, qual a razão para praticar velhos e ingênuos divertimentos? Porque divertem – o que não se pode dizer de algumas invenções contemporâneas. Um desses jogos foi batizado de Botticelli – nome do pintor italiano Sandro Botticelli (1445-1510) – por razões que eu desconheço completamente. Envolve dedução e cultura geral e, por esse motivo, fica mais competitivo quando praticado por um grupo adulto e homogêneo.
Antes de começar, sorteia-se um dos presentes para ser o personagem oculto, chamado daqui em diante de PO. Ele deve pensar numa pessoa famosa, viva ou morta, e dizer a todos somente a inicial do sobrenome dela. Usando o título do jogo como exemplo, digamos que ele pensou em Botticelli. Então, diria apenas “B”. O objetivo dos demais é descobrir a identidade do PO.
O primeiro jogador deve pensar numa pessoa cujo sobrenome comece com “B” e fazer uma pergunta ao PO, mencionando alguma característica dela. Por exemplo: “Você não é um compositor alemão?” (pensando em Bach). O PO deve tentar se lembrar de um compositor alemão e dar a resposta. Digamos que ele se lembre de Brahms. Então, sua resposta seria: “Não, eu não sou Brahms”. Com isso, o PO se defende adequadamente (apesar de não ter dito Bach, pois Brahms também combina com a característica mencionada, como Beethoven também) e a vez passa para o próximo, que deve fazer nova pergunta no mesmo estilo. Ela poderia ser: “Você é um imperador francês do século XIX?” (pensando em Napoleão Bonaparte).
Suponhamos agora que o PO não consiga se lembrar de nenhum imperador francês do século XIX cujo sobrenome comece com “B”. Neste caso, quem perguntou deve dizer o nome que tinha em mente e, se ele estiver correto, ganha o direito de fazer uma pergunta de caráter geral, que PO terá de responder com “sim” ou “não”. As primeiras questões gerais costumam ser “você é vivo?”, “você é homem?”, para ir reduzindo gradativamente o universo de possibilidades. Após a resposta, a vez passa para o próximo, que deve retomar à seqüência de perguntas específicas.
O jogo prossegue desse modo, com PO tendo que responder sim ou não a uma pergunta geral toda vez que não conseguir se defender de uma específica. A forma da resposta deve ser sempre “não, eu não sou fulano”. A partida continua até que um dos participantes faça a pergunta vencedora, que, no caso, seria “você é Botticelli?” Quem descobrir a identidade secreta torna-se o novo PO, pensa em outro personagem e recomeça a brincadeira. Há quem considere o PO vencedor, se ele conseguir se esquivar de um certo número predefinido de perguntas, digamos umas trinta.