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“Primeira-dama do teatro brasileiro”: Inquieta e insuperável

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 31 jul 2004, 22h00

Celia Demarchi

Perto de completar 75 anos (em 16 de outubro), a atriz Fernanda Montenegro sente-se tão “desassossegada” quanto a personagem Regina de seu mais recente filme, O Outro Lado da Rua, do cineasta Marcos Bernstein. O pa-pel lhe rendeu este ano o prêmio de melhor atriz no Festival de Tribeca, em Nova York. Foi mais uma conquista na carreira brilhante dessa ca-rioca do subúrbio de Cascadura, cujo nome verdadeiro é Arlete Pinheiro. Filha de um operário e uma dona-de-casa, ela subiu aos palcos pela primeira vez numa época em que meninas com esse perfil raramente ousavam sonhar com destinos tão pouco convencionais. Fernanda começou a trabalhar aos 15 anos, como locutora da Rádio MEC (do Ministério da Edu-cação e Cultura), onde também foi rádio-atriz e redatora. Na época, ela ainda não sabia que carreira iria seguir, mas já intuía um caminho diferente: “Não queria viver a vida da minha mãe”.

Com essa inquietação, Fer-nanda alargou rapidamente os ho-rizontes, integrou-se a um grupo de teatro amador e, aos 20 anos, estreou no Teatro Copacabana com sua primeira peça, ao lado de Nicete Bruno, Beatriz Segall e Fernando Tor-res (com quem se casaria virgem, aos 24 anos). Dezenas de peças, 13 filmes e umas tantas novelas e minisséries de TV depois, ela se define hoje apenas como “uma mulher que trabalha”, desdenhando do título de primeira-dama do teatro brasileiro – “uma chatice importada”.

De seu corpo esguio e ágil, de sua voz grave e segura, de sua pele clara e delicada sem nenhum sinal de cirurgia plástica, a atriz exala elegância e profissionalismo. E somente do fundo de seus grandes e expressivos olhos castanhos, ocasionalmente, dei-xa transparecer um pouco de Arlete Pinheiro, a menina do subúrbio que um dia ousou transformar-se em Fernanda Montenegro.

Você se identifica com a personagem do filme O Outro Lado da Rua por algum motivo especial?

Eu me identifico com sua vocação de aventureira. Regina (sua personagem) é uma mulher que busca, de alguma maneira, viver outras vidas. Ela é informante da polícia, então ela se transmuta. Para cada local se veste de acordo com o clima da situação. Acho que é uma inconformada, não aceita seu tempo. Segundo a sociedade, ela já deveria estar aquietada.

Você se sente inconformada?

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Eu diria que me sinto ainda bastante desassossegada.

Quando você foi ser locutora da Rádio MEC, do Rio de Janeiro, aos 15 anos, algo já lhe dizia que seguiria a carreira artística?

Algo em mim me dizia que eu não ia viver a vida da minha mãe. Ou que eu não queria viver a vida da minha mãe e não tinha isso ainda na minha cons-ciência. Eu pressentia que iria, talvez, ter uma vida diferente.

E quando você se direcionou realmente para a vida artística, como foi a reação da sua família?

Eles ficaram muito assustados porque não tinham referência nenhuma. Ia-se muito ao cinema, ia-se um pouco menos ao teatro, geralmente às comédias da Cinelândia, às revistas da praça Tiradentes. Minha mãe e meu pai ficaram inquietos com essa coisa de eu sair toda noite para trabalhar, de nos fins de semana não estar junto com a família. Mas eu nunca os en-frentei, nunca fiz disso um sapateado espanhol, nunca puxei as castanholas, está entendendo? Fui deixando a coisa caminhar. Estreei no teatro, fui para a televisão e, dois anos depois, voltei para o teatro.

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Por que você escolheu se chamar Fernanda Montenegro?

Depois de dois anos na rádio, comecei a redigir programas literários. E aí escolhi um pseudônimo que achei literário e engraçado, um sarro. Es-crevi “Fernanda Montenegro”. E es-se foi o nome que pegou.

Como é a relação com os seus fi-lhos? É uma relação tranqüila?

Olha, eu sempre achei que filho não é para a gente, embora a gente gostaria que fosse. Desde cedo a gente vai ven-do que cada um tem um tempera-mento, tem uma vontade. Nunca fomos de proibir. Nós os emancipamos com 16 anos, achamos que era o melhor. (Fernanda Montenegro tem dois filhos: a atriz Fernanda Torres e o cineasta Cláudio Torres.)

E o que eles fizeram depois que obtiveram a emancipação?

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Fizeram a vida deles. Se viessem a nós e fizessem consultas, estávamos lá, a qualquer hora que precisassem.

Em quantos projetos você já atuou com seu marido, Fernando Torres?

Atuamos juntos desde 1953. São 50 anos que nós dois atuamos juntos. Ou dirigindo ou trabalhando como atores ou empresariando…

E o casamento? Um casamento de 50 anos é uma vida, não?

51 anos. São diversas vidas.

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Fale um pouco sobre esse relacionamento.

É difícil falar de relacionamento de casal. Que posso lhe dizer? Nos suportamos pelos anos com muita galhardia, com muita compreensão, com muito amor, com muita amizade, com muita cumplicidade…

Já cogitaram fazer um projeto que juntasse toda a família?

Não. Não que se evite, mas a gente procura não fazer isso, dobradinhas… Cada um deixa sua vida correr numa boa. De vez em quando a gente se encontra, de anos em anos… Fiz duas peças com a Fernandinha e agora vou fazer um segundo filme com ela, o Casa de Areal, dirigido por Andrucha Waddington. É uma história que se passa no início do século, no interior do Maranhão.

E quanto a seus netos? Você convive com eles?

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Convivo, convivo muito. Inclusive quando a Nandinha viaja, o Joaquim, de 6 anos, vai lá para casa. Ele sabe que, quando não tem a casa da mãe, tem a casa dos avós. O outro, o Davi, de 4 anos, também está sempre lá.

Ultimamente, você tem estado muito pouco na TV. E, no entanto, continua aparecendo bastante na mídia. Qual o segredo?

Eu trabalho, não é? Este ano fiz três filmes (Olga, O Redentor – dirigido por Cláudio Torres, seu filho – e Do Outro Lado da Rua). Agora, estou indo para um outro filme.

Você está priorizando o cinema?

O cinema está me priorizando. Então, eu vou atrás de quem me prioriza. Se me dão um roteiro bom e eu confio no diretor, eu vou.

E há espaço para o teatro ainda?

Agora não. Mas tem hora que me sinto muito esquisita porque nunca fiquei tanto tempo sem pisar num palco.

Há quanto tempo?

De três para quatro anos. A última foi Alta Sociedade. Fizemos um ano inteiro e paramos por causa do cinema.

Quando você escolhe algum texto de peça, o que você considera?

Acho que é a humanidade do texto. A maneira como ele será dirigido, isso depois a gente vê. Mas o que me toca primeiro é o que de humano há ali. E por aí agente esquenta o projeto.

O que é mais gratificante para vo-cê: cinema, TV ou teatro?

Como base é o teatro. O palco, ele é ciumento, sempre exige de você uma presença diária, de corpo e alma, ali, não é enlatado… Mas não posso deixar de reconhecer a importância da televisão e do cinema.

Qual é a importância da televisão?

É a possibilidade de você abranger o país inteiro. Você não pode ir com uma companhia de teatro para o fundo da Amazônia, do Pantanal, dos pampas… E a televisão te leva. É claro que ela leva muita porcaria, mas também muita coisa boa. Você não pode dizer que a televisão só faz bobagem. As coisas que fiz na TV Globo, eu as fiz com muito prazer e fiquei muito feliz de tê-las feito. E o cinema também, co-mo a televisão, é um produto de ex-portação cultural do país. Cada um a seu modo te dá uma abertura.

É verdade que você se incomoda com o título de “primeira-dama do teatro brasileiro”?

Isso é uma chatice, é constrangedor. Uma coisa importada, boba. Sou uma atriz que trabalha, como qualquer outra atriz no Brasil.

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