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A gênese da filosofia

Ela surgiu na Grécia Antiga, quando os pensadores pararam de crer nos mitos como explicação para o Universo - e decidiram usar a razão.

Texto: Agência Fronteira | Edição de Arte: Juliana Vidigal | Design: Andy Faria | Ilustrações: Caco Neves e Getty Images


Do que o mundo é feito, de onde viemos, para onde vamos, qual é o sentido da vida? São perguntas para as quais o homem busca respostas desde que descobriu que podia pensar. No início, a imaginação criava as respostas, dando corpo aos mitos e suas narrativas mirabolantes. Por que chove? Porque Zeus está furioso. Por que morremos? Porque Hades, o deus da morte, quis assim. A mitologia explicava tudo, da origem do Universo às chuvas.

Séculos 7 a 5 a.C. – Pré-socráticos

Por volta do século 7 a.C., porém, a razão começou a substituir os mitos. Os primeiros filósofos passaram a não aceitar mais explicações fantasiosas para perguntas existenciais elementares, como “do que o mundo é feito”. O mundo não podia ter surgido do nada – muito menos do trovão de um personagem mitológico. Alguma coisa havia criado o Universo, e eles tinham até um nome para essa explicação eterna, perene e imortal: physis, do verbo grego “fazer surgir”.

Para Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo da geração que antecedeu Sócrates (conhecida como pré-socrática), a origem de tudo era a água. Mas ele deixou mais contribuições para a matemática do que para a filosofia. Já Anaximandro defendia que o Universo nasceu do conceito de infinito. E Anaxímenes dizia que tudo brotou do ar. Heráclito, porém, estava mais interessado não na substância, mas no processo que formou tudo o que existe. Para ele, tido como o maior rabugento da história da filosofia (é dele a frase “todos os homens são maus, e meu pior remorso é não ser um cachorro para poder mordê-los”), era o logos – isto é, a razão – que governava o mundo.

A vitória da racionalidade sobre os mitos se consolidou com Parmênides, a quem Platão chamou de pai espiritual. Esse aristocrata, nascido em Eleia, hoje sul da Itália, foi o principal nome da escola eleática, um dos últimos movimentos filosóficos da era pré-socrática. Ele foi o primeiro a dizer que ver, ouvir, escutar ou sentir apenas produz crenças e opiniões. A tese daria início a um dos grandes temas da filosofia que viria a seguir – o conceito de verdade.

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469 a 399 a.C. – Sócrates

Sócrates era meio esquisitão. Ele caminhava pelas ruas abordando desconhecidos e fazendo perguntas embaraçosas: “O que é o amor?”, “o que é a virtude?”, “o que é a coragem?”. O interlocutor desavisado dava respostas, que eram escrutinadas por Sócrates. O filósofo rebatia com novas perguntas ainda mais intrigantes – método hoje conhecido como “socrático”. Mas tudo de um jeito humilde e afável, uma de suas marcas registradas, sem parecer que possuía respostas definitivas. Seu interesse era contestar verdades arraigadas de forma construtiva.

A arte do diálogo inaugurada por esse ilustre cidadão ateniense nascido em 469 a.C. era uma ode à razão. Certa vez perguntou se enganar correspondia a ser imoral. “É claro que sim”, ouviu como resposta. Sócrates então indagou: “Mas e se um amigo estivesse muito triste e quisesse se matar e você roubasse a faca dele? Não seria um ato imoral?”. A resposta foi afirmativa. Sócrates, então, concluiu: “Mas seria moral em vez de imoral, já que seria uma coisa boa e não ruim”. A essa altura, os neurônios do pobre cidadão fritavam, e Sócrates dava as costas e partia. A vida e a moral eram suas grandes preocupações. Uma existência virtuosa, na sua visão, era uma questão de consciência – princípio que levaria à máxima “Conhece-te a ti mesmo”.

Um dia, um amigo de Sócrates consultou o Oráculo de Delfos. Desejava saber se existia alguém mais sábio do que o filósofo. A resposta foi direta: “Ninguém é mais sábio que Sócrates”. O pensador ficou pasmo com a afirmação – ele não alimentava ilusões sobre o próprio saber. Não à toa entrou para história com a máxima “só sei que nada sei”.

A frase lhe rendeu inimigos em Atenas. O filósofo foi acusado de usar seu método apenas para persuadir. Por causa disso, foi levado ao tribunal e acusado de colocar em risco a moralidade ateniense, corromper os jovens e não crer nos deuses do Estado. Recusando-se a abrir mão de suas ideias, o sábio foi condenado a tomar um cálice de cicuta – veneno extraído de uma planta que paralisa o corpo. Morreu aos 70 anos, em 399 a.C. Durante o famoso julgamento, disse uma de suas frases mais marcantes: “A vida irrefletida não vale a pena ser vivida”.

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427 a 347 a.C. – Platão

Nascido em 427 a.C., em Atenas, Arístocles era um sujeito atlético, com ombros largos e músculos proeminentes, físico que lhe rendeu o apelido de Platão – algo como “robusto”, “amplo”. Apesar do porte próprio para o esporte, o rapagão se tornaria o principal discípulo do grande Sócrates e um dos mais influentes filósofos do mundo. Sua história como pensador começa, por volta de 400 a.C., ao ver o barbudo inquisidor debater na Acrópole. Ali, conta a história, Platão teria desistido de seguir carreira como dramaturgo para seguir Sócrates. Sábia decisão.

A convivência com Sócrates, a quem Platão chamava de “o mais sábio e justo dos homens”, foi decisiva para sua obra. O filósofo escreveu, inspirado no método dialético de Sócrates, 36 Diálogos, que hoje são reconhecidos como verdadeiras obras-primas filosóficas e literárias. Até hoje não se sabe onde começa o pensamento de Platão e termina o de Sócrates, mas alguns especialistas acreditam que os primeiros diálogos concentram as ideias do mestre, e os mais tardios, como O Banquete e A República, reúnem as teses de Platão.

Suas obras trazem uma miscelânea de assuntos: a política, a música, a natureza da mente, o conhecimento, o amor etc. Porém, a busca racional da verdade se tornaria um de seus conceitos de maior influência. Não é à toa que o Mito da Caverna, onde essas ideias sobre conhecimento, ilusão e verdade tomam forma, se tornou um dos escritos filosóficos mais lidos da história. Na fábula, escravos foram acorrentados em uma caverna escura desde pequenos sem poder sair. Tudo o que viam do mundo eram sombras projetadas nas paredes.

Esses homens eram, para Platão, como nós e o nosso mundo. Ou seja, tudo o que vemos no mundo sensível é uma cópia imperfeita da sua forma verdadeira, que existe, indefectível, no mundo das ideias. É onde moram o homem perfeito, a mulher perfeita, o cão perfeito; enquanto na Terra lidamos com simulacros desse homem, dessa mulher e desse cão. Quando um dos escravos foge da caverna e fica deslumbrado com a verdadeira forma das coisas, Platão faz uma metáfora com o filósofo, que ascende ao mundo inteligível pelo conhecimento.

Platão defendia que o mundo das ideias perfeitas e imutáveis só poderia ser acessado pelos filósofos. E daí surgiu parte da sua teoria política: que a classe dos pensadores era a mais indicada para governar a pólis. Para ele, na cidade ideal, existiriam apenas três categorias de cidadãos, com cada um desempenhando a tarefa para a qual estava melhor preparado. Quem tinha a “alma com apetite” ficaria encarregado do trabalho braçal; os corajosos seriam os guardiões da pólis; e os dotados de sabedoria e razão, os governantes-filósofos. A tarefa do rei filósofo seria justamente a de regressar à caverna e relatar o mundo das ideias – isto é, levar a verdade para o povo.

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Na comunidade ideal de Platão, os casamentos seriam coletivos e sem parceiros fixos; o sexo seria somente para fins de reprodução; e as crianças ficariam a cargo do Estado – as mais dotadas deveriam ser educadas separadamente. O filósofo também defendia a igualdade dos sexos, algo inovador para uma época em que as mulheres mal podiam sair de casa. Na cidade ideal platônica, elas poderiam exercer até postos no serviço militar. A república platônica, portanto, mesclava princípios louváveis e outros que podiam inspirar tiranos e alimentar preconceitos.

Na época em que escreveu a obra, a Grécia se afundava em guerras e destruição. Platão já tinha um pé atrás com a democracia porque foi por meio do voto popular que Sócrates fora condenado à morte. A tirania também lhe causava mal-estar: pelas mãos de um tirano, Dionísio 1˚, o filósofo chegou a ser vendido como escravo. O pensador possuía razões de sobra para querer construir um nova forma de governo, em que a sabedoria ditaria as regras.

Depois da morte de Sócrates, Platão fundou sua própria escola em Atenas, a Academia, inspirada nas comunidades criadas anos antes por Pitágoras. Considerada a primeira universidade do mundo, a escola de Platão ensinava matemática e geografia. O grande avanço era o ingresso de mulheres, que, pela primeira vez, podiam estudar. Entre seus alunos, um se destacaria: Aristóteles.

384 a 322 a.C. – Aristóteles

Aristóteles era um garoto de 17 anos e aparência engomada quando conheceu Platão, já com seus 70 anos, na Academia. O jovem nascido em Estagira, na região de Calcídica, atual Grécia, vinha de uma família com verve científica. Seu pai, Nicômaco, era médico da família real da Macedônia. Conta-se que o pequeno Aristóteles brincava nos jardins do palácio quando criança e já nutria uma curiosidade voraz por tudo o que enxergava pela frente – essa sede de conhecimento o levaria a construir uma das maiores obras (em volume e abrangência) da história.

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Por volta de 367 a.C., Aristóteles estava órfão e chamou a atenção do professor da Academia. Havia gastado parte da sua herança com livros e fazia questão de catalogá-los de forma organizada. Apesar da pouca idade, ele debatia de igual para igual com os eruditos que circulavam na universidade. Após a morte de Platão, Aristóteles, que já era um filósofo prestigiado, retomou suas andanças pelo mundo, que acabariam no palácio de Felipe 2˚, pai de Alexandre, o Grande, de quem seria tutor.

Durante seus 20 anos na Academia, Aristóteles aprendeu muito com Platão, mas se tornou também seu maior crítico. O filósofo não acreditava na teoria do mundo das ideias defendida pelo mestre no famoso Mito da Caverna. Para ele, a verdade sobre as coisas estavam nelas mesmas, em suas próprias características. Ou seja, não havia essa de mundo paralelo, ideal e intangível. Veja o exemplo de uma mesa. Depois de observar centenas de mesas – altas, baixas, largas, estreitas –, poderíamos definir o que afinal era uma mesa e seríamos capazes de reconhecer quando nos deparássemos com uma.

Em 336 a.C., quando Alexandre assumiu o trono, o tutor ilustre voltou a Atenas e fundou o Liceu. Seus alunos ficaram conhecidos como peripatéticos (os que passeiam), pelo hábito do mestre de dar aulas caminhando. Enquanto a Academia de Platão priorizava o ensino da matemática, no Liceu o foco eram as ciências naturais – Aristóteles mantinha catálogos com exemplares da fauna e da flora.

Foi durante seu tempo de Liceu que o filósofo de Estagira escreveu a maior parte de suas 120 obras (das quais apenas 40 são conhecidas) e revolucionou o pensamento humano. Foi ele que dividiu o conhecimento em categorias, divisão que vigora desde então. Ou seja, Aristóteles foi quem batizou a biologia, a zoologia, a física, a história natural etc., determinando que cada uma tivesse um ramo próprio.

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Mas não foi apenas nisso que o filósofo meteu a colher. Sua curiosidade ia das ciências à busca da felicidade, passando pelos meandros e limitações da lógica. A abrangência do seu pensamento o levou a escrever Metafísica, uma das suas obras clássicas. Nela, o pensador constrói uma ciência capaz de compreender a realidade e a essência do homem nos seus aspectos mais fundamentais.

Ele queria saber o que é eterno, imutável, o que não depende de um ponto de vista para ser pensado. O resultado foram 14 livros, nos quais o melhor aluno de Platão fundou a lógica enquanto disciplina, detalhou o que realmente importa para definir o homem e revelou que há uma estrutura básica de conhecimento que sustenta todas as ciências especializadas. A minúcia de Aristóteles chega a ser exasperante – por isso, é bom ter um dicionário filosófico ao lado para os momentos de aperto.

Primeiro, ele faz uma investigação do que é a realidade usando as ferramentas que a gente tem, como a linguagem e a abstração. Depois, classifica tudo em categorias. É então que nasce a lógica como disciplina (na época, ele usou o termo “analítica”), essencial para pensar sem cometer distorções. Quer exercitar um pouco o pensamento lógico?

Então, pense num quadrado retangular. Você pode até pronunciar essa frase, mas não consegue conceber um quadrado que seja retangular porque se trata de uma contradição; e o contraditório não pode ser pensado, logo não pode existir porque não pode ser pensado. Esse é o primeiro princípio lógico aristotélico: o da não contradição. Ou um triângulo tem três retas ou não é um triângulo. É certo que quase nunca temos 100% de certeza de algo, que a verdade se dá por aproximações e que nosso rigor é relativo. Mas jamais conseguimos nos livrar das leis do raciocínio lógico. A lógica é para o pensamento como o motor é para um carro ou as asas para um avião – o sistema básico que impulsiona a mente.

A ética da felicidade

Quer ser feliz? você precisa ser um homem bom antes.

Em meio a seus estudos da natureza, da biologia, da física e da lógica, Aristóteles ainda encontrava tempo para pensar no sentido da vida. O grande filósofo de Estagira não apenas afirmou que a felicidade deve ser o objetivo de vida do homem como ligou o conceito de modo inédito à ética e à política.

O pensador acreditava que uma vida virtuosa e feliz seria ter uma agenda social e politicamente agitada. Ou seja, fazer o bem aos outros e estar interessado no bem comum das cidades era uma premissa para a eudaimonia, o termo grego para felicidade, em que eu significa bem e daimon, espírito.

O homem precisaria se preparar para as alegrias, cultivando o caráter e controlando as emoções – o prazer, então, viria como consequência. Para o filósofo, o prazer é inseparável da busca por felicidade. Mas o que se deve buscar é a atividade, os objetivos, não o prazer em si. Aristóteles rejeitou o hedonismo, que seria uma negação do autocontrole, traço que distingue o homem dos animais. Para conquistar a eudaimonia, você precisa andar na linha.

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