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Questão de desordem

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Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 30 set 2004, 22h00

Guitarras distorcidas nos nobres festivais de MPB? Efeitos eletrônicos em clássicos de Orlando Silva? Discos-manifesto anunciando a manhã tropical? Músicas inspiradas em instalações de artes plásticas? Platéias jogando tomates nos músicos? Em 1968, a tropa de choque tropicalista tomou de assalto o pop brasileiro para determinar que tudo era divino, maravilhoso. E sonhar que as proibições estariam proibidas.

Os festivais

Texto Zuza Homem de Mello

Quando comecei a trabalhar na TV Record, em 1959, havia o costume de chamar artistas internacionais, como Bill Haley, Sammy Davis Jr. e Nat King Cole. Somente a partir de 1965, com a contratação de Elis Regina, é que se iniciou a fase de música brasileira na emissora. Foi então que surgiram os dois compositores que iniciaram aquilo que seria chamado de tropicalismo: Gilberto Gil, que aparece já no II Festival, de 1966, e Caetano Veloso, que ainda se apresentava na TV Excelsior (atual Globo).

Os festivais sempre foram ousados. Entre 1959 e 1961, a música brasileira atravessou uma fase revolucionária por causa da bossa nova. Até 1965, essa herança se manteve. Depois, os festivais aproximaram a temática musical do cenário político, por causa da ditadura. Do ponto de vista formal, “Disparada” (1966) e “Arrastão” (1965) representam um marco, porque não têm vínculos com a bossa e são muito diferentes do que se fazia.

Em 1966, não havia o menor sinal do que poderia surgir. Porque existia um fosso entre a bossa nova e a jovem guarda. Entre o público, essa divisão também era bem definida: a bossa era ouvida por universitários, enquanto a jovem guarda agradava aos adolescentes e colegiais, basicamente. Desde o início, o tropicalismo pareceu muito estimulante, mas Gil e Caetano ainda não sabiam claramente o que queriam quando apresentaram “Domingo no Parque” e “Alegria, Alegria”, em 1967 – Caetano cantou de terno e camisa de gola rolê!

Mas, naquele mesmo ano, eles ficaram fascinados com o LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, e decidiram incrementar suas composições para o próximo festival com uma roupagem que eles chamavam de “som universal” – este era o termo, no começo. Já havia guitarras e a orquestração do maestro paulista Rogério Duprat tinha ligação direta com o que os Beatles estavam fazendo.

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Em setembro de 1968, houve a primeira apresentação com roupas extravagantes, na eliminatória do Festival Internacional da Canção, da Excelsior. Houve toda aquela vaia durante “É Proibido Proibir”, Caetano fez seu discurso e decidiu, junto com Gil (que defendia “Questão de Ordem”), se retirar publicamente do festival. E nesse momento o tropicalismo realmente invadiu a cena brasileira, foi aí que se passou a falar sobre uma nova estética. O termo apareceu quando saiu o disco de Caetano, cuja primeira faixa era justamente “Tropicália”.

Naquele mesmo ano, Gal Costa e Tom Zé também se exibiram com figurino tipicamente tropicalista para defender “Divino Maravilhoso” e “São, São Paulo, Meu Amor”, respectivamente, no IV Festival da Record. Até 1967, todos se apresentavam de smoking – é só lembrar do Chico Buarque cantando “A Banda”, no ano anterior.

A estética teve grande importância, porque deu visibilidade ao movimento quando ele chegava à TV por meio dos festivais. Ainda assim, é importante salientar que os conceitos foram estabelecidos graças à contribuição de outros artistas, como Torquato Neto. Ele foi uma espécie de intelectual do tropicalismo, criou o decálogo que seria adotado. As letras mais importantes do disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis , lançado em julho de 1968, são dele.

O crítico de música e escritor Zuza Homem de Mello foi técnico de som da TV Record e testemunha ocular da história. Depoimento cedido a Luciano Marsiglia.

Antropofagia

Texto Décio Bar

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Quando Roberto Carlos mostrou que viera para ficar, percebeu-se que os Beatles eram muito mais do que um grupo de jovens com grande antipatia pelos barbeiros. As coisas passaram a acontecer com tal rapidez que mesmo o comodismo petrificado de certos ambientes culturais brasileiros começou a ser abalado.

No Brasil, foram os cineastas e pintores os primeiros a assimilar os novos rumos artísticos que eclodiam, ao mesmo tempo, pelo mundo. As exposições Opinião, no Rio de Janeiro, e Propostas 66, em São Paulo, vieram confirmar a impressão deixada pela Bienal de 1965. Ligando-se à vanguarda mundial, o artista brasileiro valia-se de toda a liberdade oferecida pelas colagens, montagens, pelos equipamentos sonoros e luminosos para fazer o levantamento da cultura moderna. Havia quase meio século, o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo já procuravam entender esse universo. Dessas sementes plantadas na Itália, na Alemanha, na França, brotariam frutos híbridos no Brasil.

Até então (pela dificuldade de um contato mais direto com seus resultados), a Semana de Arte Moderna de 1922 se resumia a um vago item nos currículos escolares. Para o estudante médio, ela parecia ter sido uma série de banquetes agitados, onde se celebrava a desdita do Bispo Sardinha – devorado pelos índios em 1554. Muitos atribuíam sua organização aos “irmãos” Andrade e as novas gerações não se interessaram por tal movimento.

Até que, em 1967, o Teatro Oficina levou à cena O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, com direção de José Celso Martinez Corrêa. Daí em diante, uma porção de gente passaria a entender muita coisa; outros, a não entender mais nada. Primeiro, ficava-se sabendo que, apesar do sobrenome, não havia parentesco entre Oswald e Mário de Andrade. Segundo, descobriu-se que uma peça escrita em 1933 inquietava mais que todo teatro “engajado” da época.

Todo material teatral de Oswald é colhido em nosso modo de vida, sendo reelaborado com uma insolência particular. Zé Celso, com imagens vivas, levou esse espírito a seus limites: circo, Chacrinha, chanchada da Atlântida. Tratava-se de uma tentativa de captar criticamente o gosto das grandes massas brasileiras e, com ele, o verdadeiro espírito da cultura criada no trópico.

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Na platéia, um espectador particularmente deslumbrado: Caetano Veloso, que, uma semana antes, havia composto “Tropicália”, inspirado em uma instalação de Hélio Oiticica. Na música e na peça, a nova realidade brasileira era jogada em contraponto com os valores tradicionais do gosto popular. Caetano diria depois que dividia sua obra em antes e depois de ter visto O Rei da Vela.

Zé Celso, por sua vez, encantou-se com o intercâmbio: “Fui violentamente influenciado pelo filme Terra em Transe, de Glauber Rocha. Agora, Caetano se diz influenciado pelo meu espetáculo. Tenho certeza de que nossa geração vai começar a criar algo de novo”.

Terra em Transe, feito em 1966, trata da política violenta, corrupta e contraditória de um país latino-americano imaginário, Eldorado, onde vigora uma mistura de fascismo místico, populismo barato e romantismo revolucionário. Glauber Rocha se perguntava o que era ou não era de bom gosto. Entre uma usina hidrelétrica e o luar do sertão, não há dúvida – fica-se com os dois.

Se O Rei da Vela abriu para Caetano uma nova visão, para Gilberto Gil houve outra fonte de confirmação. E, novamente, uma montagem teatral, A Cantora Careca, de Eugène Ionesco, dirigida por Líbero Ripoli Filho. Na montagem, Líbero cortava pedaços, intercalava seqüências de comercias de TV e, ao final, trancava as portas do teatro para um debate. Então, representava a peça de novo, explicando cada detalhe. Gil ficou surpreso.

Outra referência que não pode faltar toda vez que se fala de tropicalismo é Abelardo Barbosa, o Chacrinha. Enquanto os animadores de programas de auditório são sempre bem-comportados, Chacrinha faz exatamente o contrário: é malcriado, chama o auditório de “macacada” e, não raro, manda-o “para as profundas do inferno”. Veste-se com fantasias espalhafatosas, distribui legumes. O povo o adora. E os jovens artistas tropicalistas o tomam como a expressão direta, em estado bruto, da verdadeira sensibilidade estética do povo brasileiro.

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“Sou tropicalista desde 1946”, disse Chacrinha. “Admiro muito Caetano, Gil, os Mutantes. Mas eles todos me imitam.” Para Chacrinha, como para uma boa parcela da opinião pública, o tropicalismo é apenas uma maneira de se fantasiar. As atividades paralelas de Glauber Rocha, Zé Celso, Líbero Ripoli e outros lhe escapam totalmente. A relação entre o artista e o público nunca o preocupou – é que Chacrinha domina o auditório. Este, aliás, é o aspecto que mais interessa a Rogério Duprat. O maestro é, fundamentalmente, um intelectual comprometido com a destruição de todos os valores tradicionais.

“O que importa hoje, na música, é o que acontece quando ela é executada”, garante Duprat. “Não queremos mais a tal da Arte. Hoje ela deixou de ser um objeto do artista e passou a ser um resultado coletivo. Todo mundo cria. O que importa é o acontecimento. Assim, no single É Proibido Proibir, acho que o lado mais importante do disco é aquele gravado ao vivo, com as vaias do público e o discurso de Caetano.”

Duprat considera a música como algo já esgotado. Tudo já foi feito, qualquer sofisticação melódica, rítmica ou harmônica é inútil. “Por isso, a música de Gil ‘Questão de Ordem’, desclassificada no festival, em São Paulo, era propositalmente antimusical. O que interessava era o acontecimento. E, se não quiserem chamar isso de música, então chamem a polícia…”

O maior contato entre o tropicalismo e a jovem guarda foi estabelecido por Gal Costa. Sempre que pode, ela aparece nos programas de Roberto Carlos. A cantora recusa-se a aceitar a hipótese de um abismo entre os dois movimentos. Ao contrário, entende o iê-iê-iê como uma ponte sem a qual a música brasileira ou nunca sairia do “Barquinho” ou se deteria no “barraco cuja porta era sem trinco”. “Independentemente de sua importância histórica, acho o Roberto genial. Não foi sem razão que o Duprat colocou uns acordes de ‘Nossa Canção’ em ‘Baby’. Tropicalismo é gostar das coisas sem medo.

Enquanto a jovem guarda foi dissecada por sociólogos e psicólogos, o tropicalismo atraiu a atenção dos poetas concretistas Augusto de Campos e Décio Pignatari, seus maiores divulgadores. Augusto vê no movimento uma continuidade, mas não linear, do ciclo aberto por João Gilberto: “Eles deglutem, antropofagicamente, a informação do maior inovador da bossa nova. E voltam a por em xeque e choque toda a tradição musical brasileira, a bossa nova inclusive, em confronto com os novos dados do contexto universal”.

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A todo instante o tropicalismo se refaz e se transforma, deixando um rastro de interrogações. A agitação dos críticos que se atiram à tentativa de resolver esse enigma contrasta com a tranqüilidade dos próprios tropicalistas. Para eles, a tranqüilidade é resultado da confiança que têm em seu trabalho e que pode ser resumida numa frase de Capinam: “De tanto ver triunfar as nulidades, hei de vencer!”

Reportagem publicada originalmente em dezembro de 1968 na revista Realidade.

O guitarrista: Sérgio Dias

“A chegada da guitarra e do rock’n’roll deu um tapa em todo mundo”, declarou Sérgio Dias sobre o advento da tropicália. Os Mutantes, ao lado dos Beat Boys, foram quem verdadeiramente colocaram a guitarra na música popular brasileira – e vice-versa. Sem os efeitos alienígenas de Sérgio no disco Tropicália ou Panis et Circensis, não haveria o mesmo choque. A pressão vinda da ala mais tradicional, que incluía abaixo-assinados contra o grupo, nunca tirou seu humor. Nos festivais, o sorriso permanecia intacto em seu rosto enquanto dedilhava os braços do instrumento construído pelo irmão Cláudio César. Sérgio começou a tocar depois de abandonar a escola, aos 13 anos. Na verdade iniciou com um violão Rei, com o qual passou a dar aulas particulares que rendiam mais do que a mesada dos pais. Somente depois veio uma Fender Stratocaster. “No começo só mexia a palheta para baixo. Depois é que descobri que podia mexer para cima”, lembrou o autodidata. Sérgio passava várias horas por dia praticando, um grau de exigência e determinação raro em alguém tão jovem. Mas foi isso que permitiu o tráfego entre os mais diferentes gêneros musicais, que se tornaria marca registrada dos Mutantes. Aos 15 anos, Serginho já era considerado um músico completo. A confiança exibida no palco também era fruto dessa obsessão. “Uma vez estava viajando de ácido e tive de parar no meio de uma música para consertar a pedaleira com um ferro de soldar.”

O empresário: Guilherme Araújo

Você é um descobridor de artistas, como fez com Maria Bethânia e Caetano Veloso. Como identifica um novo talento?

Quando os artistas do grupo baiano da MPB foram para o Rio de Janeiro, havia dois empresários na área de música: o Marcos Lázaro e eu. O Marcos já trabalhava com artistas estabelecidos e eu, baseado na intuição, procurava artistas novos em quem pudesse apostar. Produzi o primeiro show da Bethânia porque ela, na época, era a única artista com uma proposta inovadora na música brasileira: o jeito arrebatado e forte de cantar. Achei que aquilo iria dar certo. Já Caetano e Gil resolvi apadrinhar por causa da grande afinidade de idéias que nos unia.

Fale de seu envolvimento com a tropicália. Você era apenas o empresário ou participava ativamente?

Fui eu quem os convenceu a utilizar guitarras elétricas em músicas como “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”, que, por sinal, nem tinham sido compostas com essa preocupação. Está certo que os dois são grandes compositores e cantores, embora não sejam os autores de todas as idéias.

Investir contra uma série de valores trouxe problemas ao grupo?

Tivemos de encontrar os meios adequados para a divulgação das criações do grupo. Mas não há uma nítida resistência nas estações de televisão. Veja, não é um problema de ser ou não ser comercial. O apoio que tivemos de Manoel Barenbein na produção dos discos foi plenamente recompensado. O que existe é ignorância, o medo de ousar. Por isso acho que prefiro o teatro, onde tudo o que fazemos vai por nossa conta e risco. Não tenho dúvidas sobre a importância do tropicalismo, principalmente por tudo que falam contra ele. Afinal, ninguém dá pontapé em cachorro morto.

Condensado de entrevistas conduzidas por Martha Baptista (revista Veja de 5 de fevereiro de 1986), Elda Priami (revista Interview de outubro de 1995) e Lucinha Karabtchevsky (Interview de abril de 1991).

As guitarras

Texto Luciano Marsiglia

No dia 17 de julho de 1967, com o intuito de “defender o que é nosso”, foi organizada em São Paulo uma passeata contra a invasão da música estrangeira. E o maior símbolo dessa invasão era a guitarra elétrica. A manifestação não impediu o instrumento de ajudar o tropicalismo a quebrar alguns dogmas da MPB – com Gil (que estava na passeata por simpatia a Elis Regina, que o ajudou em início de carreira) na linha de frente. Um ano depois, o “inimigo” dos tradicionalistas não era mais o iê-iê-iê, mas o tropicalismo e o grande vilão, Caetano Veloso, que havia recusado a participar do ato.

Tudo bobagem, claro. A influência dos Beatles não faria todo esse mal, Gil só foi realmente aprender a usar uma guitarra em Londres, anos depois, e a música brasileira viveria momentos de grande criatividade e relevância nos anos da tropicália. No final, o “som universal” seria abraçado por gerações futuras, tanto por artistas de MPB quanto de rock. E a proibição da guitarra no festival da Record em 1970 revelou mais sobre a falência dos festivais do que sobre a vitória dos puristas.

Tesouros perdidos do tropicalismo e da psicodelia

Rogério Duprat

A Banda Tropicalista do Duprat (Philips, 1968)

A moral do maestro estava tão alta que a Philips apostou em um álbum completo comandado por ele, que misturou Villa-Lobos e Beatles. Os Mutantes participam com três faixas.

Fábio

Lindo Sonho Delirante (Equipe, 1968)

Sacou? L-S-D? O cantor que faria sucesso nos anos 70 com o soul “Estela” também teve sua fase muito louca, neste polêmico single.

Liverpool

Por Favor, Sucesso (Equipe, 1969)

Uma das poucas bandas que cruzou o iê-iê-iê, o tropicalismo, a psicodelia e chegou até o rock pauleira (com o grupo Bixo da Seda).

Serguei

O Burro Côr-de-Rosa/ Ouriço (Philips, 1970)

Visto hoje como uma espécie de freak manso folclórico, Serguei surpreende nesse acid rock de alta voltagem produzido por Nelson Motta.

Gilberto Gil e Rogério Duprat

Brasil Ano 2000 (Forma, 1969)

Trilha da pioneira ficção científica de Walter Lima Jr. com Gal Costa atacando de atriz.

Caetano Veloso e Mutantes

Marcianita (Philips, 1968)

EP com o clássico “Marcianita” (de Sérgio Murilo), “Baby”, “Saudosismo” e “A Voz do Morto” (do próprio Caetano).

Novos Baianos

É Ferro na Boneca (RGE, 1970)

Primeiro álbum do grupo, na época com os oito pés enfiados no som de Jimi Hendrix.

O jardim do solar

Texto Zé Rodrix

Aquele verso de “Panis et Circensis” (“mandei plantar/ folhas de sonho no jardim do Solar”) diz respeito ao Solar da Fossa, que era um grande cortiço transformado em hotel, em Botafogo, no Rio de Janeiro, onde hoje existe o Shopping Rio-Sul. Era um lugar barato e todo mundo da bossa nova, da jovem guarda e da tropicália conviveu ali. E os malucos realmente plantavam maconha lá (“folhas de sonho”). Mas a maluquice é muito relativa, as aparências enganam. Vi muito mais gente da MPB usando drogas do que os roqueiros. O iê-iê-iê era careta, até.

Publicamente, a convivência era ruim, mas na intimidade era um circo. Tínhamos vidas em comum, freqüentávamos os mesmos restaurantes para bater papo. O Cave, na Rua Eduardo Prado, em São Paulo, por exemplo: todos apareciam às 3 da manhã para comer picadinho. E escutava-se um rockinho para dançar! Esse fosso musical foi alimentado por jornalistas e ideólogos rançosos, era uma guerra criada artificialmente. Os festivais, claro, se beneficiavam do problema. A Record tinha os programas Jovem Guarda e o Fino da Bossa, que preferia colocar como concorrentes, porque imaginava que assim teria maior repercussão. Ambos tinham audiência, mas as pessoas assistiam porque o barato da época era a música.

É claro que aconteciam atritos. Numa noite, Geraldo Vandré discutiu com Caetano e Gal, afirmando que “Baby” era uma merda e que eles tinham de apoiar a canção dele no festival, porque ela sim faria a revolução. Houve também a famosa passeata contra a guitarra elétrica, em 1967, insuflada pela Record. É gozado porque na linha de frente estavam Elis Regina e Gilberto Gil de braços dados. E ele já estava preparando “Domingo no Parque”…

Quando eu ficava no hotel Danúbio, era impressionante: o Gil ouvia Sgt. Pepper o dia inteiro. Só depois percebemos o que ele estava tentando captar. Quando aconteceu a tropicália, ele e o Caetano já tinham o aval do público. Isso tudo acontecia em São Paulo. No Rio de Janeiro, “Travessia” era o grande sucesso. Não havia uma definição clara entre o que o público e os artistas queriam, daí esse abismo.

O pior mesmo aconteceu nas gravadoras. Havia o elenco “comercial” e o “artístico”. O primeiro grupo bancava os discos do segundo. Viravam a cara para a jovem guarda e era ela que financiava todo mundo! Os Golden Boys e o Trio Ternura fizeram backing para vários artistas, mas ninguém queria parceria com eles porque eram do iê-iê-iê; o César Camargo Mariano tocava no Som Três acompanhando o Wilson Simonal, que era desprezado por fazer pilantragem…

As barreiras se romperam com o tropicalismo, foi algo libertador. Em 1968, todos eram tropicalistas – até a Beth Carvalho apareceu tocando theremin! Não tiro o mérito de Gil e Caetano, mas tudo aconteceu porque o Rogério Duprat indicou Mutantes e Beat Boys para acompanhá-los. E não podemos esquecer que o Ronnie Von já tinha dois discos rigorosamente psicodélicos que são um primor. São seminais, foram seus Sgt. Pepper. O problema no Brasil é o excesso de ego. Todos querem ser os grandes descobridores e não “liberam” as referências. Isso deforma a nossa história.

Em 1968, Zé Rodrix era tecladista do grupo Momento Quatro, que, àquela altura, naturalmente, também era tropicalista. Depoimento a Luciano Marsiglia.

O personagem: Fughetti Luz

Espécie de Arnaldo Baptista da mitologia do rock gaúcho, Marco Antônio Figueiredo Luz fundou o Liverpool em 1965, com diversos amigos adolescentes do Iapi (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários), na zona norte de Porto Alegre. Fã de música brasileira, foi um dos poucos de sua turma de adolescentes a não abandonar os discos de bossa nova após descobrir os Beatles e o rock internacional. Quando Liverpool deixou de ser apenas uma banda de baile (por volta de 1967) para se destacar no cenário pop, seu grande diferencial era, justamente, a habilidade em somar influências internacionais e brasileiras com naturalidade – um de seus maiores hits nas domingueiras da época era “Memórias de Marta Saré”, de Edu Lobo e Capinam, conduzida nas guitarras. Após vencer o II Festival de MPB da Faculdade de Arquitetura da UFRGS com a canção “Por Favor, Sucesso” (o segundo colocado foi o grupo paulistano O Bando), o Liverpool ganhou o direito de se apresentar no Festival Internacional da Canção, no Rio. Lá, o grupo foi convidado pela TV Globo para o programa Som Livre Exportação. Em 1973, no auge de suas convicções hippies, Fughetti decidiu viajar pela Europa e o Liverpool, que já não encontrava espaço no Rio de Janeiro, acabou. Depois de um ano, Fughetti voltou a Porto Alegre para se juntar ao Bixo da Seda. O cantor e flautista cruzaria a década como uma das figuras lendárias do rock brasileiro.

Janeiro

• Roberto Carlos deixa o programa Jovem Guarda.

Março

• O estudante Edson Luís é morto no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, pela Polícia Militar. O enterro é precedido por passeata de 50 mil pessoas.

Maio

• Frank Zappa e Mothers of Invention lançam We’re Only in It for the Money, satirizando a capa de Sgt. Pepper (Beatles) e todo o movimento hippie

• 2001, Uma Odisséia no Espaço é exibido pela primeira vez.

Junho

• Durante a peça Roda Viva, de Chico Buarque, o teatro Ruth Escobar, em São Paulo, é invadido pelo Comando de Caça aos Comunistas e o elenco é espancado.

• Os Mutantes lançam seu primeiro disco.

• É exibido o último programa Jovem Guarda nos moldes originais.

Agosto

• Ralph Baer cria o primeiro videogame em console.

• O Teatro Opinião, em São Paulo, e o João Caetano, no Rio, sofrem atentados à bomba.

Setembro

• Geraldo Vandré é preso, acusado de ser subversivo, depois de defender “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores”, no Festival Internacional da Canção, da TV Globo.

• Tom Zé, Gal Costa e os Mutantes são os destaques do IV Festival de MPB.

Outubro

• Confronto entre estudantes de Filosofia e de Direito na Rua Maria Antônia, em São Paulo, termina com a morte do secundarista José Guimarães.

• John Lennon e Yoko Ono posam nus na capa de Two Virgins. Semanas depois, o casal seria preso por porte de maconha.

Novembro

• A TV Tupi estréia o programa Divino Maravilhoso, comandado pelos artistas tropicalistas. A atração durou cerca de um mês.

Dezembro

• O governo militar ganha poderes absolutos com a decretação do AI-5, dando início à fase de maior repressão e violência do regime militar.

• Caetano Veloso e Gilberto Gil são presos em São Paulo.

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