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1499: O Brasil antes de Cabral

Texto: Emiliano Urbim | ilustrações: Sattu | Design: Ricardo Davino

Grandes cidades na Amazônia, comércio com os incas, guerra química entre canibais. Visite o Brasil que você não conhece.

Num paraíso despovoado, onde tudo se colhia, doces bárbaros viviam em paz e europeus eram inéditos. Assim Pero Vaz de Caminha descreveu nossa terra em uma carta para seu rei quando esteve aqui com Pedro Álvares Cabral em 1500.

Mas o escrivão da certidão de nascimento do Brasil ficou aqui uma semana – mal conheceu o recém-nascido.

Hoje, sabemos que nosso futuro território possuía aldeias com milhares de índios, agricultura intensiva, comércio internacional e guerra permanente movida a canibalismo. Além disso, já tinha recebido três navegadores – dois espanhóis, inclusive. Conheça um mundo que teve fim assim que foi descoberto.

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CIVILIZAÇÃO DA SELVA

Cientistas já encontraram ruínas de mega-aldeias na Amazônia. E muitos acreditam que a floresta seja uma obra humana.

El Dorado era coisa do passado. Em 1541, uma expedição espanhola partiu de Quito, no Equador, rumo ao Leste para encontrar a Terra da Canela. Os exploradores europeus encontraram mais: a nascente de um rio imenso, contando em ambas as margens com aldeias gigantescas, habitadas por milhares de índios. Nem todos eram pacíficos, e a certo ponto os espanhóis foram atacados por índias ferozes. A jornada só terminou no Atlântico, na foz do rio que ficaria conhecido pelo nome grego que colou nas guerreiras: Amazonas. O relato da viagem foi considerado uma fantasia absurda. E assim permaneceu.

Talvez a história das amazonas tenha sido mesmo lorota de conquistador. Mas a visão de margens do rio superpopulosas, muito mais do que são hoje, tem cada vez mais chance de ser verdade. Durante muito tempo vigorou a tese de que a selva equatorial simplesmente não tinha como comportar grandes núcleos populacionais. Mas as descobertas da antropóloga americana Anna Roosevelt em Marajó fizeram todos reverem seus conceitos. Suas descobertas mostraram que a ilha pode ter abrigado um povo que, além de fazer belas cerâmicas, construiu barrancos antienchentes – e, sobre eles, aldeias com milhares de habitantes.

Outro achado importante foi o do também americano Michael Heckenberger. Trabalhando com uma equipe multidisciplinar e índios da região do Xingu, ele identificou as ruínas de um assentamento permanente, Kuhikugu (veja mais abaixo). “Os europeus nunca encontraram Kuhikugu e centros semelhantes porque estavam procurando pela coisa errada. Queriam achar cidades perdidas – e essas eram estruturas multicêntricas, com redes de pequenos assentamentos, o que eu gosto de chamar de cidades-jardim”, diz Heckenberger. Estruturas semelhantes a Kuhikugu foram encontradas por Eduardo Neves perto de Manaus e por Denise Schaan e Denise Gomes na selva da Bolívia. A população de uma cidade-jardim poderia chegar a 50 mil pessoas – o equivalente às cidades-estado da Grécia.

A cidade-jardim perdida

O sítio arqueológico de Kuhikugu, no alto Xingu, dá pistas sobre como pode ter sido a ocupação da Amazônia logo antes do descobrimento. Esse era um agrupamento cercado por um muro de galhos e um fosso profundo e largo, demonstrando a preocupação em resistir a ameaças externas. Desse centro partiam estradas com vários metros de largura que o conectavam a outros centros – e imagens de satélite sugerem que todo o caminho entre as mega-aldeias era permeado de hortas e pomares para sustentar uma população de milhares. A pesquisa ainda está em andamento, mas esses dados preliminares sugerem que a densidade populacional da Amazônia já foi muito maior.

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Os cientistas vão mais longe: estudos mostram que boa parte da Amazônia pode ser obra do homem, não da Mãe Natureza. A distribuição de frutas e de um solo específico, a terra preta, sugere a ação do homem. “Muitas áreas do Xingu são 100% antropogênicas, gigantescos pomares. E povos do local ainda dominam sofisticados sistemas de uso do solo”, diz Heckenberger. “Meu objetivo é que esses sistemas possam ser usados para o desenvolvimento sustentável – incluindo os indígenas.”

Há ainda um mistério sobre o qual temos muito a aprender: os geoglifos, formações geométricas do tamanho de quadras esportivas distribuídas entre o Acre e a Bolívia. Revelados pelo desmatamento e mais bem vistos do céu, eles desafiam especialistas.

O que une essas civilizações perdidas é o colapso. Como milhões de pessoas teriam sido dizimadas? Nem pólvora, nem aço: epidemias trazidas pelos brancos mataram mais do que qualquer arma.

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ANTES DO MERCOSUL

Estudos revelam uma rede de estradas que ligava nosso litoral ao Império Inca – e permitia escambos entre povos.

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Até hoje se supõe que os índios brasileiros ignoravam o escambo até receberem espelhos e miçangas dos marinheiros de Cabral. Trocar o quê, se não produziam nada? E trocar com quem, se viviam isolados dos vizinhos?

É um mito totalmente desmontado por pesquisas recentes, que provam que havia troca constante entre os povos do litoral e do sertão. E mais: uma rede de caminhos fazia esses itens chegarem até o Império Inca no Peru. Vistos pela lógica da época, os escambos da beira da praia estavam mais para um acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia.

E que comércio era esse? Antropólogos franceses chegaram a uma estrutura básica dessa rede de trocas. Os índios do litoral tinham sal extraído do mar e conchas ornamentais, e volta e meia ainda sobrava mandioca. Já o sertão tinha suas commodities, como feijão e milho, e também um artigo de luxo: penas de aves grandes como ema e de tucano, para todo tipo de enfeite.

Tudo isso era objeto de permuta com os incas, que em troca davam objetos de cobre, bronze, prata e ouro – nossos índios praticamente não tinham acesso a metal. Esses contatos, que durante muito tempo tiveram ares de lenda, foram comprovados com vários achados: em Cananeia (SP), por exemplo, foi encontrado um machado pré-colombiano feito com cobre dos Andes. 

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O principal ramal dessa malha viária ameríndia era o Peabiru (provavelmente uma palavra tupi que significa “caminho de grama”). Esse caminho atravessava os atuais Estados de São Paulo e Paraná, entrava Paraguai adentro e subia pela Cordilheira dos Andes. Era como se fosse uma rota da seda atravessando a América do Sul, unindo economias e culturas diferentes – uma ação entre nações.

“Existem testemunhos do início do período colonial que revelam o interesse com que as tribos do litoral e do sertão mantinham aberta essa ligação”, diz Jorge Couto, historiador português autor de A Construção do Brasil.  “O interesse na troca de produtos era um denominador comum, razão suficiente para que cada grupo garantisse a segurança da circulação de homens e mercadorias nas suas áreas de influência.”É verdade que os elementos de que dispomos sobre o Peabiru ainda são tênues, mas já são suficientes para dizer que ele existiu e funcionou de fato.

Os caminhos dos índios se tornaram as trilhas dos descobridores, depois as rotas dos bandeirantes. Trechos originais ainda sobrevivem em matas no norte no Paraná, mas muitos foram cobertos de asfalto e hoje são vias como as paulistanas Rebouças e Consolação. É um capítulo ainda ignorado por historiadores – mas já explorado pela indústria do turismo, que vende pacotes de ecoturismo para quem quiser explorar a antiga trilha.

O descobridor do Peabiru

Em 1524, o português Aleixo de Souza se juntou aos valentes da tribo carijó e saiu em busca de fortuna – não havia achado nenhuma desde que naufragara alguns anos antes na futura ilha de Santa Catarina, onde hoje é Florianópolis. Ele havia ouvido falar de um caminho que levava até um reino repleto de ouro e prata. Três mil quilômetros para o Oeste depois, ele chegou ao Império Inca. Chegou, roubou, fugiu e, na volta, acabou sendo atacado e morto por índios paraguaios. Mas uma coisa ninguém tira dele: o pioneirismo. Aleixo saqueou os incas nove anos antes dos espanhóis.

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GUERRA DAS TRIBOS

Esqueça o paraíso terreno. Nossos índios viviam em conflito – com direito a guerra santa, armas químicas e banquetes antropofágicos.

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Junto ao mar vivia uma tribo que levava uma vida mansa, sem preocupações. Até que um dia, sem que ninguém esperasse, chegaram os conquistadores.

Eles falavam uma língua estranha, usavam armas melhores e não tiveram dó dos derrotados: queimaram suas aldeias, mataram seus guerreiros e escravizaram mulheres e crianças. Quem conseguiu fugir teve de ir para bem longe da praia, para nunca mais voltar. Foi assim que, por volta do ano 1000, os tupis se tornaram os donos do litoral.

Muito antes dos portugueses, a vida dos índios já não era fácil. As tribos viviam estado de guerra ininterrupta, endêmica, como defende o sociólogo Florestan Fernandes no clássico A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. Por terra, por rios, por vingança, por esporte. Até por motivos religiosos, como parece ter sido o caso dos tupis.

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Os ancestrais dos tupis vinham de onde hoje é Rondônia, onde se diferenciaram da concorrência graças à agricultura de coivara, baseada em queimadas periódicas – sim, índios faziam queimadas. Segundo o antropólogo francês Pierre Clastres, os tupis acreditavam para valer no mito da Terra Sem Mal – um lugar fértil, sem doenças nem tragédias, e que, garantiam os espíritos, ficava no Leste. A crença nessa terra prometida motivaria um êxodo que durou séculos, sempre rumo ao Atlântico.

Chegando lá, expulsaram para o interior os antigos residentes – que receberam apelido de tapuias – em tupi, “selvagens”. (Prova de que a história é escrita pelos vencedores até quando eles não sabem escrever; hoje, os ex-tapuias são o tronco Macro-Jê.)

“Quando os tripulantes da armada de Cabral desembarcaram na Terra de Santa Cruz, os tupis e os guaranis efetuavam denodados esforços para completar a conquista do litoral”, escreve Jorge Couto. “Naturalmente, ganhavam a disputa os grupos tribais mais coesos, numerosos e tecnologicamente mais apetrechados.”

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E bota apetrechado nisso. À distância, usavam flechas – às vezes impregnadas de venenos vegetais e animais, às vezes incendiárias, com tufos de algodão em chamas. Ao se aproximar de uma aldeia a ser invadida, metiam medo batendo os pés no chão e soprando instrumentos feitos com ossos de inimigos. Durante o cerco, apelavam para a guerra química: jogavam pimenta-da-terra na fogueira e faziam a nuvem tóxica chegar aos adversários. No combate corpo a corpo, preferiam tacapes, ideais para trincar crânios. A aldeia era incendiada e tudo terminava em churrasco. Prato principal: prisioneiros.

O gosto dos outros

O termo certo não seria canibalismo, mas antropofagia. A diferença é sutil, mas faz sentido: canibal é quem come carne humana por necessidade; antropófago é quem faz por gosto mesmo. Os índios buscavam adquirir a valentia dos rivais. Havia todo um ritual que podia durar de dias a meses em que o prisioneiro era humilhado e homenageado, até que chegasse o dia em que seria servido para a tribo inteira – cada povo obedecia a uma divisão das partes entre homens e mulheres, velhos e jovens. O suicídio não seria uma opção? Nada
disso: ser devorado era a prova de que era um guerreiro valente.

Os portugueses souberam explorar essas rivalidades. Por uma vitória momentânea contra adversários tradicionais, os índios se aliavam aos invasores – sem se dar conta que se aproximar deles causaria sua derrota permanente.

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NEM DEMÔNIOS, NEM ANJOS

Os índios eram mais complexos do que a idealização e o preconceito dos europeus permitiam ver.

No século 16, espalhou-se em Portugal a ideia de que a língua dos índios brasileiros carecia de três letras: F, L e R – logo, não tinham como ter nem Fé, nem Lei, nem Rei.

A teoria era meio surda – os índios tinham os três sons – e totalmente míope: as instituições só existem se nomeadas em português? Mas resume bem o que os portugueses pensavam dos índios: almas a serem catequizadas, doutrinadas e governadas.

Enxergando sempre por esse prisma, os europeus não quiseram ou não puderam ver certas nuances sobre seus novos súditos. Nuances reveladas por novas pesquisas arqueológicas, e que ajudam a entender como as tribos do litoral viveram seus últimos dias de índios.

Os portugueses não compreendiam direito os papéis dos homens e das mulheres. Eles caçavam, mas, diferente dos varões lusos, ignoravam a lavoura. Elas cuidavam das tarefas domésticas mas, ao contrário das carolas católicas, não tinham vida espiritual – uma tarefa masculina. E não havia mesmo reis: o poder era fragmentado, cada chefe mandava na sua aldeia e olhe lá – às vezes, como no estilo britânico, reinava mas não governava.

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A monogamia predominava, mas as separações, frequentes e numerosas, confundiam os conquistadores. E nada de famílias numerosas: as mulheres paravam nos dois filhos. Era o máximo que dava para alimentar sem aperto e o máximo que se podia carregar em caso de mudança.

A perfeição física dos índios, que tanto chamou a atenção dos europeus, pode ser resultado de eugenia – como os espartanos, eles provavelmente matavam os bebês que consideravam deficientes.

Muita ciência passou despercebida. Só agora podemos dizer com certeza que os índios domesticavam plantas, enriqueciam o solo com adubo, realizavam pesca por envenenamento com elevado grau de eficácia. Tendo profundo conhecimento das plantas que os rodeavam, tinham remédios eficazes para quase todos os males – cujas propriedades ainda estão sendo descobertas em laboratórios. Sem falar em uma das maiores invenções de todos os tempos: a rede de dormir.

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Até que a rede e o mundo caíram. Como disse em uma entrevista recente à revista Piauí o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, “o mundo deles acabou em 1500. Se formos falar do fim do mundo, pergunte aos índios como é, porque eles sabem. Eles viveram isso. A América acabou”.

Enquanto os portugueses escreviam a certidão de nascimento da nova terra, os timbiras faziam um atestado de óbito para o seu mundo. Na lenda de Aukê, um menino com poderes sobrenaturais é morto em uma fogueira. Ele ressuscita como o primeiro branco, e pede que a tribo escolha entre a espingarda e o arco. A espingarda traria a civilização; com medo, os índios escolhem o arco, e permanecem índios. Aukê até hoje chora de pena dos timbiras.

Três antes de Cabral

Pedro Álvares Cabral é o descobridor oficial do Brasil – veio oficialmente, tomou posse, rezou missa e fez com que o mundo soubesse. Mas não é o descobridor cronológico: antes dele, pelo menos três outros navegadores estiveram em nossas atuais costas – um português seguido de dois espanhóis. O primeiro foi Duarte Pacheco, ainda em 1498. Tudo indica que o experiente explorador esteve em Belém e foi subindo até a futura Caracas. Sua missão talvez fosse saber se havia terra que valesse uma esquadra maior – a de Cabral.
O segundo veio em janeiro de 1500: Vicente Pinzón, que havia descoberto a América junto com Colombo. O espanhol foi o primeiro a cruzar a linha do Equador e, sem estrela polar para se guiar, bateu no Nordeste e foi subindo até a Flórida.
Logo atrás dele, em fevereiro, chegou seu primo Diego de Lepe. O curioso é que, apesar de nomear várias regiões, não tomaram posse: sabiam muito bem que estavam em território que era de Portugal pelo Tratado de Tordesilhas.

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