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Os campos de concentração do K-Pop

Conheça as fábricas de artistas da Coreia do Sul, nas quais milhares de jovens encaram condições duríssimas na busca por um lugar ao Sol.

Por Andreas Muller e Bruno Garattoni
Atualizado em 1 jul 2020, 10h38 - Publicado em 29 mar 2017, 18h03
K-Pop: o campo de concentração de popstars
(Carlo Giovani/Superinteressante)

Seul, Coreia do Sul. Quatro da manhã. Para Sarah Wolfgang, de 15 anos, já é hora de levantar. Sarah nasceu nos EUA, mas é filha de coreanos e vive em Seul desde criança. O dia dela vai começar — e não vai ser fácil.

Primeiro, Sarah faz duas horas de caminhada acelerada. Em jejum mesmo, para queimar o máximo possível de calorias. Depois, com o céu começando a clarear, é hora do café da manhã – algumas míseras folhas de alface.

Aí começa o pior: oito a doze horas de treinamento por dia, com aulas de canto, dança, coreografia, idiomas e boas maneiras, interrompidas por refeições frugais (há casos de jovens que ficam meses comendo apenas frango ou batata doce com tomates) e sem direito a internet, celular, nem falar com a família.

As meninas dormem de 4 a 5 horas por noite, às vezes menos — durante a gravação de um especial para a TV, Sarah chegou a virar duas noites seguidas. Tudo em nome de um sonho: ser o próximo ídolo da música popular coreana, mais conhecida como K-Pop.

“Eles [a gravadora] me ofereceram um contrato, que dizia que eu deveria me mudar para um alojamento”, revelou Sarah, depois que desistiu da carreira, à imprensa americana. “Você não pode sair. É como uma prisão, na qual você escolhe entrar“, disse.

Sarah foi selecionada para fazer parte da Tahiti, uma das bandas pertencentes à Dreamstar Entertainment — empresa sul-coreana especializada em criar ídolos. A Dreamstar e suas concorrentes mantêm 50 grandes alojamentos espalhados pela Coreia do Sul, onde treinam milhares de jovens na esperança de fabricar astros e abastecer a indústria do K-Pop, que movimenta mais de US$ 5 bilhões por ano.

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Ninguém tira folga — aconteça o que acontecer. O caso mais chocante foi o de Jun-ho, integrante do grupo 2PM. Em 2013, ele caiu de uma altura de dois metros enquanto ensaiava uma dança. Bateu de cabeça no chão e ficou inconsciente por dois minutos.

Levado ao hospital, descobriu-se que ele havia fraturado a coluna. Poucos dias depois, no entanto, Jun-ho subiu ao palco para mais um show do 2PM. Apresentou-se com uma faixa amarrada na cintura para suportar a dor. Nos intervalos, descansava em uma cadeira de rodas.

ABRE

Sarah acabou desistindo da carreira. As colegas não: a banda Tahiti foi lançada em julho de 2012, com o single Tonight. Depois, participou de programas de TV, gravou trilhas sonoras para novelas coreanas e se apresentou em países como as Filipinas, a China e o Camboja. Hoje, a Tahiti ainda está longe de igualar os maiores fenômenos do K-Pop, como Super Junior, 2NE1, Big Bang, EXO e Girls Generation (também conhecida como SNSD).

O mais conhecido de todos é o cantor Psy, estrela do hit Gangnam Style, primeiro vídeo a ultrapassar 1 bilhão de acessos no YouTube, e, mais recentemente, o fenômeno BTS: seus sete integrantes se apresentaram na última cerimônia do American Music Awards, em novembro. Já existe até um nome para esse fenômeno. É hallyu, ou “onda coreana”. O governo da Coreia do Sul quer dobrar o faturamento da indústria do K-Pop, e tem dado incentivos fiscais e empréstimos subsidiados para as empresas da área.

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Só a SM Entertainment, a maior empresa do K-Pop, investe US$ 100 mil em cada adolescente que treina. A conta pode ser bem alta, dependendo do tamanho da banda — e algumas delas são gigantes. A maior já criada foi a Apeace, que chegou a contar com 21 garotos (hoje tem 15).

As bandas contam com grandes equipes de apoio, formadas por um batalhão de cabeleireiros, maquiadores, fotógrafos, instrutores. Tudo isso custa dinheiro. Mas compensa. “Se um grupo estourar, o lucro paga com sobras todo o valor investido nos outros”, explica Jung-Bong Choi, professor da Universidade de Nova York e um dos organizadores do livro K-Pop – The International Rise of the Korean Music Industry, inédito no Brasil.

Quem deseja brilhar no K-Pop precisa ter certas características. A primeira exigência é estética. Os homens devem ter barriga tanquinho, bíceps marcados (mas não avantajados) e cabelo estiloso. As mulheres precisam ter pernas longas, nariz fino e olhos amendoados, como os de Angelina Jolie. Não é exatamente o biotipo mais comum na população coreana. Por isso, muitos acabam fazendo plástica.

A Coreia do Sul é o país onde mais se faz esse tipo de cirurgia: 2% da população local já entrou na faca, segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica e Estética (nos EUA, que vêm em segundo lugar, o índice é bem mais baixo, de 1,3%. No Brasil, 0,7%). Seul é uma das capitais mundiais da plástica. E a maior parte das clínicas fica justamente em Gangnam, o bairro nobre que ficou famoso naquele clipe do Psy.

O gordinho Psy é a única exceção às implacáveis regras de beleza do K-Pop. Mas, antes de ficar famoso, ele também sofreu pressão. Em 2001, o presidente de uma gravadora disse que ele deveria fazer lipoaspiração e plásticas no rosto. Outro chegou a sugerir que ele se apresentasse usando uma máscara. “Todos insistiam em dar soluções para os meus `problemas’ de aparência”, disse Psy — cujo nome real é Park Jae-Sang — numa entrevista em 2012.

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Além de moldar a aparência dos ídolos, as agências tomam outra medida para garantir o retorno de seus investimentos: impõem contratos de longuíssima duração. No início da hallyu, muitos grupos ficavam mais de uma década presos ao mesmo contrato. O caso mais conhecido é do TVXQ! (Tong Vfang Xien Qi, algo como “Deuses Nascentes do Oriente”).

Formado em 2005, o quinteto parecia ter algo de divino, mesmo. Lotava shows na Coreia e no Japão, vendia milhões de músicas e ostentava o maior e mais ruidoso fã-clube do planeta, o Cassiopeia, com cerca de 880 mil integrantes. Eram os Reis da Hallyu. Até que um escândalo veio à tona. Em 2009, três integrantes romperam com a TVXQ! e foram à Justiça contra a SM Entertainment. Eles alegavam que seus contratos eram longos demais — nada menos que 13 anos — e que as regras deixavam quase todo o faturamento nas mãos da agência.

“Quase todo”, nesse caso, é um eufemismo. A agência ficava com 100% do que a banda faturava. Isso é comum. Os artistas geralmente só recebem um salário, que costuma ser bem modesto para os padrões do showbiz — até 2015, a remuneração média dos ídolos do K-Pop era de apenas US$ 2.800 por mês, segundo um levantamento do jornal Korean Herald. O caso foi um escândalo, o governo interveio, e hoje existe uma lei que limita a duração dos contratos a sete anos (o pagamento continua não tendo regras).

Cultura do sacrifício

Antes de sair malhando as agências, é prudente levar em conta a cultura que está por trás do K-Pop. A Coreia do Sul tem forte influência do confucionismo, uma filosofia que busca o equilíbrio da humanidade por meio da busca do conhecimento e o eterno aperfeiçoamento pessoal. Desde pequenos, os sul-coreanos se acostumam a dar duro em tudo que fazem.

As crianças passam quase dez horas por dia nas escolas, e muitas também fazem aulas de reforço à noite. Ou seja: para a sociedade coreana, é natural que os jovens fiquem confinados nas fábricas de ídolos do K-Pop.

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“Todo mundo sabe que eles enfrentam essas dificuldades. E muitos deles são venerados justamente por causa dos sacrifícios”, explica Sarah Keith, pesquisadora da Universidade Macquarie (Austrália) e autora de estudos sobre o K-Pop. Na internet, é comum encontrar páginas focadas em glorificar essa cultura de sacrifício.

Algumas mostram fotos dos astros do K-Pop com cara de sono, ou dormindo em lugares inusitados durante os raros intervalos dos ensaios e apresentações. Outras reúnem fotos das lesões que eles sofrem durante as coreografias mais ousadas.

Como começam a carreira muito cedo, os artistas também são especialmente vulneráveis a abusos de autoridade, bullying e até assédio sexual nos centros de treinamento. Em 2012, o CEO da agência Open World Entertainment foi preso sob a acusação de abusar sexualmente de seis meninas e de um grupo de meninos. Mas o episódio mais trágico foi o da atriz Jang-Ja-yeon, estrela de um seriado inspirado no mangá Boys Over Flowers.

No dia 7 de março de 2009, ela revelou em uma carta que era vítima de violência e exploração sexual por seu agente, que a oferecia como moeda de barganha nas negociações com executivos de grandes emissoras de televisão. Logo depois, enforcou-se no corrimão da escada em sua casa, em Seongnam.

As agências de entretenimento também controlam a vida amorosa dos ídolos do K-Pop. Nos contratos, é comum haver regras proibindo namoros ou encontros. Em 2011, as integrantes do grupo 2NE1 revelaram que eram obrigadas a permanecerem virgens até os 29 anos. Quem ousa desobedecer às regras é penalizado com multas ou relegado ao segundo escalão dos treinamentos. Afinal, é preciso agradar aos fãs — e muitos deles são ciumentos.

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K-Pop: o campo de concentração de popstars
(Carlo Giovani/Superinteressante)

Em 2010, o cantor Kim Jong-hyun, da banda SHINee, começou a namorar a atriz Shin Se-kyung. A relação era mantida em segredo. Certa noite, contudo, Jong-hyun e Se-kyung decidiram sair para uma caminhada. Eram 3h da manhã e não havia quase ninguém nas ruas. O que poderia dar errado? Tudo. O casal vinha sendo observado por um jornalista, que aproveitou a ocasião para tirar umas fotos comprometedoras.

E assim, no dia 20 de outubro de 2010, Jong-hyun e Se-kyung estavam na capa do jornal Seoul Sports, naquela que foi considerada a primeira foto de paparazzi da história da Coreia do Sul. A reação, claro, foi dramática e um tanto desproporcional. Enfurecidos, os fãs derrubaram o site do jornal e iniciaram uma grande campanha de difamação contra o casal nas redes sociais. O alvo preferencial foi Se-kyung, que teve seu rosto colocado em montagens eróticas e depreciativas.

O professor Choi afirma que, com sua rotina de trabalho duro, os coreanos têm pouco tempo para o lazer. “Para muitos, esse mundo de fantasia e beleza representado pelos astros da música é o único escape”, alega. Alguns fãs agem como se fossem donos dos artistas, e os mais obcecados chegam a persegui-los, espioná-los e até invadir suas casas. São conhecidos como sasaengs, termo que significa “fã obsessivo”. Isso existe no mundo inteiro. Mas os fãs coreanos já protagonizaram um episódio que seria impensável no Ocidente.

Em 2008, algumas bandas foram convidadas para participar de um programa de auditório na TV coreana. Uma delas era a Super Junior, àquela altura já consagrada. A outra era a Girls Generation, que começava a fazer sucesso.

Tudo ia bem até que um detalhe chamou a atenção dos espectadores: por alguma razão, as novatas da Girls Generation esqueceram de se curvar e fazer sinal de reverência ao conversar com o pessoal da Super Junior. E isso é um pecado grave no código de conduta sul-coreano, que obriga os mais novos a sempre demonstrar respeito aos mais velhos (e a mulher a demonstrar respeito ao homem).

Foi um escândalo. Em pouco tempo, a ira tomou conta dos fãs de todas as boy bands da Coreia. Nas redes sociais, surgiram boatos de que as meninas da Girls Generation estariam flertando com os rapazes da Super Junior, o que agravou a polêmica. O auge da confusão ocorreu poucos dias depois, durante o Dream Concert — uma espécie de Rock in Rio coreano, com os maiores astros de lá.

Durante as apresentações, os fãs costumam agitar bastões de LED no ar, sempre com a cor que representa a banda da vez. Quando a Super Junior apareceu no palco, o estádio inteiro se coloriu com bastões azuis. Na vez da SS501, todo o estádio se cobriu de verde. Quando a Girls Generation subiu ao palco… todas as luzes foram apagadas.

A plateia, com mais de 40 mil pessoas, ficou toda escura e em silêncio durante dez minutos, ignorando em protesto. Um superboicote, que entrou para a história do K-Pop com o nome de black ocean, e uma cena absolutamente surreal. “Parecia que não tinha ninguém no estádio”, comentou uma das cantoras da banda, que também enfrentou protestos nos shows seguintes (os fãs começaram a fazer o sinal de “X”, indicando desaprovação, com os bastões).

Mas a Girls Generation acabou conseguindo dar a volta por cima: hoje faz shows lotados e com fãs entusiásticos, e seus clipes têm mais de 500 milhões de acessos no YouTube. A indústria agradece.

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