O coronavírus assusta. Mas, na escala de crueldade da natureza, ele não é nada. Conheça alguns seres microscópicos capazes de fazer coisas realmente horrendas com o corpo humano.
Texto Emanuel Neves e Bruno Garattoni* | Ilustração DW Ribatski | Design Estudio Nono
(*colaboraram Aline Bisol, Laura Lima e Larissa Pessi)
Do sagrado ao profano
Doença meningoencefalite amebiana primária
Letalidade 97%
A palavra árabe bismillah significa “em nome de Deus”. Os muçulmanos a proferem ao começar a ablução, um ritual de purifcação física feito antes de rezar. A limpeza inclui lavar as mãos e o rosto, além de limpar a boca e o nariz por dentro – bochechando, e inalando, o líquido. Mas no Paquistão, onde 98% da população é muçulmana, esse hábito sagrado acabou tendo consequências macabras. O país tem graves problemas de saneamento: 85% das fontes de água são consideradas impróprias para consumo, pois estão contaminadas por diversos micro-organismos. Entre eles, as amebas, que podem causar cólicas, diarreia e danos ao fígado e ao intestino. Pior. A cidade de Karachi, a maior do país, vem lidando com uma ameba um pouco diferente: a Naegleria fowleri, que afeta o cérebro. Porque se alimenta dele.
Diariamente, os habitantes de Karachi jogam para dentro do nariz uma água potencialmente letal. Quando inalado, esse protozoário de 0,01 milímetro vai até o córtex – a parte mais externa do cérebro. Depois, gruda nele usando filamentos em formato de ventosas, os amebostomas. Aí começa a sugar de canudinho os miolos da vítima. Normalmente, as amebas se alimentam de bactérias (por isso vivem em locais onde há muitas delas, como lagos de água quente e piscinas sujas). Só que, no cérebro humano, não existem bactérias – a entrada delas é bloqueada pela barreira hematoencefálica, uma camada de células que protege esse órgão. Como não enconta bactérias, a N. fowleri passa a comer massa encefálica.
O sistema imunológico percebe, e envia leucócitos (células de defesa) para atacar a invasora. Só que isso piora as coisas. “A ação dos leucócitos e a liberação de algumas toxinas lesam o órgão, causando micro-hemorragias”, explica o neuroinfectologista Helio Gomes, professor da Faculdade de Medicina da USP. Os primeiros sintomas são a perda do olfato e do paladar. Depois surgem reações semelhantes às da meningite, como dores de cabeça, náusea, vômitos e rigidez na nuca, além de convulsões e alucinações. Mas não para aí.
O cérebro incha, e a pressão interrompe a conexão dele com a medula espinhal, responsável por transmitr os impulsos nervosos para o organismo. Isso provoca um colapso de funções vitais, como a respiração, e a pessoa morre em cinco dias – assassinada não pela ameba, mas pelo próprio sistema imunológico.
A doença é chamada de meningoencefalite amebiana primária (PAM, na sigla em inglês) e mata 97% das vítimas. Os EUA registraram casos na Califórnia, no Kansas e no Texas desde 2018, o que colocou a ameba em evidência. Mas a doença é rara por lá: acometeu 143 pessoas nas últimas seis décadas, geralmente crianças infectadas ao nadar em lagos contaminados. No Paquistão, a coisa é diferente: em Karachi, houve 146 casos desde 2008, e as vítimas geralmente são adultos. O mais intrigante é que os casos aconteceram numa região costeira, onde a água tem muito sal. E amebas não sobrevivem em ambientes salinos. Por isso, cientistas acreditam que a ameba paquistanesa tenha sofrido alguma mutação. Curiosamente, beber água contaminada não leva à infecção. “Há a hipótese de que o pH (acidez) da saliva consiga diminuir o potencial nocivo da ameba”, diz a neurobiologista Syeda Farhat, da Universidade Nacional de Ciências Médicas do Paquistão.
A doença não tem tratamento eficaz. A milfetosina, um remédio experimental para câncer de mama, conseguiu reverter o quadro em duas crianças americanas. No ano passado, cientistas da Malásia criaram um método que usa drogas anticonvulsivas, como o diazepam, e nanopartículas de prata e ouro. Os metais supostamente ajudam a matar as amebas, mas criam outros problemas após o tratamento. “Pode ser difícil limpar as nanopartículas metálicas do cérebro”, diz Farhat.