Profissão: coveiro e escritor
Quem vê Francisco Pinto de Campos Neto, o Tico, enterrando corpos, nem imagina que é um autor elogiado
Como você se tornou coveiro?
Quando minha mãe morreu, em 2010, fiquei muito abalado, fui parar na rua e nas drogas. Eu vivia como um mendigo quando vi o anúncio de um concurso para ser sepultador no Cemitério da Consolação. Consegui R$ 10 emprestados para a inscrição, me preparei e passei.
E a carreira de escritor?
Em 2006, lancei meu primeiro livro, uma coletânea de contos chamada Elas, etc., bancada por um amigo. Ninguém leu. Em 2012, enquanto eu esperava o resultado do concurso, outro amigo meu, o Binho [Robson Padial, poeta que organiza um sarau na Zona Sul de São Paulo], me deu hospedagem. Nesse mesmo período consegui, via Binho, que uma agência de fomento à cultura publicasse 500 cópias do meu segundo livro, As Núpcias do Escorpião. As duas notícias, que meu livro seria publicado e a aprovação no concurso para sepultador, vieram juntas.
Leia também:
O que acontece após a morte?
A morte como ela é
Você já escrevia fazia muito tempo?
Desde os 14 anos, tenho muita coisa guardada. No colégio, eu era um aluno bagunceiro, e depois virei um aluno apático, que só se interessava por redação. Passei em letras na USP em 1980, mas não cheguei a terminar o curso.
Já se sentiu mal por ser coveiro?
Jamais. O prestígio deveria ser igual ao de toda profissão. O martelo do borracheiro deveria ter o mesmo peso do martelo do juiz – se furar o pneu, ele não chega à audiência. Já trabalhei com todo tipo de bico. E, veja, eu estava numa situação ruim, vivendo na rua ou em albergues. Precisava trabalhar, então vi essa profissão como um começo.
Você escreve no cemitério?
Nunca escrevo lá por falta de tempo. Porém, o escritor está sempre trabalhando, se você for pensar. Enquanto caminho pelo lugar, tenho ideias.
Seus contos abordam temas mórbidos e dolorosos. A carreira funerária o inspira a seguir essa linha?
Gosto de dizer que escrevo, para citar Dostoievski, sobre os humilhados e os ofendidos. Os miseráveis de modo geral. Não falo só de grana: os miseráveis de criatividade, de afetividade, de tudo. E falo muito sobre loucura. Estive 20 vezes internado por causa de drogas. Fiquei em clínica classe média e até em lugares horríveis onde te tratam como um animal, com arame farpado, jaulas e punição. Quis mostrar o que eu vivi.
E hoje, você está bem?
Faço meu trabalho e tenho meu quartinho numa pensão. É um lugar pequeno, mas é meu. E é lá que escrevo.
O cineasta Zé do Caixão elogiou muito sua obra. Deu “nota 8,5 numa escala onde o Edgar Allan Poe é nota 10”. Como você se sentiu depois disso?
Meu ego ficou duro. Fiquei lisonjeado e deu uma força grande para o meu trabalho. Tivemos até que fazer uma reimpressão. Primeiro foram 500 exemplares e agora sairão mais 2 mil cópias.
Elvis Presley e Rod Stewart também foram coveiros antes da fama. Você acredita que pode fazer o mesmo sucesso como escritor?
Não sei se tanto sucesso quanto o deles, mas espero que sim. Sem parecer pretensioso, quero que meu próximo livro, um romance, chegue para arrebentar. Quem viver, verá.