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Como os matemáticos preveem o avanço da Covid-19

Faz 150 anos que os epidemiologistas calculam desfechos – às vezes sombrios – para o espalhamento de doenças. O objetivo não é espalhar terror: é evitar que as previsões se concretizem. Entenda de uma vez por todas por que os negacionistas do isolamento estão falando besteira.

Texto: Maria Clara Rossini Ilustração: Lasca Studio | Design: Carlos Eduardo Hara | Edição: Bruno Vaiano

No verão de 1854, ao longo de três dias, 127 pessoas morreram de cólera em uma única rua do bairro do Soho, no centro de Londres. A doença causa diarreia, desidratação e hemorragia. Sem tratamento, até metade dos infectados sucumbe em algumas horas. As autoridades da época tinham certeza absoluta de que a cólera era transmitida pelo ar. Mas o médico John Snow (não, não é o herói de Game of Thrones) achou estranho. Com o passar dos dias, Snow notou que um único distrito concentrava mais da metade das mortes. Era de se esperar uma distribuição mais homogênea pela cidade, caso a transmissão ocorresse por via aérea. E havia outro mistério: nenhum dos 80 funcionários de uma fábrica de cerveja localizada no epicentro da epidemia adoeceu. 

Intrigado, Snow marcou pontinhos em um mapa, um para cada vítima, e notou que todas moravam em torno de uma única bomba de água (na época, não havia uma torneira em cada casa; as pessoas compartilhavam uma espécie de torneira coletiva). Ele descobriu também que o cano que levava até aquela bomba passava perto de uma fossa. Bingo: a fralda de um bebê com cólera foi descartada na fossa, e uma rachadura no cano permitiu que o cocô contaminasse a água. Por fim, a sacada de Sherlock Holmes: os empregados da cervejaria bebiam tanta cerveja que nem consumiam água. Por isso, ficaram bem. 

Foi a primeira vez que alguém deduziu como uma doença é transmitida usando raciocínio lógico, sem conhecer o micróbio responsável. A bactéria causadora da cólera, curiosamente, foi descoberta no mesmo ano, a muitos quilômetros de distância, pelo anatomista italiano Filippo Pacini. Ninguém deu bola para ele. Hoje, John Snow é considerado o pai da epidemiologia – de quebra, ganhou um bar em sua homenagem em Londres. Qualquer pessoa chamada John Snow bebe de graça por lá; basta mostrar um documento. Afinal, em caso de cólera, cerveja é a aposta mais segura (rs).  

Desde então, a matemática prestou serviços cada vez mais valiosos à saúde pública. No início do século 20, o médico Ronald Ross descobriu que a malária era transmitida por um vetor, os mosquitos do gênero Anopheles. Em 1910, ele propôs a seguinte reflexão: se colocarmos um único indivíduo com malária e um único mosquito Anopheles em uma população livre da doença, quais são as chances do mosquito picar o doente e então transmitir a doença, por meio de outra picada, para alguém saudável? 

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Esse experimento mental deu origem ao parâmetro R0 (“erre-zero”): quanta gente uma única pessoa contaminada é capaz de infectar, em média. O R0 do sarampo, por exemplo, é altíssimo: um único infectado pode deixar de 12 a 18 pessoas doentes. Com base em parâmetros como o R0, é possível construir equações que descrevem como uma epidemia se espalha (ou seja: automatizar o trabalho que John Snow realizou com um lápis e um mapa). 

Hoje, existem modelos epidemiológicos para tudo que você imaginar. Há alguns que preveem as mutações e a sazonalidade do vírus da dengue. Outros são específicos para vírus que infectam as pessoas para o resto da vida, como o HIV. Há ainda aqueles para bactérias recorrentes, causadoras de infecção alimentar. E agora há modelos específicos para a Covid-19, que geram os gráficos exibidos nos jornais todos os dias. Isso levanta muitas questões: como esses gráficos são gerados? Por que as previsões dão errado com tanta frequência? Por que cada previsão dá um resultado diferente? Vamos respondê-las. 

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(Lasca Studio/Superinteressante)
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Por trás da curva

Pense num vilarejo de cem habitantes. Um deles acaba de descer de um ônibus na rodoviária e está com um vírus. Agora, imagine que um matemático recebeu a missão de calcular como a doença vai se espalhar pela cidade a partir desse paciente zero. A primeira providência dele é dividir a população em três categorias: S, de “suscetível”, I, de “infectado”, e R, de “removido”. 

No momento, 99 habitantes estão na categoria dos suscetíveis. Só um, o recém-chegado, está na categoria dos infectados, pois já tem o vírus. Por fim, não há nenhum na categoria dos removidos (trata-se de um eufemismo, já que o paciente pode ser removido por dois motivos: porque se curou ou porque morreu. Em qualquer caso, ele é incapaz de passar a doença para frente). 

Esse modelo, o mais simples usado pelos epidemiologistas, se chama SIR – sigla de “suscetíveis, infectados e removidos”. Cada uma dessas letras equivale a uma equação. E essa equação usa os dados disponíveis no presente para gerar um gráfico que prevê um cenário futuro. No gráfico, a curva dos suscetíveis vai caindo, pois eles vão se tornando infectados. Depois, a curva dos infectados vai caindo, porque eles vão se tornando removidos.

O ritmo em que isso acontece – e o pico que a curva dos infectados alcança – depende, em parte, do comportamento das próprias pessoas. Os números inseridos nas equações são tirados do mundo real. Por exemplo: se todo mundo pratica o isolamento social, usa máscaras e lava as mãos com frequência, o número R0 diminui, pois os infectados não conseguem passar o vírus para a frente (nessa hora, o número deixa de chamar R0, pois esse “zero” se refere ao momento inicial. Passa a se chamar R efetivo). O resultado de um R efetivo menor são menos infectados.

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O SIR foi criado em 1927 e é bem simples. Por isso, raramente se aplica na prática. Hoje, ele serve de chassis para criar modelos mais complicados. Eles funcionam do mesmo jeito, mas com mais letras e curvas no gráfico. Por exemplo: e quando a pessoa está infectada, mas não transmite o vírus? Aparece o período de latência, representado pela letra L. Quanto mais dependemos de leitos de UTI e tempo de internação, mais letras entram em jogo. Existe até um modelo de seis letras, o SEIHUR (o E é de “exposição” ao vírus, H é de “hospitalização”, e o U, de “UTI”).

É fácil usar o gráfico para controlar o avanço da Covid-19. Enquanto o R efetivo for maior que 1, a curva segue subindo, já que cada infectado transmite o vírus para mais de uma pessoa. Se o R efetivo for igual a 1, a curva de novos infectados estabiliza. Fica horizontal. Mas caso o R efetivo seja menor que 1, a curva cai. Se o R for de 0,5, por exemplo, um grupo de 100 pacientes vai infectar 50. Esses 50 vão contaminar 25… O número de novos infectados vai diminuindo paulatinamente. Se esse R baixo for mantido por tempo suficiente, o vírus desaparece daquela população, e sem que todo mundo tenha sido infectado. 

Infelizmente, temos a desvantagem de não viver em um sistema hermeticamente fechado. Se chegar outra pessoa na rodoviária, o vírus é reintroduzido na população do vilarejo, o R efetivo volta a ser maior que 1. E começa tudo de novo.

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Se o número “R” fica menor que 1, o vírus desaparece da população sem que todos tenham sido infectados.

À medida que o número de suscetíveis vai se esgotando, porém, fica mais difícil causar novas infecções – já que quem pegou a doença, a princípio, está imunizado. Aí o R efetivo diminui naturalmente. Você já deve ter ouvido falar que 60% da população precisa pegar o coronavírus para gerar “imunidade de rebanho” – o momento em que há tanta gente imune que o vírus fica sem ter onde morar. Essa porcentagem é calculada com base no Teorema do Limiar, que também depende do R. A estimativa de 60%, por exemplo, se baseia na suposição de que o R do coronavírus é 2,5. O valor exato para o R0 do coronavírus ainda não está claro, e varia conforme o lugar. A média fica entre 2 e 3. Se for 2, a imunidade de rebanho é alcançada com 50% da população infectada. Se for 3, a porcentagem sobe para quase 70%. 

Em março, o modelo feito pelo Imperial College de Londres considerou 2 para o R0. Ou seja: enquanto a projeção era criticada por parte da população por mostrar um cenário catastrófico, com milhões de mortos, entre os epidemiologistas dizia-se que ela era otimista demais, pois com R0 igual a 3, a situação seria ainda pior. Sabemos, porém, que o número de mortos não alcançou a casa dos milhões. Será que os epidemiologistas é que estavam excessivamente pessimistas?  

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Não. Há dois problemas aí: o primeiro é que a Covid-19 é uma doença nova, cujos parâmetros (como o número R0) não foram determinados com precisão ainda. O segundo é que o comportamento da população muda. Se o modelo aponta um número elevado de mortes e esse número é divulgado no Jornal Nacional, há uma tendência a que as pessoas respeitem mais o isolamento. Isso faz cair o R efetivo, e junto com ele cai o número de mortes previstas. Percebe? Uma das funções do modelo é justamente conscientizar as pessoas. Se a previsão não se concretiza, é sinal de que a população fez algo certo, não de que os matemáticos erraram.

O R efetivo de São Paulo, de acordo com o dado mais recente disponível até o fechamento desta edição, está em 1,47. Do Ceará, 1,61. Do Pará, 1,9. Os dados são do dia 8 de maio. Já quando o isolamento social estava no auge, em abril, o R efetivo médio do Brasil era 1,4. Ou seja: passamos perto do número ideal para estabilizar a curva – e agora, com o afrouxamento, estamos deixando ela crescer de novo. 

Um presente, três futuros

O gráfico abaixo foi feito pelo matemático Osmar Neto para a SUPER. Ele usou o modelo SEIHUR para prever quantos casos de Covid-19 (e mortes) haverá no Estado de São Paulo* em três situações. O gráfico vai até abril de 2021.

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Um dos parâmetros é o “nível de preocupação da população” – ou seja: se as pessoas estão usando máscaras, lavando as mãos etc. As três situações consideram que 70% da população siga essas medidas rigorosamente.

Curva 1 – Mostra o que acontece se alternarmos períodos com e sem lockdown até dezembro de 2021. A cada 80 dias, a porcentagem da população que obedece ao distanciamento cai para quase zero e aí volta para 70% – o nível ideal para suprimir o vírus.

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Curva 2 – O desfecho mais grave: se a porcentagem da população de quarentena (que no fechamento desta edição estava em 52%) cair pela metade e ficar em 26% até o fim da pandemia. É quase uma volta à vida normal, com pessoas saindo para trabalhar e estudar.

Curva 3 – Esta curva mostra como seriam os casos e mortes se as pessoas saíssem aos poucos de um lockdown, ao longo de 240 dias (seis meses) – mas depois precisassem voltar para 70% para encarar uma segunda onda de vírus.

*Os gráficos levam em conta subnotificações de casos e mortes. Ou seja: a curvas começam em 400 mil infectados, que era o provável número real em São Paulo na data do fechamento – oficialmente, o Estado contava menos de 60 mil casos.

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O futuro

O deputado Osmar Terra, aliado de Bolsonaro, é comprovadamente o maior disseminador de fake news do Congresso: postou 38 notícias falsas sobre a pandemia no Twitter entre fevereiro e abril. Ele usa gráficos para defender que a quarentena aumenta a disseminação da Covid-19, e que outros países só viram o número de casos cair porque já atingiram a imunidade de rebanho. “É tão bizarro que eu nem sei como escrever isso de forma elegante. Não tem fundamento nenhum”, diz outro Osmar, o Osmar Neto, matemático que trabalha com modelagem da Covid-19 no Brasil.

Vamos avaliar essa hipótese esdrúxula. Se você chegou até aqui no texto, sabe que existem duas opções: ou boa parte dos países já ultrapassou a temida curva e conseguiu atingir a imunidade de rebanho – com 60% da população infectada –, ou o vírus está apenas suprimido, e pode ser reintroduzido se a quarentena afrouxar. Acontece que a hipótese da imunização de rebanho só poderia estar certa se o número de mortes estivesse muito mais alto.

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(Lasca Studio/Superinteressante)

Mesmo que um país tivesse um sistema de saúde impecável, médicos à vontade e leitos infinitos, a letalidade da Covid-19 ainda ficaria entre 1% e 0,5%. Ou seja: no Brasil, se 60% da população fosse infectada, teríamos pela frente no mínimo 600 mil mortes. Os EUA, 900 mil mortes. A Itália, 180 mil. Como a curva na Itália já está caindo, e eles têm 30 mil mortos, é evidente que a queda não pode ser atribuída à imunidade de rebanho. O que salvou o dia foi mesmo a quarentena. E o único jeito de sair da quarentena em segurança é testar boa parte da população, para isolar todo mundo que está com o vírus – mesmo os assintomáticos. 

Com um detalhe: no caso do coronavírus, ninguém sabe se o sobrevivente fica imunizado de vez ou pode contrair a doença de novo. Se esse for o caso, todas as curvas mudariam, e o cenário para o futuro ficaria ainda mais incerto do que já é.

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Assustador? Os gráficos sempre serão mais catastróficos que a realidade. Epidemiologistas como Roberto Kraenkel, da Unesp, estão acostumados: “A gente chama isso de paradoxo do sucesso. Os epidemiologistas mostram o caos caso não sejam tomadas medidas de prevenção, mas aí elas são tomadas, e o resultado não parece tão ruim. Mas ele só aconteceu porque o modelo mostrou os cenários”. Para uma previsão cumprir seu papel, o ideal é que ela não se concretize. Os matemáticos são videntes que torcem para errar.

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Agradecimentos: Marcos Amaku, físico e professor de epidemiologia da USP

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