Sociólogo , Pierre Bourdieu
Nascido em 1930, Bourdieu cursou primário e ginásio num internato ¿rude e violento.
Ilana Goldstein
Pierre Bourdieu costumava dizer que praticava um “esporte de combate”. Não, Bourdieu não era boxeador ou lutador de jiu-jitsu. Era sociólogo. Esse badaladíssimo intelectual francês, falecido aos 71 anos há dois meses, via a Sociologia como um espaço para a luta, para o conflito. Bourdieu, autor de mais de 300 publicações, figura carismática e polêmica, um dos principais cientistas sociais do mundo, foi objeto de uma verdadeira adoração por parte de estudantes e pesquisadores das ciências humanas, mas costumava receber também críticas bem ácidas. Nos dias seguintes à sua morte, multiplicaram-se na Europa os cadernos especiais em jornais e revistas e as homenagens na televisão. O que chega a ser irônico se pensarmos que a mídia era um dos alvos preferidos dos seus ataques.
Nascido em 1930, Bourdieu cursou primário e ginásio num internato “rude e violento”. A experiência marcou-o para sempre. É o que atesta a pista biográfica que acaba de ser divulgada pela revista Nouvelle Observateur que publicou – sem autorização da família – um trecho das memórias que Bourdieu estava escrevendo quando morreu. O autor conta ter descoberto, no internato, a opressão da disciplina, a traição e o dedo-durismo entre colegas, o sadismo dos bedéis ao exercer seu pequeno poder, as estratégias e espertezas dos internos para conseguir seu lugar ao sol e a discriminação baseada na aparência física, na maneira de falar e no sobrenome das crianças (o dele era motivo de piada por soar “caipira”).
Essa confissão lança luz sobre as motivações que o levaram a lutar, ao longo da vida e da obra, contra todas as formas de dominação e de mascaramento da realidade social. Bourdieu dissecou, no livro A Reprodução, de 1970, o funcionamento do sistema escolar francês que, ao invés de transformar a sociedade e permitir a ascensão social, ratifica e reproduz as desigualdades. Em Sobre a Televisão – que vendeu 150 000 exemplares em 1996 – desvelou o círculo vicioso da informação televisiva: um canal copia o outro, os mesmos convidados estão em todos e a necessidade de audiência impede a inovação. A Distinção (1979), seu best-seller, trata dos julgamentos estéticos partindo da idéia de que as pessoas emitem julgamentos de valor – do tipo “detesto música sertaneja” – para se diferenciar de quem está numa posição hierarquicamente inferior.
Para além da contribuição teórica, a polêmica que envolve o nome do autor tem a ver com sua atuação pública e sua atitude engajada – de combate. No final da carreira, vinha tentando aproximar reflexão intelectual e militância política, o que se traduz no tom engajado das últimas obras. Em Contra-Fogo, de 1999, Bourdieu analisa as estratégias retóricas do “discurso neoliberal”, que se apóia em expressões de liberdade e relaxamento (em vez de “demissão” fala-se em “enxugamento”, dando a idéia de algo saudável e positivo).
Não causa surpresa saber que o autor foi o mentor do grupo Raisons d’Agir, composto de cientistas, políticos e sindicalistas com o objetivo de coordenar manifestações internacionais contra o desemprego e a exclusão social. O grupo organizou um encontro em Viena, em 2000 – no auditório em que Bourdieu deu sua conferência contavam-se mais de 5 000 pessoas e havia um telão do lado de fora para quem não havia conseguido entrar. É por tudo isso que, em maio passado, o diretor Pierre Carles lançou um filme sobre ele intitulado A Sociologia é um Esporte de Combate. Para desgosto de seus adversários, que o acusam de ultrapassado, Pierre Bourdieu foi até estrela de cinema.
Ilana Goldstein é antropóloga, mora em Paris, e trabalhou na filial alemã do grupo Raisons d·Agir, criado por Bourdieu