Ninguém morre na cidade de Longyearbyen, capital do arquipélago de Svalbard, no norte da Noruega. Não que haja uma lei antidefuntos. Mas, quando algum dos 2,1 mil habitantes alcança uma idade muito avançada – ou fica muito doente –, as autoridades pressionam o cidadão a voltar para o continente. Todos os moradores são obrigados a ter um endereço alternativo em terra firme, e o cemitério local parou de aceitar novos hóspedes na década de 1950. Por causa do frio – a temperatura média no auge do inverno é de 20°C negativos –, o solo abaixo de 2 m de profundidade fica permanentemente congelado (um fenômeno chamado permafrost). E aí os corpos não se decompõem, preservando consigo bactérias, fungos e vírus.
Kirsty Duncan sabia disso. Em 1994, a geógrafa canadense começou a planejar uma expedição para recuperar exemplares do vírus da gripe espanhola, que matou 50 milhões de pessoas entre 1918 e 1919. Estudá-lo em um laboratório contemporâneo é essencial para descobrir o que tornou essa gripe tão pior que uma gripe comum – e evitar que uma mutação parecida do vírus repita a tragédia no futuro. O plano era encontrar amostras dessa linhagem letal do influenza H1N1 nos pulmões congelados de vítimas enterradas no permafrost. Longyearbyen era a melhor candidata: a cidade, construída em cima de um quilômetro de solo congelado, já era habitada na época da pandemia – e foi atingida. Sete mineradores mortos pelo vírus estavam enterrados lá mesmo.
Foram quatro anos de planejamento. Em agosto de 1998, a comitiva com dezenas de cientistas montou uma base de pesquisa em Svalbard. Havia protocolos rigorosíssimos para manejar os cadáveres. E aí veio a decepção: os corpos haviam sido enterrados apenas 0,5 m abaixo da superfície, na camada que o Sol descongela no verão. Estavam praticamente decompostos; Duncan resgatou apenas fragmentos do vírus.
Quase meio século antes, em 1951, o sueco Johan Hultin e um grupo de amigos, estudantes da Universidade de Iowa, nos EUA, viajaram para Brevig Mission, no Alasca – um vilarejo isolado e congelante de 400 habitantes. Em 1918, a cidade foi cancelada pela gripe espanhola. Dos 80 moradores da época, 72 morreram. Hultin tinha a mesma esperança de Duncan. Ele conseguiu permissão para abrir as covas do cemitério e retirar amostras dos pulmões de vítimas da pandemia – estes sim, bem preservados.
O problema é que o rapaz de 25 anos não tinha nenhuma forma de refrigerar suas amostras. Ele e os demais estudantes voltaram em um avião DC-3, movido a hélice, que parou ao longo do caminho para reabastecer. A cada escala, Hultin desembarcava e usava extintores de incêndio de pó químico seco para resfriar os pedaços de cadáver. Chegando ao laboratório, ele tentou cultivar o vírus em ovos de galinha, mas não deu certo (se é que algum influenza de fato pousou são e salvo no Iowa – nunca saberemos). Para piorar, não existia sequenciamento genético em 1951 – a estrutura da molécula de DNA só seria desvendada em 1953.
Corta para 1997. Hultin está com 72 anos, e lê um artigo científico do patologista Jeffery Taubenberger. No artigo, Taubenberger descrevia como havia recuperado parte do genoma do vírus de 1918 por meio de amostras dos pulmões de soldados americanos – que tinham sido congelados na 1ª Guerra justamente com o objetivo de servir para pesquisas no futuro. Ótimo: alguém havia conseguido uma amostra de um jeito menos Indiana Jones. O problema é que o vírus estava incompleto; faltavam pedaços do genoma. Mas Hultin sabia bem onde encontrá-los.
Com US$ 3.200 no bolso e 72 anos nas costas, o aventureiro voltou a Brevig Mission, no Alasca. Lá, ofereceu US$ 200 a cada morador que o ajudasse a cavar os corpos com as ferramentas de jardinagem de sua esposa. Ele coletou pedaços de pulmão de uma mulher de 20 anos enterrada a 2 m de profundidade e mandou as amostras (devidamente congeladas) para o laboratório. Dessa vez, deu certo.
Com o material recuperado por Hultin, outro microbiologista, Terrence Tumpey, finalmente conseguiu o vírus da gripe espanhola em 2005. Ao inseri-lo no pulmão de camundongos, ele se reproduziu 39 mil vezes mais rápido que um influenza comum. Os ratinhos perdiam 13% da massa corporal em dois dias, e a letalidade era 100 vezes maior. Descobriu-se, então, que essa eficácia assustadora era crédito de vários genes, entre eles um chamado HA – cuja função é produzir uma proteína que permite ao vírus aderir à membrana da célula infectada e se fundir a ela. Quando o gene HA do vírus de 1918 era trocado pelo HA de um vírus da gripe comum, ele perdia seus superpoderes.
Esses superpoderes não são ruins só para o hospedeiro, mas também para o próprio vírus. A gripe espanhola desapareceu em 1919 com a mesma rapidez com que se alastrou porque infectou tanta gente tão rápido que o H1N1 acabou desabrigado. Vírus que exageram na dose são tirados de campo pela seleção natural, enquanto os mais brandos permitem que suas vítimas continuem relativamente saudáveis, andando e espalhando a doença por aí.