Os vestígios, a história e a vida marinha da Antártida: o último front gelado
A partir da base brasileira na Ilha Rei George, nossos cientistas vasculham o passado escondido no gelo, acham vestígios de poluição e investigam a vida marinha da Antártida.
Paulo D`Amaro
São três frentes de batalha – no ar, na terra e no mar. O paulista Ênio Pereira Bueno patrulha a atmosfera em busca de gases radioativos. O gaúcho Jefferson Cardia Simões faz uma missão de reconhecimento nas geleiras que cobrem o solo para avaliar os estragos causados pela poluição nos últimos séculos. A paulista Wilma Bastos Ramos ataca de surpresa na água para descobrir os segredos que permitem a sobrevivência dos peixes no frio. Esses são apenas três entre os quinze comandos brasileiros que tomaram de assalto a Ilha Rei George este ano num árduo empenho pelo conhecimento científico da Antártida. De quebra, cuida-se da preservação do planeta.
Basta ver a missão de Jefferson Cardia Simões, geógrafo de 34 anos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Depois de uma temporada em Cambridge, na Inglaterrra, quando se tornou o primeiro especialista brasileiro em geleiras, ele usa as técnicas que aprendeu para achar vestígios do passado gravados nas profundezas do gelo. Não é difícil de entender: ano após ano, novas camadas de gelo se acumulam na Antártida, como num grande bolo, e levam junto impurezas do ar. O resultado é que estas ficam preservadas como uma amostra da atmosfera. “O gelo se torna um verdadeiro arquivo da história ambiental”, diz Simões.
Este ano, sua equipe vagou pelo glaciar da Ilha Rei George, onde fica a sede de nossas pesquisas, a Estação Antártica Comandante Ferraz. Com ajuda do alpinista paulista Thomaz Brandolin — que chefiou a expedição brasileira ao Monte Everest —, a tropa partiu para o meio da calota de gelo com a missão de perfurá-la e trazer amostras para análise nos laboratórios da UFRGS. “A calota chega a ter 356 metros de espessura e quanto mais fundo se perfura, mais antigo é o gelo”, explica Simões. Os buracos feitos este ano não ultrapassaram 10 metros. Parece pouco, mas não é. Amostras de mesma profundidade, colhidas na estação americana Amundsen-Scott, exatamente no Pólo Sul, revelaram uma alarmante surpresa.
Mostravam um teor radioativo muito superior ao normal. Pela análise da relação entre a quantidade de isótopos 18 e 16 do oxigênio (um eficiente metodo para descobrir a idade do gelo), notaram que correspondia à neve que caiu cerca de 35 anos atrás. Logo, matou-se a charada: a radioatividade era um vestígio dos testes nucleares dos anos 40 e 50. Além das bombas atômicas, outras invenções humanas estão registradas na memória do planeta. O ar que se compactou junto com a neve denuncia como era a atmosfera em outras épocas. “O gelo de 300 anos atrás mostrou que o teor de gás carbônico no ar era 25% menor antes da Revolução Industrial”.
É uma prova indiscutível do impacto da queima de combustíveis fósseis nas caldeiras e nos carros e um importante dado para os cálculos do efeito estufa, o fenômeno de aprisionamento do calor na atmosfera, decorrente do aumento de gases poluentes. O estudo do gelo pode ir ainda mais longe. “Russos e franceses já atingiram 2 500 metros de profundidade”, admira-se Simões. Isso significa que estão analisando o gelo depositado há 200 000 anos. O brasileiro sonha ter equipamentos capazes de feitos tão audaciosos, mas por enquanto sua equipe usa os músculos para ativar uma modesta sonda manual.
A estrutura do gelo compactado em zonas tão profundas confirmou fatos controversos da história terrestre. Um deles foi o aquecimento da atmosfera ocorrido nas imediações do ano 1000. Esse fenômeno, que permitiu aos vikings se instalarem na gelada Groenlândia, também afetou a Antártida, no extremo oposto do planeta. Descobrir a maneira como isso acontece é tarefa do físico Ênio Bueno Pereira, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Doutor em Geofísica nos Estados Unidos, ele realizou este ano sua sétima expedição antártica, para estudar o transporte de gases e partí-culas entre a América do Sul e a Antártida. Os resultados surpreendem. “Partículas presentes no ar do sul do Chile, chegam em trinta horas até à Antártida — a 1 000 quilômetros de distância. E quase sem se dispersar”, diz.
Para saber com segurança como os gases sul-americanos — inclusive poluentes — alcançam a Antártida, Pereira montou duas sofisticadas estações de coleta, uma na cidade chilena de Punta Arenas e a outra na Estação Ferraz. Elas detectam a quantidade do gás nobre radônio, pois é certo que ele não se forma na Antártida. “Todo o radônio que existe ali vem da América do Sul”, explica o cientista. Mais que uma simples medição, o estudo envolve curiosos fenômenos químicos. Formado a partir do urânio e do tório, o radônio sobe ao ar em duas variedades. Uma tem vida longa, enquanto a outra logo “vira a casaca” e se transforma rapidamente em outros elementos químicos. Conforme o tempo passa, mais “radônio de vida longa” existe em relação ao “viracasaca”. Os cientistas podem então calcular quanto tempo o gás levou para atravessar o oceano: basta medir quanto há de uma variedade e de outra no ar de Punta Arenas e comparar com as porcentagens colhidas na Antártida.
Mas não é bastante saber a velocidade dos gases que chegam à Antártida. É preciso descobrir o que de fato existe nos ares antárticos. Por isso, Pereira tem coletado amostras dos aerossóis — concentrações de partículas que influem em toda a química da atmosfera. Para se ter idéia da importância dos aerossóis, vale lembrar que deles depende a formação das nuvens. “Não bastam gotículas de água dispersas no ar. São necessários aerossóis, principalmente de sulfatos, que atraem e condensam a umidade em forma de nuvem”, ensina Pereira. Nas regiões semi-áridas dos Estados Unidos e de outros países do Primeiro Mundo, é comum os aviões borrifarem sulfatos pelo ar, numa desesperada tentativa de “espremer” chuva do parco vapor que resta em épocas secas.
Situação terrível como a da própria Antártida: no interior do continente a precipitação é de menos de 5 cm por ano, abaixo da média no Deserto do Saara. A exceção está nas Shetlands do Sul, onde chove cerca de 100 cm/ano. Pereira descobriu que nessa região há 6% de sulfatos nos aerossóis atmosféricos, “muito semelhante ao comum dos oceanos em geral”, avalia.
A grande descoberta, porém, foram os 14% de partículas alienígenas, ou seja, poeira e gases que vêm de outras partes do globo. Entre elas, podem estar vários poluentes, inclusive o nefasto clorofluorcarbono (CFC), gás usado em geladeiras e latas de tinta spray e desodorantes. Ele é o causador do buraco na camada de ozônio que nos protege dos perigosos raios ultravioleta do Sol. Normalmente, as moléculas do CFC ficariam muito dispersas no ar para causar algum dano. Mas, concentradas nos aerossóis, atacam as moléculas do ozônio com rendimento muito maior. “Os aerossóis funcionam como um tubo de ensaio, que facilita as reações químicas no ar”, sintetiza Pereira. Por isso, o próximo passo é fazer coletas de aerossóis na alta atmosfera.
Quando o assunto é poluição, entram em cena os pesquisadores do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, com um trabalho que tem sido citado internacionalmente. Dos laboratórios em São Paulo, Rolf Roland Weber e Walkyria Lara comandam uma equipe que vai anualmente às Shetlands do Sul coletar amostras de ar, água, tecidos de animais, sedimentos, peixes e moluscos. “Queremos descobrir quanto há de hidrocarbonetos e organoclorados no ambiente antártico”, diz Weber, que já foi à Antártida duas vezes.
A determinação do nível médio de hidrocarbonetos numa região ainda livre dos derramamentos de petróleo ajuda a estabelecer um padrão, que pode ser usado para se ter idéia do nível de poluição em outras partes do planeta. “Isso é necessário porque existem hidrocarbonetos naturais na água e no ambiente, originários, por exemplo, da cera das folhas das plantas”, explica Weber. Esses hidrocarbonetos não podem ser confundidos com os gerados pela poluição dos navios e terminais de petróleo. Sabendo o nível médio natural, fica mais fácil descobrir quanto está vindo de fontes poluidoras.
Até agora, os resultados mostram que qualquer água com mais de 2 microgramas por litro é suspeita. “Próximo ao terminal de descarga de petróleo em São Sebastião (SP), o nível ultrapassa 50 microgramas”, revela Weber. Mas ainda é preciso estudar melhor o mar antártico. “Este ano, terminamos as coletas de água salgada na Baía do Almirantado, em frente à base Ferraz”, conta Rosalinda Carmela Montone, a oceanógrafa que põe as mãos na massa de fato. Se os hidrocarbonetos do petróleo ainda não preocupam na Antártida, o mesmo não se pode dizer dos organoclorados, produtos altamente tóxicos, proibidos em quase todo o mundo, mas ainda usados na América do Sul como pesticidas.
A equipe de Weber achou resíduos na água do mar, das chuvas, na areia e, o que é pior, nos pingüins e peixes. A quantidade é pequena, mas não pode ser desprezada. “Os organoclorados são cumulativos e não se degradam facilmente”, explica Weber. Ou seja, vão se acumulando nos tecidos dos animais e na cadeia alimentar. Cada vez que um pingüin come o krill contaminado, ganha um pouco de pesticida que será passado integralmente a quem o comer, a foca-leopardo, por exemplo. Com o passar dos anos, isso pode dizimar populações inteiras desses animais.
Entender como os peixes, pingüins e focas sobrevivem à invasão de poluentes é uma missão que os brasileiros poderão cumprir, se depender dos pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de São José dos Campos, SP. A farmacologista Wilma Bastos Ramos partiu para a Antártida nesse verão com frascos cheios de hormônios e 130 quilos de aparelhos entre eletrocardiógrafos e outros. Por enquanto, o objetivo é desvendar os mecanismos que permitem a vida dos peixes em águas geladas. Os efeitos da poluição virão depois.
“Os peixes antárticos são ilustres desconhecidos do ponto de vista fisiológico. Ninguém explicou ainda como podem suas enzimas digestivas funcionar a 0°C”, exemplifica Wilma Ramos. O escolhido para os testes foi o Notothenia neglecta, um peixe de cerca de 40 centímetros, cuja enorme cabeça lembra mais um sapo. Depois de arriscadas pescarias a bordo de um bote inflável, Wilma levou os peixes ao laboratório na base Ferraz, onde teve gratas surpresas. Em primeiro lugar, o olfato. Experiências no aquário mostraram que é mais facil para o peixe sentir o cheiro do alimento do que vê-lo. “Ele não percebia a comida um palmo à frente dos olhos. Mas se houvesse uma corrente de água a favor, descobria a guloseima mesmo que estivesse atrás.”
A maior surpresa, porém, foi a incrível capacidade de “ressuscitar”. Os tecidos recortados para análise respondiam a estímulos químicos até trinta horas depois de retirados, quinze vezes mais que o comum. Partindo disso, Wilma descobriu que o Notothenia pode ter parada cardíaca de uma hora e, depois, sair nadando como se nada tivesse acontecido. Entusiasmada com o achado, a pesquisadora dispara o comentário que já virou lugar comum na batalha pela conquista científica da Antártida: “Nunca vi coisa igual”.
Apertem os cintos, o horizonte sumiu
Parecia um típico resgate de refugiados, no meio de uma batalha. A bordo de um Hércules C-130 da Força Aérea Brasileira, cerca de 50 pessoas amontoavam -se entre caixotes, barris e malas, protegendo-se como podiam do ruído ensurdecedor dos motores. No entanto, havia uma alegre algazarra a bordo: era apenas a maratona aérea de 4 000 quilômetros levando cientistas brasileiros à Antártida — uma rotina que se repete sete vezes todos os anos. A folia só dura até a última escala, em Punta Arenas, no sul do Chile. A partir daí a descontração dá lugar ao suspense.
É verdade que, partindo da cidade chilena a 450 quilômetros por hora, o avião da FAB pode chegar em menos de três horas à base brasileira, na Ilha Rei George. O problema é que os pilotos têm de aguardar o sinal verde para o vôo, que depende das condições do tempo na Antártida. No começo de dezembro último, foram sete dias de espera no chão. E nem sempre o sinal verde adianta. Muitas vezes o tempo muda antes que os dados disponíveis sejam interpretados. Por ironia, as mesmas informações, colhidas nas bases geladas, ajudam a prever como será o tempo, dentro de três ou quatro dias, em São Paulo ou no Rio. Mas na própria Antártida não permitem determinar, com firmeza, se vai fazer sol ou nevar nas próximas horas.
Várias vezes, embora perto do destino, os Hércules C-130 foram obrigados a dar meia-volta. Não vale a pena arriscar. Neblina e tempestades surgem do nada e, nesse caso, não há a quem recorrer, pois a distância entre os campos de pouso pode superar 1 000 quilômetros. Próximas do continente, existem peculiares armadilhas, como os ventos catabáticos, que podem desestabilizar a aeronave no pouso. Ainda pouco estudados, eles chegam em tresloucadas rajadas, pois parecem mudar de direção e força de acordo com o relevo antártico. Há também o problema da umidade do ar, que, quando alta, congela-se em fração de segundo sobre os vidros, cegando os pilotos. Resta torcer para que o limpador de pára-brisa mantenha a visibilidade.
A armadilha mais perigosa, no entanto, é o white-out, espécie de ilusão de óptica responsável por dezenas de acidentes. Se o horizonte está nublado e o sol incide num ângulo desfavorável, é impossível distinguir o limite entre o céu e a brancura do solo. “Não dá para saber o que é nuvem e o que é gelo”, explica o capitão-de-corveta Flávio Giacomazzi, chefe do destacamento de helicópteros do navio polar brasileiro Barão de Teffé. Em 1984, o white-out pegou o geólogo gaúcho Marco Antônio Fontoura Hansen, um veterano de onze expedições. O bimotor chileno em que viajava resvalou numa geleira e acabou fazendo um pouso desastrado. Por uma sorte de dimensões antárticas, nenhum dos dezesseis passageiros e tripulantes morreu. “Um fragmento da hélice passou a centímetros da minha cabeça”, conta Hansen, que hoje costuma beber com os companheiros de desastre nos bares de Punta Arenas.
Campo de batalha científico é quase uma comunidade
É um lugar um pouco menor que a cidade de São Paulo, com 95% de sua área coberta de gelo. Mesmo assim, os 1 450 quilômetros quadrados da Ilha Rei George — a maior do arquipélago das Shetlands do Sul — formam uma das regiões mais disputadas do planeta. Desde que se descobriu a importância da Antártida, ela foi invadida por pesquisadores e por toda sorte de instrumentos científicos, bem à moda do Tratado Antártico, de 1959. Mas é engano pensar que as estações abrigam apenas abnegados estudiosos. A maior base da ilha, a chilena Teniente Marsh, é um verdadeiro núcleo de colonização, com doze famílias e 25 crianças. Há um aeroporto sob os cuidados de dezenas de militares da aviação chilena, assim como hotel para visitantes, escola, estação de FM e até bazar de souvenirs.
A rádio reflete bem as intenções de domínio do Chile na região: seu nome é Radio Soberanía (também os cartões-postais trazem os dizeres “Território antártico chileno”). Mas sete outras nações mantêm estações permanentes de pesquisa na ilha: Brasil, Argentina, Uruguai, CEI, China, Coréia do Sul e Polônia. Há duas bases temporárias, usadas só no verão pelo Peru e Equador. Exigências territoriais à parte, uma forte solidariedade une as várias estações. Nas duas últimas décadas, Chile e União Soviética cultivaram uma relação surpreendentemente cordial, apesar do antagonismo político. Separadas por um pequeno rio de degelo — batizado Volga pelos russos e Loa pelos chilenos —, as estações Marsh e Bel-lingshausen enfrentaram juntas in-cêndios e acidentes aéreos, num belo exemplo do que se convencionou chamar “espírito antártico”.
A cooperação não inibe rigorosa vigilância mútua num item chave: respeito ao ambiente. Há alguns anos, um batalhão de 300 operários chineses desembarcou na ilha, com a missão de erguer rapidamente uma base. Desinformada quanto às rígidas normas de preservação da fauna, a horda asiática espalhou lixo por todos os lados e, em nome de uma gastronomia politicamente incorreta, banqueteou-se com pingüins, petréis e outras aves que pôde capturar. Naturalmente, tudo se resolveu no devido tempo: depois dos protestos indignados de todos os países, o governo da China pediu desculpas pela gafe. Restou o estigma de “sujões”, desde então imputado aos chineses. Os brasileiros, em contrapartida — e sem nenhum ufanismo—, gozam de ótima reputação. Em nove anos de existência, a Estação Antártica Comandante Ferraz raras vezes foi importunada pelos ativistas ecológicos que o Greenpeace mantém num veleiro para fiscalizar a área. Todo o lixo é acondicionado e trazido ao Brasil no Barão de Teffé.
Ferraz também leva a fama de ser a estação que mais cresce em tamanho e em número de cientistas. São sessenta módulos (ou containers interligados) onde funcionam laboratórios, uma estação meteorológica, alojamentos para 26 pessoas e até um pequeno ginásio de esportes. Neste verão, 46 pessoas passaram por lá. Apenas oito não eram pesquisadores (o grupo de apoio da Marinha, que inclui médico, cozinheiro e a equipe de manutenção). A imponente base chilena Marsh não alcança esse número de cientistas, mesmo tendo cinco vezes mais gente.