Na pele dos elfos: até que ponto “O Senhor dos Anéis” é contaminado pelo racismo?
Na obra de Tolkien, os heróis geralmente têm pele clara, e os vilões não. Agora, a nova série, "Os Anéis do Poder, traz uma bem-vinda diversidade. Entenda.
Texto Reinaldo José Lopes Ilustração Thobias Daneluz Design Juliana Krauss
Em fevereiro de 2022, a mexicana Mariana Ríos Maldonado, que está fazendo doutorado em literatura comparada na Universidade de Glasgow (Reino Unido), começou a receber ameaças na sua modesta conta no Twitter, que tem menos de mil seguidores. “A gente vai te pegar, vagabunda!”, dizia uma das mensagens. “Vadias burras e feminazis como você não vão estragar O Senhor dos Anéis impunemente!”
O “crime” de Ríos Maldonado foi ser entrevistada pela revista cultural americana Vanity Fair, numa reportagem que revelava os primeiros detalhes da aguardada adaptação das narrativas de J.R.R. Tolkien em formato de série de streaming da Amazon Prime Video: O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder (a estreia está marcada para setembro). Pela primeira vez, atores negros tinham sido escalados para interpretar personagens como elfos e anões, tradicionalmente “mocinhos” no universo da Terra-média.
Como especialista na obra de Tolkien, a pesquisadora foi ouvida sobre a mudança e disse que ela era bem-vinda. “Quem são as pessoas que se sentem tão ameaçadas com a ideia de que um elfo pode ser negro, latino ou asiático?”, questionou ela. Além das ameaças, a especialista virou pivô de uma fake news mirabolante, segundo a qual o consultor original da série, o britânico Tom Shippey, teria sido dispensado por não concordar com a “distorção da obra de Tolkien”, sendo substituído por uma “feminista lacradora”.
Viagem pura: ela não tem relação profissional alguma com o seriado, e Shippey, ao que tudo indica, deixou a equipe por ter dado entrevistas reveladoras demais sobre o enredo, violando um contrato que ele tinha assinado com a Amazon.
Isso não impediu que uma parcela dos fãs continue acreditando piamente na cascata. E a coisa não parou por aí. O primeiro teaser com cenas da série recebeu milhares de comentários negativos idênticos, com uma frase atribuída a Tolkien: “O mal não pode criar nada de novo, só pode corromper e arruinar o que as forças do bem inventaram ou fizeram”. (A ironia é que a frase nunca foi dita pelo escritor, trata-se da remodelação de uma fala do hobbit Frodo.)
Será que uma reação tão visceral, por parte de tanta gente, indica que existe mesmo um elo entre O Senhor dos Anéis e o racismo? Até que ponto o aparente refúgio escapista da fantasia pode ter sido colonizado pelas tendências mais desprezíveis do nosso mundo? As respostas a essas perguntas não são simples, mas ajudam a mostrar como o imaginário fantástico que hoje atrai milhões de fãs sempre foi influenciado por brigas políticas e ideológicas bastante reais.
De volta ao século 19
No caso brasileiro, isso significa que até o bolsonarismo andou querendo tirar uma casquinha da Terra-média. Durante a campanha da eleição presidencial de 2018, memes comparando o então candidato Jair Bolsonaro a Faramir, personagem heroico e abnegado da Saga do Anel, andaram circulando entre os grupos de fãs da obra nas redes sociais. Alguns influenciadores da extrema-direita no Brasil, nos EUA e em outros países enxergam Tolkien como um aliado natural, levando em conta a fé católica e o conservadorismo do autor. Antes da ascensão dessa direita radical em diversas partes do mundo nos últimos anos, comparações como essa eram raras ou inexistentes na comunidade de fãs.
A própria Ríos Maldonado, porém, diz que é simplista associar as reações preconceituosas de parte do público ao poder que a extrema-direita conquistou recentemente em muitos países. “Tendo a ver esse tipo de coisa como um fenômeno muito mais cíclico”, disse ela em uma conversa com a Super. “Basta pensar no século 19 ou nos anos 1930, quando movimentos de recuperação das mitologias europeias também foram usados como instrumentos de um discurso racista.”
De fato, elementos importantes do universo de Tolkien têm como inspiração as mitologias escandinava e celta (é delas que vêm os nomes de raças fantásticas como elfos e anões e a ideia de que existiria um “Paraíso terrestre” do lado oeste do Oceano Atlântico). Mitos celtas e escandinavos, bem como o cristianismo medieval, estão entre as inspirações mais instrumentalizadas por esses movimentos racistas do passado.
“A história primeiro se repete como tragédia e depois como farsa. Na época do Tolkien [início do século 20] a ideia da origem nórdica foi sequestrada pela extrema-direita, e agora a gente vê isso se repetindo até no Brasil, o que é particularmente ridículo”, diz Fernanda da Cunha Correia, doutoranda na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, e especialista na obra do autor. “Uma parcela de gente com esse tipo de pensamento sempre existiu dentro do ‘fandom’ [conjunto de fãs], mas a ascensão da extrema-direita fez com que eles se sentissem confortáveis para externar opiniões reacionárias.”
“Acho que é um fenômeno meio híbrido. Não colocaria todas as reações negativas no mesmo balaio”, pondera Cristina Casagrande, pesquisadora responsável pelo site Tolkienista e que atualmente faz doutorado sobre Tolkien na USP. “A memória afetiva dos filmes de O Senhor dos Anéis, que acabaram seguindo um padrão europeu no elenco, marcou o imaginário de muita gente que não reagiu bem, embora algumas pessoas tenham feito comentários de um racismo escancarado nos perfis dos atores nas redes sociais.”
Tolkien se referiu aos grupos mongólicos como “menos bonitos”
É claro que, muito antes dos filmes, existiam os livros de Tolkien. O desenvolvimento da mitologia da Terra-média se entrelaça de forma complexa com a história traumática do século 20, embora os textos de Tolkien não sejam uma simples alegoria da Segunda Guerra Mundial ou da Guerra Fria, diferentemente do que muita gente acredita. E isso inclui, mesmo que de forma indireta, questões étnicas.
Existe uma associação inegável entre as características raciais dos personagens de O Senhor dos Anéis e a probabilidade de que eles sejam retratados como heróis ou vilões. Os povos humanos do leste e do sul da Terra-média, subjugados pelo demoníaco Sauron, em geral têm pele mais escura ou mesmo negra, enquanto a raça dos orcs, os soldados rasos de Sauron, são descritos numa das cartas do autor como “versões degradadas e repulsivas dos grupos mongólicos que, para os europeus, parecem menos bonitos”. Já os elfos e os humanos heroicos dos reinos de Gondor e Rohan quase sempre têm pele e olhos claros, embora alguns hobbits, inclusive o valente Sam Gamgi, sejam descritos como “morenos”.
Por conta disso, há leitores que caracterizam a obra de Tolkien como uma fantasia em defesa da supremacia branca. O cenário real, no entanto, é mais complexo.
Conforme lembra Fernanda Correia, a aliança dos povos “não brancos” com Sauron nas narrativas é, em grande parte, uma reação ao expansionismo colonial dos “brancos” da ilha de Númenor, uma civilização avançada que, de início, desembarcava na Terra-média para trazer algo parecido com a “ajuda humanitária” de hoje e depois começou a tomar as terras dos habitantes originais. “É muito natural que esses povos tenham raiva e se levantem, o que acaba sendo explorado por Sauron”, explica ela.
Um dos argumentos de quem protesta contra a presença de atores de origem não europeia nas adaptações dos livros é a ideia de que a intenção do escritor era criar uma “mitologia para a Inglaterra” – portanto, algo essencialmente ligado a um povo europeu.
A afirmação remonta a algo que Tolkien de fato disse em uma carta, quando estava tentando convencer um editor a publicar seus livros. Nesse texto, ele conta que era apaixonado por mitos desde criança, mas que se chateava por não haver, na Inglaterra, nada que fosse tão completo quanto a mitologia grega ou a nórdica, que possuem narrativas mais ou menos coerentes sobre a criação do mundo, a origem dos deuses e heróis etc.
Foi então que ele sentiu o desejo de criar “um corpo de lendas mais ou menos interligadas que eu poderia dedicar simplesmente à Inglaterra, ao meu país”. Tais mitos refletiriam “o clima e o solo do noroeste europeu, isto é, da Grã-Bretanha e das regiões mais próximas”, escreve ele na carta.
É bom lembrar que, por si só, esse desejo não tinha nada de inédito. Tolkien nasceu em 1892, algumas décadas depois do auge dos movimentos nacionalistas da Europa, que levaram à unificação de países como a Itália e a Alemanha (que antes não passavam de uma colcha de retalhos de pequenos reinos e repúblicas independentes). Esse processo político foi acompanhado e estimulado pela busca de uma “consciência nacional” sobre os próprios mitos e lendas, e também sobre qual seria a identidade supostamente única e eterna de cada povo.
Em todos esses aspectos, uma nova classe de especialistas foi essencial: os filólogos, pesquisadores capazes de entender a evolução dos idiomas e traduzir manuscritos antigos, que então eram usados como prova de que determinado povo tinha uma história profunda e ilustre. E essa era exatamente a profissão de Tolkien, filólogo e professor da Universidade de Oxford – escrever ficção, durante décadas, foi só um hobby.
O problema é que, como já vimos rapidamente antes, esse casamento entre nacionalismo, filologia e mitologia muitas vezes podia descambar para o etnocentrismo e o racismo. Não bastava demonstrar que o seu povo tinha uma “essência” ancestral. Para muita gente, também era preciso dizer que essa essência era superior à dos outros povos, principalmente os de fora da Europa – afinal de contas, as potências do continente estavam transformando a África e boa parte da Ásia em colônias na mesma época.
Conforme Tolkien amadurecia e ia refinando ao seu projeto mitológico e literário, no entanto, ficou claro o tamanho da encrenca que as ideias nacionalistas do século 19 eram capazes de desencadear. O então jovem escritor teve de lidar com a morte de quase todos os seus amigos da época de escola na Primeira Guerra Mundial, a partir de 1914. Ele próprio participou da Batalha do Somme, no norte da França, na qual 1 milhão de pessoas morreram ou ficaram feridas ao longo de poucos meses. Entre as causas da carnificina estavam, é claro, o orgulho nacional das potências europeias e a disputa por zonas de influência nos impérios que elas tinham criado fora da Europa.
Coincidência ou não, as inúmeras versões das narrativas de Tolkien (pense num sujeito que gostava de reescrever histórias…) foram progressivamente se afastando do conceito da “mitologia dedicada à Inglaterra”. Um elemento que estava presente desde o começo e se intensificou foi a influência cristã. No universo de ficção tolkieniano, existe um único Deus verdadeiro, Eru Ilúvatar (algo como “o Uno, Pai de Todos”). Ele delega a tarefa da criação do mundo aos Valar, seres que lembram os deuses pagãos (Zeus, Hades etc.), mas que Tolkien classifica como “poderes angélicos”. A obra passou a incorporar também influências egípcias, hebraicas e mesopotâmicas.
Vale lembrar que, no campo da mitologia ocidental, não apenas os deuses nórdicos são representados exclusivamente como de cor clara: os gregos (como Apolo, Afrodite, Marte etc.) eram todos brancos. E Tolkien não tem nada a ver com isso. Apenas reproduziu um padrão já existente.
“Nórdica não, por favor”
Tolkien já estava reescrevendo essas histórias fazia quase 20 anos quando o nazismo tomou o poder na Alemanha, em 1933. O regime de Hitler foi a encarnação mais virulenta do casamento entre nacionalismo, busca por “pureza racial” e obsessão por mitologia – muitos dos nazistas eram obcecados pelos deuses nórdicos.
Em suas cartas, Tolkien deixa claro que desprezava o nazismo. Ele se recusou a fornecer um atestado de “pureza racial ariana” para que seu primeiro livro, O Hobbit, fosse publicado na Alemanha, além de atacar a “doutrina racial perniciosa e anticientífica” por trás da ideologia hitlerista.
Depois da publicação de O Senhor dos Anéis, quando uma reportagem classificou a Terra-média como equivalente à “Europa Nórdica”, ele protestou: “Nórdica não, por favor! Pessoalmente, não gosto da palavra. Embora seja de origem francesa, está associada a teorias racialistas”.
Tolkien lamentou o preconceito racial e o surgimento do apartheid na África do Sul, onde nasceu (a família voltou para o Reino Unido quando ele tinha 3 anos de idade). E, também em suas cartas, afirma que as informações que tinha sobre o imperialismo britânico na Ásia faziam com que ele sentisse “pesar e asco”.
União de inteligências
Livros como O Senhor dos Anéis, que continuam atraindo milhões de leitores e sendo objeto de adaptações quase 70 anos depois de seu lançamento, inevitavelmente são reinterpretados, como acontece com Shakespeare, Machado de Assis, Monteiro Lobato e outros autores clássicos. Se é inevitável que o texto original carregue os preconceitos de seu tempo e de seu autor, também vale lembrar que o núcleo da saga é a união não só de etnias, mas de espécies inteligentes totalmente distintas para enfrentar um inimigo comum, como lembra Cristina Casagrande.
Numa das cenas mais belas do romance, o anão Gimli, herdeiro de uma rixa de milênios com os elfos, conversa com a elfa Galadriel, que pronuncia algumas palavras na língua dos anões e sorri para ele. “Pareceu que ele olhava de súbito para dentro do coração de um inimigo e via ali amor e compreensão”, diz o livro. Mais do que a aparência dos personagens, é isso que faz O Senhor dos Anéis ser o que é.