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Os fantasmas de São Bartolomeu no filme A Rainha Margot

Em 1572, foram mortos 30.000 protestantes franceses numa jornada de horror que inspirou o filme A Rainha Margot, que está sendo lançado no Brasil em vídeo.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 31 jan 1995, 22h00

André Singer

Paris, França, 24 de agosto de 1572. Começa o massacre dos protestantes que levará à morte cerca de 30 000 franceses. O episódio ficou conhecido como a Noite de São Bartolomeu, porque teve início na madrugada do dia em que os católicos comemoravam a festa do santo. O filme A Rainha Margot, lançado no ano passado e que acaba de sair em vídeo no Brasil, traz de volta essa passagem crucial da história moderna.

Quem assistiu A Rainha Margot,o filme que ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes no ano passado, surpreendeu-se com a matança a sangue frio dos protestantes franceses em Paris, na noite de 23 para 24 de agosto de 1572. Para quem não viu, vale a pena alugar o vídeo que chega este mês às locadoras. Apesar de estar baseado em um livro de ficção — o romance La Reine Margot, de Alexandre Dumas, publicado em 1845 — , o filme apresenta uma versão realista da Noite de São Bartolomeu.

Não é a primeira vez que o romance de Dumas suscita o interesse de cineastas. Há uma versão anterior (A Rainha Margot, 1954) tendo no papel principal, agora ocupado por Isabelle Adjani, a atriz Jeanne Moreau. É que Dumas aproveitou bem a polêmica figura da princesa Marguerite de Valois, irmã do rei Carlos IX (que a apelidou de Margot) e tida por ninfômana (mulher que sofre de desejo sexual excessivo), para mostrar um momento dramático da história mo-derna. As reflexões sobre a liberdade de consciência e sobre os limites do poder governamental, suscitadas pela Noite de São Bartolomeu, iriam ajudar a construir o Estado de Direito tal como se conhece hoje.

Durante quase quarenta anos, católicos e protestantes se enfrentaram em uma guerra civil intermitente, que quase leva a França à desintegração. Numa das tantas pazes provisórias — a de Saint German, estabelecida em 1570 —, planejou-se o casamento de Margot (católica) com Henrique de Navarra (protestante).

As núpcias aconteceram numa segunda-feira. No domingo seguinte, a população católica comemoraria o tradicional Dia de São Bartolomeu. Antes do amanhecer, sobreveio a explosão de violência, que terminaria por levar à morte cerca de 30 000 protestantes em todo o país. Por isso, o episódio ficou conhecido como a Noite de São Bartolomeu.

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O verão de 1572 foi particularmente quente e abafado em Paris. O calor político também vinha crescendo desde a segunda-feira, 18 de agosto, quando Margot havia se casado com Henrique. A população católica, quase 90% da França, não via com bons olhos aquela união. Parecia-lhe um concessão indevida aos huguenotes, palavra de origem desconhecida que se usava para designar os protestantes franceses.

O rastilho de pólvora se acendeu quando, na sexta-feira, 22, um franco-atirador católico tentou matar o almirante Gaspard de Coligny, chefe militar da facção protestante, com um tiro de arcabuz. Na noite do sábado, 23, pretextando evitar um golpe huguenote, o rei Carlos IX — sob forte pressão da rainha-mãe, Catarina de Médici — manda matar Coligny e seguidores. Na madrugada do domingo, 24, a matança começa a se generalizar e sai do controle governamental. Primeiro no próprio palácio do rei, o Louvre, depois por seus arredores, em seguida por toda Paris e pelo interior da França. Nas páginas seguintes, você vai ver quem foram os principais personagens, suas biografias e as razões da tragédia. Antes, porém vamos nos deter na cena do dia 24.

François Dubois, um artista protestante, retratou os acontecimentos ocorridos nos arredores do Louvre com grande realismo. Dubois escapou por pouco do morticínio e foi para a Suíça, onde pintou um famoso quadro que permanece no Museu da cidade de Lausanne, à beira do lago Léman, até hoje. La Saint-Barthélemy, é uma denúncia da Noite de São Bartolomeu, pintada em óleo sobre madeira, com cerca de 1 metro de altura por 1,5 metros de comprimento. As reconstituições posteriores dos acontecimentos confirmaram a veracidade do que é mostrado por Dubois.

Olhe o edifício de três andares que aparece à direita no quadro. Da janela do meio pende um corpo inerte. É o almirante Coligny, que está sendo defenestrado pelos católicos. Agora olhe para baixo. Bem em frente do mesmo prédio há um homem caído, sem cabeça e sem mãos , rodeado por outros três em pé. O corpo mutilado é de Coligny. O homem do meio , entre os que rodeiam Coligny, é o duque de Guise, chefe do partido católico e responsável direto pela eliminação do almirante. Agora percorra o resto do corpo de Coligny. Você verá um homem agachado perto dele . É um soldado cortando os testículos do defunto.

Um pouco à direita está um nobre protestante chamado Caumont, pedindo de joelhos clemência a dois católicos. Caumont foi morto. Seu filho de 13 anos, o futuro duque de La Force, em compensação, depois de golpeado foi dado como morto, mas respirava ao chegar aonde seria enterrado e acabou se salvando.

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Vamos nos transportar para o fundo do quadro. Na entrada do Palácio do Louvre, há um grupo de soldados bloqueando a entrada. O objetivo era impedir que os protestantes alojados no palácio fugissem. Um pouco à frente, a rainha-mãe Catarina de Médici, vestida de preto, como era seu hábito, observa um monte de corpos nus já sem vida. Desde um pavimento superior do palácio, na janela superior esquerda, o rei Carlos IX dispara com um arcabuz sobre os protestantes que tentam fugir para o outro lado do rio Sena.

Repare que no primeiríssimo plano, perto de uma criança morta, o artista deixou registrado, provavelmente com o objetivo de que ninguém jamais esquecesse, o ano da tragédia. Escreveu, com vermelho imitando sangue, l’an 1572 (o ano de 1572).

O casamento de Margot e Henrique foi acertado pelas mães, viúvas, de ambos, Catarina de Médici e Jeanne d’Albret. O objetivo era não só consolidar a paz entre católicos e protestantes, mas também estabelecer uma aliança entre os Valois e os Bourbon. Embora Margot (Valois) e Henrique (Bourbon) fossem primos, cada um representava ramos diferentes da dinastia Capeta. Os Valois detinham a Coroa da França há dois séculos. Os Bourbon eram uma linhagem descendente de Luís IX (1214 – 1270) mas que nunca havia chegado ao trono.

A união entre os Valois e os Bourbon era, na verdade, uma tentativa de Catarina de evitar que uma terceira família, os Guise, poderoso clã da região da Lorena, obtivesse demasiado poder no reino. Desde a morte de Henrique II, em 1559, os Valois haviam ficado em uma situação difícil. Os filhos do rei eram fracos. O mais velho, Francisco, tinha 16 anos quando o pai morreu e sobreviveu poucos meses. O segundo, Carlos, assumiu o trono com apenas 10 anos e morreu aos 24, sem deixar descendentes legítimos. Ambos morreram de tuberculose. Na prática, quem governava era a rainha-mãe, Catarina de Médici.

A fragilidade da casa real atiçou a competição entre os Bourbon e os Guise, para saber quem iria suceder os Valois e, enquanto estes permanecessem no poder, para ver quem exerceria maior influência sobre o trono. Essa disputa adquiriu uma conotação religiosa quando os Bourbon aderiram ao protestantismo. A nobreza dividiu-se ao meio: uma parte se fez huguenote, com os Bourbon, e a outra ficou católica, sob a condução dos Guise. O partido protestante estava mais próximo do poder, por linhagem, mas os Guise eram mais populares, porque a grande maioria da população havia permanecido católica.

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Catarina de Médici percebeu que a única forma de esticar o poder dos Valois seria manter e incrementar a divisão da nobreza, e rezar para que algum de seus outros filhos tivesse descedentes. A tática da rainha era aliar-se ora a um, ora a outro dos partidos em luta. Quando um ia ficando muito forte, ela pendia para o segundo, e assim sucessivamente, de maneira que nenhum deles tivesse força suficiente para derrubá-la.

Logo após o casamento de Henrique e Margot, da qual se dizia ter sido até então amante do duque de Guise, Catarina sentiu que a influência protestante estava crescendo demais. Decidiu então eliminar, de surpresa, o almirante Coligny, que estava pressionando o rei a invandir Flandres (região que hoje compõe a Bélgica e uma pequena parte da França e da Holanda). Usou o duque de Guise para assassinar o almirante. Depois, Catarina perdeu o controle da situação, e seu golpe acabou desencadeando uma onda incontrolável de fúria popular contra os protestantes que durou cerca de quinze dias.

A estratégia de Catarina foi boa para os Valois, mas péssima para o país. Com a tática de dividir para governar, ela conseguiu reter a Coroa na família por trinta anos. O preço, porém, foi a guerra civil que levou a França à beira da ruína.

A divisão do catolicismo modificou a cara da Europa no século XVI. A primeira cisão surgiu em 1517, com as teses de Martinho Lutero, em área que hoje pertence à Alemanha. Depois, Henrique VIII rompeu com Roma, em 1534, e formou a Igreja Anglicana na Inglaterra. Em 1541, Calvino, líder de outro segmento do protestantismo constituía um governo teocrático em Genebra, Suíça.

O principal bastião da reação católica para conter a reforma protestante passou a ser a Espanha, maior potência mundial da época. Felipe II, rei da Espanha, era da casa dos Habsburgos, que reivindicavam também o predomínio sobre outras regiões, como as que hoje formam Holanda e Bélgica. Para os Habsburgos, a defesa do catolicismo era bandeira útil na luta contra os movimentos de independência.

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Às vésperas do fatídico São Bartolomeu de 1572, o almirante Coligny vinha insistindo para que a França invadisse Flandres. Ao norte de Flandres, onde hoje é a Holanda, um surto independentista contestava a dominação espanhola. A proposta de Coligny significava declarar guerra à Espanha. Catarina de Médici entendia que o conflito seria desastroso para a França, por dois motivos. Primeiro, porque provocaria reações dos católicos franceses, que eram maioria e facilmente mobilizáveis pelos Guise. Depois, porque dificilmente contaria com apoio da Inglaterra, a outra grande potência internacional. Em consequência, Catarina mandou matar Coligny.

Para Elizabeth I, da Inglaterra, interessava muito derrotar a Espanha, como de fato viria a fazer em 1588. Porém, desejava fazê-lo sem permitir um reerguimento da França, sua rival mais antiga e perigosa desde a Idade Média até os tempos modernos.

Aquele que foi o pivô da Noite de São Bartolomeu, o almirante Gaspard de Coligny, teve também um papel na história do Brasil. Foi ele quem deu o aval, estimulou e financiou a expedição do contra-almirante Nicolas Durand de Villegaignon à Baía da Guanabara em 1555 para fundar a França Antártica do Brasil. O objetivo da invasão era estabelecer uma colônia francesa na América do Sul, que pudesse acolher protestantes perseguidos na Europa.

De fato, um ano depois de Villegaignon chegar, Calvino em pessoa mandou para o Brasil cerca de 600 membros de sua Igreja, entre eles alguns pastores. Um desses pastores era um ex-sapateiro chamado Jean de Léry, que publicaria 18 anos mais tarde, um relato clássico sobre a aventura, intitulado Viagem à terra do Brasil e dedicado ao filho de Coligny. Curiosamente, a obra de Léry seria a inspiradora do trabalho de um outro francês sobre o Brasil, o de Claude Lévy-Strauss, o mais importante etnólogo do século XX, autor de Tristes Trópicos.

Villegaignon fundou a França Antártica em uma ilha que hoje leva seu nome e hoje fica bem ao lado do aeroporto Santos Dumont, na cidade do Rio de Janeiro. Na época, a distância do continente era maior, pois ali foi feito um aterro. No povoado, foi construído um forte denominado Coligny, em homenagem ao almirante que ajudou a expedição. O Rio de Janeiro foi fundado pelos portugueses para combater os franceses.

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A invasão francesa durou apenas 12 anos. Em 1567 os últimos habitantes da França Antártica foram definitivamente expulsos do Brasil pelos portugueses. De volta à França, Léry escapou por pouco de morrer na Noite de São Bartolomeu. 20 fiéis de sua Igreja morreram a seu lado.

O Príncipe de Nicolau Maquiavel foi dedicado ao pai de Catarina, Lorenzo de Médici. A fama de que Maquiavel seria um diabólico conselheiro de tiranos formou-se a partir da identificação entre as ações de Catarina — como a traição da Noite de São Bartolomeu — e os pensamentos do teórico florentino. Certa ou errada, a imagem que se tem de Maquiavel não foi a única consequência intelectual das guerras de religião na França.

O filósofo Michel de Montaigne (1533-1592), hoje em dia cada vez mais apreciado, fez, como resultado de uma reflexão sobre sua época, afirmações importantes sobre a tolerância e a liberdade consciência nos seus famosos Ensaios.

Ettiene de La Boétie (1530-1563), amigo de Montaigne, lhe entregou um manuscrito que depois iria também se tornar famoso: o Discurso da servidão voluntária. Com base no pensamento antiautoritário de La Boétie, os huguenotes desenvolveram idéias que justificavam o direito à revolução.

Para que a luta entre as facções não degenerasse sempre em guerra civil, Jean Bodin (1530-1596) desenvolveu no Seis livros da República, a idéia de soberania. Apenas um Estado soberano, onde as leis fossem acatadas por todos, poderia assegurar a convivência pacífica entre os partidos.

 

 

 

Para saber mais:

A primeira guerra mundial, mesmo

(SUPER número 10, ano 9)

 

 

 

Guerras de religião duraram mais de três décadas

Entre 1562 e 1598, quando foi baixado o Édito de Nantes, houve oito guerras de religião na França. Entre um conflito e outro, estabeleciam-se acordos de paz, rompidos por ações violentas. A Noite de São Bartolomeu foi uma delas.

 

Saque de Lyon (1562)

O quadro acima mostra tropas protestantes, comandadas pelo barão de Adrets, saqueando a cidade de Lyon, no ano em que começou a primeira guerra, 1562. O barão era tido por muito cruel com os camponeses.

Cerco de Chartres (1568)

O cerco de Chartres ocorreu durante a segunda guerra de religião, em 1568. Os sítios prolongados às cidades foram uma tática usada com frequência nas guerras civis entre católicos e protestantes franceses.

Festa em Orme (1577)

Comemorações em Orme pela paz entre católicos e huguenotes (que durou sete anos) durante o reinado de Henrique III, Este assumiu o trono dois anos depois da Noite de São Bartolomeu, com a morte de Carlos IX.

 

 

No final, a vitória foi do primo pobre

Em 1589, Henrique de Navarra se transformou em Henrique IV. O último rei Valois, Henrique III, sem descendentes, preferiu renunciar em favor do primo, a deixar os Guise assumirem o poder. Henrique IV conseguiu unificar o reino e terminar com as guerras de religião.

 

Catarina de Médici (1519-1589)

Uma vida dedicada a manter o trono em poder da família Valois.

Carlos IX (1550-1574)

Um soberano fraco para os objetivos da mãe: morreu jovem.

Duque de Guise (1550-1588)

O chefe católico acabou sendo assassinado por ordem de Henrique III, o último Valois.

O rei dos católicos

Felipe II (1527-1598), da Espanha, comandou a reação católica na Europa.

A rainha dos protestantes

Elizabeth I (1533-1603), da Inglaterra, comandava a maior potência não-católica.

 

O pivô do crime

O almirante Gaspard de Coligny era proveniente da poderosa linhagem Montmorency-Châtillon, um dos clãs mais influentes da França. Na segunda metade do século XVI, os Châtillon, liderados por Coligny, aderiram ao protestantismo e fizeram uma aliança com os Bourbon. Coligny se transformou no chefe militar do partido huguenote. O duque de Guise acreditava que o almirante havia mandado matar seu pai. Depois da paz de Saint-German (1570), Coligny foi incorporado ao conselho do Rei. A partir desse posto, e exercendo, ao que consta, grande influência sobre Carlos IX, Coligny começou a organizar a invasão de Flandres. Para evitar a invasão, Catarina de Médici decide matá-lo, dando início à Noite de São Bartolomeu.

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