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Os novos índios

No coração da selva do Xingu, o conflito de gerações altera costumes, põe em xeque a estrutura tribal e enche de incertezas o futuro da cultura indígena

Por Jomar Morais
Atualizado em 16 nov 2016, 17h17 - Publicado em 29 fev 2004, 22h00

No momento em que a porta do bimotor foi aberta, uma pequena multidão cercou o avião. Uma voz inquiriu o primeiro a descer:

– Trouxe pizza? Chocolate? – perguntou Cocoró, da tribo dos iaualapitis.

É sempre assim quando um avião com gente da cidade pousa numa das pistas de terra batida do Parque Indígena do Xingu, uma área do tamanho da Bélgica situada no norte do Mato Grosso. Dessa vez, no entanto, não havia pizza nem doces a distribuir.

“Trouxe óculos”, disse o oftalmologista Rubens Belfort Júnior, do Instituto da Visão da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que faz ações preventivas e terapêuticas na área. Acostumado a freqüentar o Xingu desde a década de 60, Rubens chegou acompanhado por um grupo de médicos, empresários e representantes de instituições que apóiam as ações e logo deu início ao trabalho. Sob o calor de quase 40 graus, os médicos avaliavam a acuidade visual dos nativos, enquanto o empresário Álvaro Ferrioli, do Centro Ótico Miguel Giannini, de São Paulo, esvaziava uma mala repleta de óculos para a alegria de índios com dificuldade para enxergar pequenos objetos, trabalhar com artesanato e, sobretudo, acertar tucunarés e robalos com flechas nas pescarias, principal fonte de proteínas das aldeias.

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A equipe permaneceu na selva por dois dias e, mais que complicações visuais, constatou sinais de uma agitada transição na cultura indígena, talvez a mais profunda de que se tem notícia desde que os índios brasileiros foram abordados pelos portugueses no século 16. Aliás, uma mudança que abala os próprios fundamentos conservacionistas nos quais foi baseado o Parque do Xingu, idéia de antigos sertanistas liderados pelos irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Boas, concretizada em 1961 pelo presidente Jânio Quadros.

O Xingu já foi palco de combates sangrentos contra invasores que tentavam (e ainda tentam) ampliar sobre a mata cerrada da reserva a devastação realizada por madeireiras, mineradoras e fazendas de soja e gado no seu entorno. Aqui também, vez ou outra, agentes da Fundação Nacional do Índio (Funai) enfrentam apuros quando índigenas decidem reagir com truculência ao que supõem ser um desrespeito aos seus direitos. Nos últimos tempos, porém, a maior preocupação de caciques e pajés não é mais a ambição do homem branco ou o descaso do governo, mas uma questão doméstica: a nova geração de índios, alfabetizada e razoavelmente informada, que sonha com uma vida diferente da de seus ancestrais.

Kuarup x Rock

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O caráter explosivo dessa questão foi testemunhado pela Super no segundo dia da missão médica por ocasião de um encontro de líderes. A reunião, convocada por Douglas Rodrigues, médico sanitarista que coordena os serviços de saúde prestados pela Unifesp há quase 40 anos e mora na reserva, tinha por objetivo discutir assuntos como a melhoria dos serviços e a escassez de verbas, mas a agenda acabou descartada no calor das emoções e das diferenças entre caciques, pajés e jovens índios. No auge do bate-boca, o cacique Ayupu, dos camaiurás, acusou os garotos que hoje exercem funções nos serviços de saúde e educação do parque, se vestem com roupas de grife e curtem rock e reggae.

“Eles dizem na nossa cara que não sabemos nada, não mandamos nada”, afirmou o cacique. Foi rebatido por Pablo Ayumã, camaiurá que atua como auxiliar de enfermagem e é um dos líderes da força jovem do Xingu, com uma crítica ao estilo das lideranças. “Nossos pais precisam aprender a nos respeitar e a usar melhor os recursos da comunidade”, disse Ayumã, causando tumulto. Muitos desses novos índios viraram funcionários do governo, formando uma casta de assalariados com ambições de consumo que agora ensaiam os primeiros passos na direção do poder tribal. É aí que o conflito de gerações extrapola a intimidade das malocas.

Nem era preciso que adultos e jovens mergulhassem em discussão para que se pudesse perceber as divergências. Bastava olhar para aqueles homens, reunidos na beira do rio. Caciques e pajés compareceram seminus e descalços. Pelo menos um deles, o velho pajé Tacumã, marcaria posição apresentando-se em traje de gala indígena: nu, com o corpo vermelho de urucum e a cintura ornamentada com o kuarrap, um cinto de palhas coloridas. Contrastando com o naturalismo da cena, garotões como Pablo Ayumã, Marcelo Canawayuri e Maurício Matariná (eles fazem questão de seus prenomes brancos) exibiam-se em vistosos tênis, calças jeans e camisetas de marca. No brilho de seus olhos, vislumbrava-se um mundo estranho e incompreensível para seus pais.

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Segundo o cacique Aritana, dos yaualapitis, cuja saga na cidade grande inspirou a novela Aritana, que passou em 1978 na TV Tupi, esse descompasso é conseqüência da educação baseada em valores da civilização branca a que os meninos do Xingu foram submetidos. Tatap, o índio que traduz Tacumã, é ainda mais amargo: “Nossos jovens não querem mais pintar o corpo para festas como o Kuarup [a grande evocação dos antepassados]. Dizem que preferem coisas limpas e sonham em viver na cidade”. É como se, de repente, um movimento hippie ao avesso tivesse emergido na floresta. Rituais como a reclusão pubertária das meninas e o pedido de permissão para casamento estão sendo atropelados por adolescentes com um ímpeto comparável ao dos jovens que nos anos 60 fizeram a revolução dos costumes brancos.

Em tribos com mais de 300 índios, segundo Tatap, a tradicional reunião de fim de tarde no centro da aldeia – um momento cerimonial que, ao longo de séculos, serviu para os mais velhos relatarem feitos heróicos e repassarem ensinamentos à juventude – agora não consegue atrair mais que dez jovens.

O problema afeta não apenas a organização das tribos do Xingu, mas a própria sobrevivência de algumas nações. Somando todas as etnias, estão instalados na reserva somente 4 175 índios. Há nações, como a dos trumais, que não têm mais que 90 membros, o que coloca em risco de extinção a língua, os hábitos e as crenças ancestrais do grupo. Mas, para os jovens, não há motivo para celeuma.

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“Não é verdade que desprezamos nossa cultura”, diz o ousado Canawayuri, auxiliar de enfermagem com pinta de rapper que adora o som do Jota Quest e dos Raimundos e cujo sonho de consumo é uma câmera digital. “É possível desfrutar das coisas modernas sem esquecer a tradição. O que importa é saber usar a tecnologia para melhorar a vida na aldeia”, afirma. No plano político, o que garotos como Ayumã e Canawayuri desejam não difere em essência dos objetivos de outros milhões de jovens das cidades. Eles clamam por renovação na liderança, novas idéias e métodos mais transparentes na gestão de suas sociedades.

O choque de gerações é certamente o aspecto mais visível de um processo acelerado de mudanças impulsionado por dois fatores não mencionados na guerra verbal dos índios: a chegada da TV ao território das malocas e a multiplicação de cidades junto às fronteiras da reserva indígena. Em cada um dos postos de serviço do Xingu – Leonardo (onde nosso avião pousou), Pavuru e Diauarum –, há um gerador elétrico, uma antena parabólica e pelo menos cinco televisores.

Os aparelhos permanecem desligados durante o dia, devido ao racionamento de energia, mas à noite atraem principalmente uma platéia de jovens ávida por saber o que se passa no resto do mundo e curiosa ante o modo de viver dos “civilizados”, exposto em filmes e novelas. Quando vão às cidades vizinhas para comprar mantimentos, varando rios em barcos motorizados, muitos desses índios acabam cedendo ao impulso de provar bebidas, freqüentar boates e levar para a aldeia produtos que substituem hábitos do passado.

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“O contato com as cidades próximas trouxe para as aldeias o alcoolismo, a disseminação da gripe e até casos de aids e outras doenças sexualmente transmissíveis”, diz o sanitarista Douglas. “A mudança no padrão alimentar gerou desnutrição e um leque de novas doenças”. Os brancos introduziram na selva o sal marinho (os índios usavam sal vegetal, extraído de raízes) e, com ele, a hipertensão. O açúcar e o macarrão, agora consumidos em larga escala nas aldeias, ajudaram a espalhar o diabetes. O tradicional beiju de mandioca, alimento básico junto com peixes e caças, vai cedendo lugar ao arroz, bem menos nutritivo, o que dificulta o combate à tuberculose, doença cuja incidência é 50 vezes maior entre os índios que entre os demais brasileiros.

Isso é tudo o que Orlando Villas-Boas – o sertanista morto há um ano que é venerado em todo o Xingu – não queria. Orlando acreditava que os povos indígenas só sobreviveriam na sua própria cultura. Assim, caberia ao Estado organizar espaços como o Parque do Xingu, que servissem de proteção à estrutura social desses povos. Graças à habilidade dos irmãos Villas-Boas e à sabedoria das lideranças indígenas, foi possível, naquela época, costurar o entendimento entre diferentes etnias e retirá-las da rota de extermínio, reunindo-as no território seguro do parque. Nos últimos anos, a segurança aparente começou a ruir, com a explosão dos valores brancos no interior das ocas.

“A situação atual era inevitável. O mundo mudou e não há mais como manter os índios numa redoma”, diz a médica sanitarista Sofia Mendonça, da Unifesp, que atua no Parque do Xingu há mais de 20 anos. “A história está acontecendo e eles fazem parte dela.” Muita gente concorda com Sofia, inclusive a Funai, executora da política indigenista do governo. Como qualquer sociedade humana, as dos índios passam por constantes mudanças e reelaboram sua cultura com o passar do tempo, haja ou não contato com os civilizados.

A questão é que o choque com a cultura dos brancos em situação desvantajosa, num ambiente de dominação política, econômica e religiosa, dizimou nações indígenas e deixou as sobreviventes em grande fragilidade. Estima-se que na época do descobrimento houvesse 10 milhões de índios no país. De lá para cá, enquanto a população branca aumentou do zero até os 170 milhões atuais, as centenas de etnias de índios tiveram seus números reduzidos a menos de 358 mil almas.

O foco agora é preparar os grupos que vivem no Xingu para um confronto cultural com os brancos em circunstâncias ainda mais complexas. As vilas fronteiriças logo se transformarão em cidades, com atrativos bem maiores aos vizinhos índios. Como evitar que os índios não almejem adquirir eletrodomésticos e roupas de grife, depois de se exporem à publicidade desses produtos, ou que comparem a aridez das aldeias ao conforto dos bairros elegantes das cidades?

Por enquanto, o ponto que une antigas e novas lideranças é a formação de professores índios que, além das disciplinas curriculares, possam ensinar nas escolas a língua e as tradições de seus povos. Pomenkepô, um ykpeng de 22 anos, por exemplo, tomou para si essa tarefa no posto Pavuru. Jovens de outras tribos aceitaram desafios semelhantes. Os brancos também acham que chegou a hora de os índios assumirem o comando total dos serviços de educação, saúde… enfim, de toda a infra-estrutura da reserva. No Distrito Sanitário, administrado pela Unifesp, já 60% dos 98 funcionários são índios e a previsão é chegar a 100% em cinco anos, com a implantação do curso de formação de gestores.

A transferência de obrigações, que exige dos índios competência administrativa e a habilidade de dialogar de igual para igual com os brancos, entusiasma os jovens escolarizados, mas, de certo modo, deixa perplexa toda uma geração de grandes líderes que cresceu habituada à tutela total do Estado, assegurada pela Constituição. O consenso entre essas duas bandas dos povos da selva ainda pode demorar, mas é inevitável que eles venham a assumir o controle total de seus interesses no mundo complexo e globalizado. Um desafio desse porte o índio brasileiro jamais conheceu antes.

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