O conflito que se espalhou pelo mundo entre 1914 e 1918 matou quase 20 milhões e mudou o destino da humanidade.
Texto: José Francisco Botelho | Design: Andy Faria
Num entardecer de agosto de 1914, o secretário britânico de Assuntos Exteriores, Edward Grey, observava as ruas de Londres da janela de seu gabinete. Seu olhar era melancólico. Algumas semanas antes o arquiduque austríaco Francisco Ferdinando fora morto por um disparo de pistola em Sarajevo, lançando as potências européias num redemoinho. Enquanto a noite caía sobre a capital inglesa, trens cruzavam a Europa levando milhões de soldados para um duelo entre os maiores impérios da época.
Muitos políticos acreditavam que essa seria “a guerra para acabar com todas as guerras”: um acerto de contas que resolveria todas as disputas do mundo civilizado. Prevendo uma luta rápida, alguns juravam que a paz voltaria até o Natal daquele mesmo ano. Mas Grey não estava tão otimista. Quando o Sol desapareceu atrás dos telhados de Londres, ele disse a um assistente: “As luzes estão se apagando em toda a Europa e não voltarão a se acender enquanto estivermos vivos.”
O secretário britânico estava certo. A 1a Guerra Mundial se estendeu por 3 continentes e 4 exaustivos anos. Suas conseqüências, como previu Grey, foram duradouras: ao longo de 4 décadas, o mundo não teve paz. O conflito plantou as sementes da 2ª Guerra, enterrou para sempre a romântica autoconfiança da velha Europa e inaugurou o período dos maiores massacres da história.
Poucos eventos mudaram de forma tão radical o destino da humanidade. Para começar, a 1ª Guerra Mundial virou do avesso as fronteiras do planeta e moldou o turbulento cenário internacional no qual vivemos hoje. Grandes impérios arderam em chamas, revoluções se espalharam e novas nações surgiram das cinzas. Foi no calor desse conflito, por exemplo, que o socialismo revolucionário se tornou um fenômeno global: a Rússia dos czares foi varrida pela revolução comunista em 1917 e, alguns anos depois, surgiria a União Soviética. A Alemanha derrotada perdeu territórios na Europa e no além-mar – uma humilhação que despertaria ódios e rancores, forjando a suástica nazista dali a 20 anos.
No Leste Europeu e no Oriente Médio, os Impérios Austro-Húngaro e Otomano caíram aos pedaços, lançando num turbilhão dezenas de línguas, etnias e culturas. Dessas ruínas fumegantes surgiram países como Checoslováquia, Iugoslávia, Iraque, Líbano e Síria. Marcados por um parto confuso e doloroso, alguns desses Estados recém-nascidos desapareceram ao longo dos anos.
E outros existem até hoje, assolados por conflitos intermináveis. As atrocidades cometidas nos Bálcãs durante a década de 1990, o brutal regime de Saddam Hussein, a guerra civil que arrasou o Líbano em 1975 e a polêmica independência de Kosovo no início de 2008 são alguns dos recentes tremores causados pelo colapso da velha ordem mundial. As ondas de choque desencadeadas em 1914 continuam vivas e, no início do século 21, muitas luzes permanecem apagadas.
Torre de Babel
Além de grande, a 1ª Guerra foi realmente mundial. Entre 1914 e 1918, 65 milhões de soldados de diversas línguas e etnias se enfrentaram numa monstruosa Torre de Babel erguida em meio a trincheiras e arame farpado. Jamais na história um conflito militar havia reunido ao mesmo tempo tantos combatentes e tantas nacionalidades. Amarrados uns aos outros por uma rede intrincada de alianças, como um grupo de alpinistas tateando à beira do abismo, quase todos os países da Europa mergulharam na carnificina após aquele tiro nos Bálcãs que matou Francisco Ferdinando. Só escaparam Espanha, Suíça, Holanda e a Escandinávia.
Em questão de meses a conflagração européia se globalizou: era o auge do imperialismo e o resto do mundo estava atrelado à Europa, como vagões puxados por uma locomotiva. Ao longo do século 19, a Revolução Industrial – movida a vapor, carvão e eletricidade – havia trazido uma era de otimismo e pujança ao Ocidente. O telégrafo, as ferrovias e os navios integravam regiões antes incomunicáveis. Rica e poderosa como nunca, a Europa conquistara colônias na África e na Ásia e acabara dominando 84% da superfície da Terra. Mesmo países independentes, como os da América do Sul, estavam grudados por laços econômicos e diplomáticos ao pólo magnético europeu.
Por isso o entrechoque das grandes potências imperialistas – que não lutavam só para proteger suas fronteiras mas pela supremacia global – foi sentido nas terras e nas águas mais distantes do planeta. Ingleses e alemães duelaram nos oceanos Atlântico e Índico. As colônias germânicas na África e na Ásia transformaram-se em ferozes campos de batalha. E, à medida que a “guerra para acabar com todas as guerras” se prolongava, mais e mais países não europeus seguiram a locomotiva desgovernada e entraram na briga – inclusive o Brasil.
O primeiro conflito maciço da era industrial gerou um volume inédito de deslocamento humano. No casco de navios ou em vagões de trens, exércitos recrutados em colônias distantes foram levados para a morte do outro lado do mundo. Tropas da Austrália e da Nova Zelândia atravessaram mais de 10 mil quilômetros para invadir Império Otomano. Soldados hindus e paquistaneses lutaram na Síria, na Palestina e na Tanzânia. Argelinos, marroquinos e vietnamitas engrossaram os batalhões franceses. Enquanto isso, multidões civis fugiam dos bombardeios e das ocupações inimigas, gerando o primeiro êxodo maciço de refugiados do século 20. Cerca de 4 milhões de gregos, turcos, armênios, búlgaros e russos se transformaram em massas apátridas, vagando de país em país em busca de emprego.
A mundialização do conflito chegou ao ápice em julho de 1917, quando tropas dos EUA – que desde o século 18 evitavam se meter em assuntos europeus – atravessaram o Atlântico para guerrear no Velho Mundo. Ao romper o tabu do isolacionismo (uma regra imposta por seu primeiro presidente, George Washington), eles deixaram de ser uma potência regional e iniciaram sua marcha até o topo do mundo. Quando o primeiro soldado americano desembarcou na Europa, foi aberto o precedente para futuras intervenções em lugares distantes do planeta – por motivos justos ou não.
Banho de sangue
Além de mover fronteiras e deslocar populações, o cataclismo de 1914 deixou outro legado duradouro: o monstro da “guerra total”, termo cunhado em 1916 para descrever a forma de guerrear que estava surgindo. Durante o século 19, os conflitos armados seguiam – pelo menos na teoria – as boas maneiras aristocráticas. Acreditava-se que a violência devia se limitar aos campos de batalha: guerrear era arrasar exércitos e ponto final. A destruição de cidades e populações civis era vista como uma forma de barbárie.
Terminado o duelo, os diplomatas podiam embainhar as espadas, apertar as mãos e brindar sem ressentimentos. Esse cavalheirismo entre rivais foi por terra em 1914. Dessa vez, as grandes potências se digladiavam com objetivos megalomaníacos e ilimitados: cada qual planejava se transformar no império mais poderoso da Terra. Para tanto, era preciso aniquilar totalmente o adversário. E não apenas seus exércitos mas também seu poderio industrial e econômico.
Fábricas, plantações e cidades se tornaram alvos estratégicos. Resultado: a distinção entre civis e combatentes evaporou. A 1a Guerra Mundial não foi só um combate de exércitos mas de sociedades inteiras. Envolveu os soldados que penavam nas trincheiras, as famílias que racionavam comida e as mulheres que deixavam os lares para trabalhar em fábricas de armamentos – e que podiam, a qualquer momento, ser trucidadas por bombas caídas do céu. Até as taxas de natalidade eram usadas como arma. Quanto mais crianças nascessem, mais cidadãos poderiam morrer em nome da pátria no longo prazo. Por isso, a propaganda maciça ganhou um lugar central no esforço de guerra.
A lógica da guerra total mancharia de sangue civil todo o século 20. “Desde a 1a Guerra, o número de mortes entre civis tem sido muito maior que as baixas militares em todos os países beligerantes, à exceção dos EUA”, escreve o historiador Eric Hobsbawn em A Era dos Extremos (Companhia das Letras, 1995). O delírio da aniquilação mútua foi alimentado por novas tecnologias. Considerada o primeiro conflito totalmente mecanizado na história, a guerra travada entre 1914 e 1918 marcou a estréia de diversos equipamentos que até hoje são usados para matar e conquistar. Milhares de pessoas acabaram sepultadas no fundo do oceano ao final de combates entre submarinos e navios. Aviões e dirigíveis foram usados para pulverizar inimigos. Milhões de soldados morreram envenenados por gases tóxicos. Outros tantos foram esmagados por tanques.
Cientificamente programada, a morte se transformava em equação matemática. Foi a partir de 1914 que a guerra se tornou uma coisa estatística e impessoal: um apertar de botões ou puxar de alavancas significava a destruição de um inimigo cujo rosto, muitas vezes, nem sequer era visto. Jamais a tecnologia e a ciência – vistas até então como anjos da guarda do progresso humano – haviam sido usadas de forma tão destrutiva. E nunca o mundo testemunhara uma carnificina tão monstruosa. Quando a poeira baixou, em 1918, a civilização ocidental ficou chocada com os números do conflito: foram quase 20 milhões de mortos e outros 20 milhões de feridos. Isso sem contar os cavalos: 8 milhões de animais morreram, e algumas espécies quase foram extintas. Antes disso, a última guerra travada em solo europeu – a Guerra Franco-Prussiana, de 1870 – havia matado 200 vezes menos.
A Europa nunca se recuperou do trauma da 1ª Guerra Mundial. Entre os ex-combatentes, muitos enlouqueceram. Alguns se tornaram poetas e pacifistas. E outros, brutalizados pelos horrores do front, foram engrossar as fileiras de movimentos fascistas que ganharam corpo no pós-guerra. Entre os rancorosos veteranos que retornaram derrotados à Alemanha, havia um jovem soldado raso chamado Adolf Hitler. “O conflito não resolveu nada, apenas agravou as rivalidades que já existiam em 1914”, escreve Hobsbawn.
Apesar dos tratados, armistícios e esforços diplomáticos, a era de calamidades inaugurada pelo atentado em Sarajevo estava longe de acabar – e a contagem regressiva para a 2ª Guerra Mundial havia começado. Por isso, muitos historiadores acreditam que 1914 marca o fim do confiante século 19 e o início do brutal século 20. O poeta francês Paul Valéry exprimiu esse desencanto no ensaio Cartas sobre a Crise do Espírito, de 1919. Contemplando a matança que sepultara o otimismo progressista do Ocidente, ele escreveu: “Nossa civilização agora sabe que é mortal”.
O dono da África
Mestre das táticas de guerrilha, Vorbeck foi um dos últimos alemães a se entregar.
Para o antes orgulhoso Império Alemão, a 1a Guerra Mundial não foi apenas uma derrota. Ela significou uma humilhação de proporções inimagináveis. Daqueles 4 anos de conflito, no entanto, os alemães conseguiram ao menos uma grande – e surpreendente – vitória moral.
O homem que salvou a honra germânica entre tantas derrotas foi o coronel Paul Emil von Lettow-Vorbeck. Geralmente comparado ao inglês Lawrence da Arábia, Vorbeck foi um dos grandes mestres da guerrilha no século 20. Seis meses antes do atentado em Sarajevo, que matou o arquiduque Francisco Ferdinando, ele recebeu o comando das tropas alemãs na colônia da África Oriental, que incluía os atuais Burundi, Ruanda e partes da Tanzânia. Quando a guerra estourou, o comandante alemão ficou isolado da metrópole pelos canhões da Marinha britânica.
Entregue à própria sorte, organizou uma tropa de 3 mil oficiais alemães e 11 mil askaris – uma etnia local. Durante 4 anos, Vorbeck e seus guerrilheiros, mal armados e mal alimentados, sobreviveram em selvas inóspitas, vagaram por desertos e venceram todas as batalhas que travaram – fazendo ataques de surpresa, dinamitando ferrovias e depois desaparecendo no interior da África.
Sua maior façanha ocorreu em novembro de 1914, quando 1000 soldados africanos comandados por ele destroçaram 8 mil britânicos e hindus na baía de Tanga, na Tanzânia. A fama de Vorbeck era tão grande que até seus inimigos o admiravam. Todos os oficiais ingleses que o combateram descreviam-no como um cavalheiro. O coronel só se rendeu em 1918, quando a guerra no front ocidental já havia acabado. Voltou à Alemanha como herói nacional e tentou – inutilmente – organizar uma oposição política a Adolf Hitler na década de 1930.