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A economia interna dos games

As finanças internas dos MMOs, os jogos multiplayer, passam por hiperinflação, troca de moeda e a ascensão de mercados clandestinos.

Texto: Maria Clara Rossini | Ilustração: Vitor Tritto | Design: Juliana Krauss | Edição: Alexandre Versignassi

Em 2013, a hiperinflação atingiu vários países de uma só vez. E ninguém percebeu o fenômeno nas visitas ao supermercado, mas em um jogo online: Diablo III.

Estima-se que a moeda usada para transações internas tenha sofrido uma inflação de 10.000% um ano após o lançamento do jogo, em maio de 2012. O que causa inflação, seja nos jogos, seja no mundo real, é excesso de dinheiro em circulação, e pouca coisa para comprar com esse dinheiro. Nessas horas, não tem jeito: todos os preços sobem em uníssono. Robôs e jogadores de carne e osso que dedicavam horas do dia a gerar moedas já estavam contribuindo para o aumento da inflação em Diablo III, mas foi um bug do próprio game (que duplicava a grana dos espertinhos que aplicassem um truque simples) que obrigou os desenvolvedores a paralisar as transações feitas no jogo em maio de 2013.

A inflação é só um dos fenômenos comuns na complexa economia dos jogos online. Milhões de jogadores usam uma fatia valiosa do seu tempo para comprar e vender itens, algo importante para quem pretende adquirir status social dentro dos jogos. Os exemplos vão desde roupas e armas até naves espaciais e animais de estimação.

Para entender tudo isso, é preciso conhecer alguns dos pilares que sustentam a economia dos mundos virtuais.

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Torneiras e ralos

Todo desenvolvedor de games precisa planejar o progresso econômico do jogador para mantê-lo engajado, mas os responsáveis pelos jogos multijogador em massa online (os MMOs na sigla em inglês) precisam dar um passo a mais. É que o jogador não interage apenas com o software, mas também com outros humanos. Eles assumem o papel de personagens, e geralmente transitam em um mapa onde encontram e conversam com outros jogadores. Os exemplos vão do clássico World of Warcraft ao nostálgico Habbo.

A partir do momento em que os jogadores podem se comunicar, expressar interesses e trocar itens, o comércio se forma naturalmente. Empresas como a americana Blizzard e a islandesa CCP Games, ambas desenvolvedoras de MMOs, viram a necessidade de contratar economistas para gerir os mercados crescentes de seus mundos virtuais.

O dinheiro que movimenta esse mercado interno vem das “torneiras” – jargão para descrever as fontes que despejam moedas aos jogadores. Em World of Warcraft, sempre que um monstro é morto por um jogador, ele solta dinheiro ou itens que podem ser vendidos para personagens criados pela própria inteligência artificial do jogo (mais conhecidos como NPCs). Outra fonte de renda é completar missões, que fornecem boas quantias como recompensa.

Esse dinheiro é criado do zero e injetado na economia. É como se cada monstro fosse, em menor escala, uma máquina de imprimir dinheiro – coisa que no mundo real só os bancos centrais têm.

Justamente por isso, as moedas do mundo virtual sofrem inflação com frequência. Mas imprimir esse dinheiro não é tão fácil assim. Você precisa dedicar um tempo considerável se quiser ficar rico no jogo. O problema só aparece quando os jogadores passam a se comportar de maneiras inesperadas – seja por quem está passando horas excessivas só coletando ouro (comportamento chamado de farming), ou pelos robôs (os “bots”) programados para fazer isso 24 horas por dia. Os jogos, obviamente, sempre procuram identificar e eliminar os bots.

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Além disso, existem os “ralos” para controlar a inflação. São os mecanismos que drenam as moedas do jogo. Os ralos aparecem na forma de itens consumíveis (como alimentos que restauram a energia do personagem), compras em lojas de NPCs (por exemplo, armaduras raras) ou taxas obrigatórias em transações comerciais entre os jogadores. As moedas pagas ao jogo simplesmente deixam de existir. Na vida real é parecido. Quando o Banco Central (BC) quer reduzir a inflação, ele aumenta os juros (o que reduz o consumo) e sobe o “compulsório” – a quantidade de dinheiro que os bancos são obrigados a deixar parado numa conta do BC. Hoje, o compulsório é de 17% daquilo que cada instituição financeira tem sob custódia. Na época da introdução do Plano Real, quando o objetivo era exterminar uma hiperinflação de 2.500% ao ano, o compulsório chegou a 100%. Um baita ralo.

Os desenvolvedores do MMO Runescape levaram esse conceito ao extremo. O jogo tem, literalmente, buracos onde os jogadores podem atirar suas moedas. Ao fazer isso, os personagens ganham títulos, dependendo da quantia descartada. O status social dos títulos é suficiente para motivar os jogadores a dar descarga na grana.

Por último, o jogador também pode vender e comprar itens de outros humanos – nesse caso, o dinheiro só está trocando de mão. Em MMOs de fantasia, essas transações internas costumam ocorrer em um mercado centralizado, conhecido como “casa de leilões”. E aí o preço varia de acordo com a oferta e demanda dos itens. Foi justamente sua casa de leilões que Diablo III precisou fechar para conter a inflação de 10.000%.

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Um bom jogo precisa manter as torneiras e ralos em equilíbrio, além de fornecer meios oficiais de transação para evitar as negociações informais em fóruns paralelos. No entanto, nem sempre isso é suficiente para largar o jogo rodando sem problemas.

As torneiras são os mecanismos do jogo que despejam moedas aos jogadores. E os ralos são aqueles que retiram o dinheiro de circulação.
As torneiras são os mecanismos do jogo que despejam moedas aos jogadores. E os ralos são aqueles que retiram o dinheiro de circulação. (Vitor Tritto /Superinteressante)
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Hiperinflação

No mesmo ano em que Diablo III acionou o circuit breaker da sua casa de leilões, um fenômeno ainda mais bizarro aconteceu em um MMO pouco conhecido: o Gaia Online. O jogo tinha uma estética baseada em animes, e boa parte da diversão era comprar roupas para o avatar. Algumas pessoas dedicaram anos a acumular moedas e status dentro do jogo, mas a maior parte mantinha um nível “normal” de dinheiro.

Em 2013, uma das novidades implementadas foram os “geradores de ouro”, vendidos a US$ 0,99. Eles forneciam uma quantidade aleatória de ouro, podendo chegar a 100 milhões de moedas. Da noite para o dia, qualquer pessoa que tivesse US$ 1 sobrando poderia ficar milionária no mundo virtual. Foi o que aconteceu.

A inflação chegou a 500.000% em dez meses. Itens que antes custavam milhares de moedas passaram a custar trilhões. Os desenvolvedores começaram a oferecer US$ 250 em doações para caridade no mundo real em nome de quem descartasse 60 trilhões de moedas no mundo virtual. Mesmo assim, não foi suficiente para salvar a economia – e a crise levou à decadência do jogo.

Não faltam exemplos na vida real. A Alemanha de 1920 imprimiu dinheiro para pagar as dívidas da Primeira Guerra – mas acabou com uma inflação que chegou aos 1.000% ao mês. Em 2008, a moeda do Zimbábue desvalorizava tanto que os preços dobravam a cada dia.

Quando isso acontece, as pessoas abandonam o dinheiro do país e passam a usar só moeda forte. Nos anos 1980, os anúncios de apartamento no Brasil vinham com o preço em dólar. Na Venezuela, metade das transações hoje são feitas na moeda americana. E se você der um pulinho em Buenos Aires, vai ver que mesmo o real é mais bem-vindo que o destroçado peso argentino.

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Um dos fatores que tornam uma moeda forte é a escassez, a raridade dela no mercado. Nos anos seguintes à revolução russa, Lenin substituiu os rublos czaristas por uma nova moeda oficial, os rublos soviéticos. E ligou as impressoras de dinheiro. A inflação veio forte. Mas só para o rublo soviético. As notas antigas mantiveram o valor simplesmente porque o governo não produzia mais cédulas com imagens de czares.

Nos games acontece basicamente a mesma coisa. A inflação faz com que a moeda oficial do jogo perca o valor. Os jogadores, então, buscam algo que seja mais escasso para servir como moeda. Em Ultima Online, bugs tornaram o ouro tão abundante que os jogadores passaram a negociar estrume de cavalo. O cocô equino deveria apenas fazer parte do cenário – e os cavalos não eram programados para produzir mais fezes. Isso fez com que o objeto se tornasse um item de valor trocado entre os jogadores. Igual os rublos czaristas entre os soviéticos.

Asheron’s Call também enfrentou o problema de torneiras que jorravam ouro demais – e os jogadores passaram a usar outros minérios como moeda. Em Diablo II, um tipo específico de anel era considerado mais legítimo para trocas do que a moeda oficial.

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Mundo virtual, economia real

Nenhum MMO tem uma economia tão complexa quanto o futurista EVE Online. Em vez de matar monstros para produzir dinheiro, os jogadores precisam minerar recursos e vendê-los para outros que tenham uma indústria de base. Esses, então, transformam o minério em aço, por exemplo, e vendem o produto para os jogadores que produzem peças. Só aí aquilo que nasceu como minério fará parte de uma nave espacial. 80% de todos itens do jogo são produzidos pelos próprios jogadores.

Algumas características do mundo real se aplicam: distribuição e escassez de minérios de acordo com a região e custo de transporte, por exemplo. Isso faz com que as pessoas se especializem em profissões (tipo caminhoneiro intergalático). Em suma, uma simulação brilhante do mundo real. O PIB de cada região é só um dos parâmetros informados pelo relatório econômico mensal produzido pela CCP Games, que administra o jogo. Até 2014, o economista Eyjólfur Guðmundsson, atual reitor da Universidade de Akuretri, na Islândia, era responsável por monitorar diariamente os indicadores de EVE Online, para ir lapidando a economia do jogo.

A dificuldade em conseguir dinheiro deixa a inflação sob controle em EVE Online. Além disso, os ralos são consideráveis. Se você resolve entrar em uma guerra, os itens de fato podem ser destruídos, ao contrário do que acontece na maior parte dos jogos. Mesmo que você tenha demorado cinco anos e bilhões de moedas para construir uma nave, todo o tempo e dinheiro empregados podem acabar destruídos numa batalha. Na Segunda Guerra Mundial, os aviões americanos abatidos no Pacífico tiveram um papel parecido – ajudaram a frear a inflação que o dinheiro impresso para o esforço bélico tinha criado.

Mas nada disso se compara à maior sacada dos desenvolvedores de EVE. Apesar de muitos jogos não venderem suas moedas por dinheiro de verdade, é difícil evitar o mercado paralelo. Existe uma demanda por moedas por parte dos jogadores que não têm tempo para dedicar ao jogo, ou simplesmente não querem realizar todas as tarefas necessárias para ganhar dinheiro. Por isso, outros se aproveitam para vender moedas por dinheiro real no Mercado Livre ou no Ebay – apesar de a prática ser proibida e as contas correrem o risco de serem banidas.

O que a CCP fez foi criar uma espécie de moeda intermediária, chamada Plex. Dá para comprar Plex com dinheiro real e também com moedas virtuais que você junta quando faz negócios lucrativos dentro do jogo. Quem compra os Plexes pode usá-los para bancar a mensalidade de EVE (US$ 12) ou itens especiais. Em suma, você consegue pagar algo do mundo real com trabalho virtual.

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Nisso, a moeda do jogo fica atrelada a algo mais sólido do que ela própria – coisa que também já aconteceu na história da economia. No passado, uma maneira de segurar o valor de uma moeda era o Estado garantir que ela poderia ser trocada por ouro a um câmbio fixo. Nos EUA dos anos 1930, você podia trocar cada US$ 1,25 que tivesse por um grama de ouro, na boca do caixa.

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(Vitor Tritto /Superinteressante)

Entropia Universe vai mais longe. Um dólar compra dez moedas no jogo – câmbio fixo. Mas tem um pulo do gato: você também pode sacar dinheiro, trocando o lucro que consegue dentro do jogo por dólares de verdade. Isso fez com que muitas pessoas começassem a investir na compra de estabelecimentos no mundo virtual, com o intuito de lucrar com dinheiro real. Em 2005, o jogador Jon Jacobs decidiu vender sua casa para comprar um resort virtual por US$ 100 mil. O investimento pagou: ele transformou o estabelecimento em uma boate e faturou US$ 200 mil por ano até vendê-lo em 2010 por US$ 650 mil para outro jogador.

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“Essencialmente, ele deixa de ser um jogo e passa a funcionar como um investimento”, diz o economista Eyjólfur Guðmundsson. De fato. Os cinco itens virtuais mais caros já comprados na história são de Entropia Universe. Em primeiro lugar está o Planeta Calypso, que custou US$ 6 milhões – o comprador aí não foi um fã, mas uma empresa, a SEE Digital Studios, que assumiu a administração do planeta.

“Qualquer pessoa que quiser um vislumbre do futuro da economia deve focar na indústria de games”, diz Guðmundsson. “No final das contas, eles vão se misturar com a vida real, e não veremos mais diferença.”

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