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A nova cara do dinheiro

Texto: A. J. Oliveira | Design: Juliana Krauss   


Há quanto tempo você não passa num caixa eletrônico? Sim: notas de papel já são o novo cheque. Cada vez menos gente usa. Já existe até um país que decidiu acabar com elas: a Suécia. A partir de março de 2023, notas e moedas de coroa sueca vão sair de circulação.

Não deixa de ser uma ironia. Exatos 362 anos depois de se tornar o primeiro país europeu a implementar cédulas, em 1661, a Suécia será o primeiro do mundo a eliminá-las. Todo o sistema monetário e as transações financeiras serão digitais.

Segundo o relatório World Payments Report 2018, entre 2015 e 2016, o volume de transações sem dinheiro vivo no mundo cresceu 10%. Não é pouco para um ano. Até 2021, eles estimam, a taxa de crescimento anual estará em 12,7%.

No Brasil, o ritmo é ainda mais acelerado. Uma projeção da Abecs, a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços, prevê um crescimento de 16% nos pagamentos feitos com cartões para 2019. Isso é a ponta do iceberg de uma indústria que passou por profundas transformações no País durante a última década.

Nota is the new cheque
Nota is the new cheque (Ilustração: Pevê Azevedo/ Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

Livre mercado

Entre 2008 e 2016, a quantidade de transações com cheque caiu 55%, enquanto que a com cartões aumentou 171%. Até 2010, havia um duopólio formado pela Visa e pela Mastercard. Juntas, elas detinham mais de 90% dos cartões de débito e 80% dos de crédito. E, ainda por cima, operavam em contrato de exclusividade, cada qual com sua própria “adquirente” (a empresa dona da maquininha de cartão). Uma era dona da Visanet. A outra, da Redecard.

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Para evitar que cada comerciante precisasse ter mais de uma maquininha, o governo proibiu os tais contratos de exclusividade. Isso ajudou na proliferação de empresas de maquininha. O número subiu para pouco mais de dez em 2016, com a inclusão de nomes como PagSeguro, GetNet (Santander), Stone, iZettle e Global Payments. Dados da Abecs mostram que o mercado fechou 2017 com mais de 5 milhões delas espalhadas pelo País. Modelos de negócio brotaram a rodo, incluindo venda ou aluguel de maquininhas. Talvez o maior símbolo dessa onda seja a “Moderninha”, uma máquina simples da PagSeguro, largamente adotada por ambulantes. De acordo com o Banco Central, agora já existem mais de cem empresas de maquininhas.

E olha que os dados provavelmente estão defasados. Um levantamento da revista Exame concluiu que só as cinco maiores adquirentes têm 8 milhões de maquininhas. Só isso já dá 26 leitoras de cartão para cada mil brasileiros. É a mesma proporção da Suécia. A líder do ranking é a Austrália, com 39 maquininhas para cada mil habitantes.

Só as cinco grandes fornecem uma leitora de cartão para cada 18 adultos

Outra forma de ver o mesmo dado: a população adulta brasileira é de 151 milhões. Temos, então, que só as cinco grandes fornecem uma leitora de cartão para cada 18 adultos. Um assombro.

Bancos digitais

Uma revolução financeira não menos marcante nos últimos anos foi a das fintechs, que chegaram meio que do nada para concorrer com os grandes bancos. O “fin”, para quem não sabe, vem de “finanças”, o “tech”, de tecnologia, claro. Não significa que elas tenham mais “tecnologia” que qualquer banco tradicional. O “tech” entra ali basicamente porque todos os serviços desses bancos são digitais. Eles não têm agências. Com menos custos operacionais, cobram menos taxas. As fintechs também tendem a ter menos vícios burocráticos. É mais simples tirar um cartão de crédito sem anuidade numa delas do que em bancos convencionais, por exemplo.   

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O representante mais famoso dessa linhagem por aqui é o Nubank. Desde que lançou seu cartão de crédito (sem anuidade), em 2014, o banco amealhou quase 9 milhões de clientes – metade do Santander, o quarto maior banco do País, com 17,5 milhões (o Itaú lidera a lista, com 59,8 milhões de clientes).

O Nubank amealhou quase 9 milhões de clientes – metade do Santander, o quarto maior banco do País, com 17,5 milhões.

Os grandes bancos acabaram se mexendo,  e criaram suas próprias fintechs – ou seja, versões deles mesmos com menos tarifas e menos burocracia. É o caso do Next, do Bradesco, que fechou 2018 com 550 mil clientes, um ano após sua criação.

A concorrência vai aumentar mais ainda. De olho no crescimento desse nicho no Brasil, o alemão N26, maior fintech da Europa, anunciou que vai começar a operar por aqui até o final deste ano. Já o Itaú Unibanco, maior banco privado do País, deu um passo além: está lançando o iti (com minúscula mesmo). Trata-se de  um aplicativo que permite a pessoas e empresas fazerem pagamentos, transferências e cobranças sem precisar ter conta em banco.

Não são só instituições financeiras que estão nessa, diga-se. Empresas de varejo estão mudando um pouco aquela velha prática de oferecer a seus clientes cartões em parceria com bancos tradicionais. Agora, elas também estão criando seus próprios bancos digitais.

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O Brasil já tem pelo menos tantas maquininhas de cartão para cada mil habitantes quanto a Suécia. Mesmo assim, os dias de glória do plástico estão contados.Ou quase isso. O nome desses bancos de loja (ou chame lá como você quiser) é “conta de pagamentos”. Elas oferecem serviços básicos, mais simples que os dos bancos de verdade: transferências gratuitas entre os clientes, recebimento de TED, cartões de débito pré-pagos e, como o nome indica, pagamento de contas. Já existem mais de 150 no mercado. Riachuelo, Natura, Casas Bahia, Pontofrio, Americanas e Submarino, entre outras marcas, criaram os seus “bancos”.

A participação dos cinco maiores bancos caiu de 72,3% do mercado em 2014 para 64,5% em 2018.

A ideia é cooptar os brasileiros que não têm conta em banco – e transformá-los em clientes mais habituais das lojas físicas e e-commerces. A última pesquisa do IBGE sobre bancarização é antiga, de 2013. Constataram que 60 milhões de brasileiros não tinham conta em banco. Com tudo o que aconteceu de lá para cá, esse número deve estar bem menor hoje. Nisso, os bancos tradicionais perdem terreno – a participação dos cinco maiores caiu de 72,3% do mercado em 2014 para 64,5%em 2018.. E é isso.

Com cada vez mais bancos digitais e maquininhas se reproduzindo feito coelhos, a ideia de banir o dinheiro de papel deve chegar logo ao Brasil. Só tem um detalhe: talvez os cartões estejam para acabar também.

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Transferência pelo Whats

Sim. A tendência é a desmaterialização dos cartões. “As transações por aproximação, com wearables – como as pulseiras, relógios e celulares –, serão cada vez mais frequentes”, diz Percival Jatobá, executivo da Visa do Brasil. “Temos certeza de que vamos colher bons frutos de seus benefícios, principalmente quando isso solidificar em nichos como transporte público”, diz.

A primeira experiência no Brasil começou em abril no metrô do Rio, mas o departamento de soluções para transportes da Visa já implantou dez projetos na Europa e agora leva a ideia a outros continentes.

Essa tecnologia é o cerne do sistema das ewallets, ou carteiras digitais. A única diferença em relação a um cartão comum é que, em vez de o sistema de pagamento estar acoplado a uma peça de plástico, ele fica no smartphone ou no smart-relógio, ou seja lá onde for – basta aproximar sua traquitana da maquininha para pagar. Foram 41,8 bilhões de pagamentos via ewallets em 2016 no mundo, o equivalente a 8,6% de todas as transações sem dinheiro vivo. Google, Apple, Amazon, Alibaba e Tencent detêm 71% desse mercado.

Outro método que tem despontado é o das carteiras digitais peer-to-peer, ou seja, em que uma pessoa paga diretamente à outra gerando QR codes, por exemplo. Você nem precisa ter conta bancária para pagar assim, é só pôr crédito na plataforma, como se fosse um celular pré-pago.

O grande exemplo disso está na China: 70% da população faz compras e transfere dinheiro dessa forma. É comum que barracas de rua vendam com o método e até garçons vestem os códigos nos uniformes para receber gorjetas. Em 2013, a chinesa Alipay, do grupo Alibaba, ultrapassou o PayPal e se tornou a maior plataforma de pagamentos móveis do mundo, com 520 milhões de usuários.

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Na China, é comum ver garçons que vestem QR Codes nos uniformes para receber gorjetas.

Ainda mais gigante é o WeChat Pay, atrelado ao aplicativo de mensagens de mesmo nome: 938 milhões de usuários. Antes do advento desses serviços, a maior parte do chineses usavam dinheiro vivo mesmo. “Começaram a perceber que nem todo mundo tinha cartão de crédito no bolso, mas quase todos tinham celular”, diz Túlio Gambogi, executivo da Adyen, uma multinacional de pagamentos digitais.

Na Suécia, um aplicativo que funciona dessa forma pegou tanto que acabou se tornando o meio de pagamento favorito de 50% da população – e tem tudo para chegar aos 100%, ainda mais agora que o país vai abolir o dinheiro de papel. O nome do app é Swish, e ficou tão popular, que virou verbo entre os suecos: é comum por lá alguém dizer que vai “swishar” dinheiro.

70% dos chineses usam o celular como cartão de crédito – e fazem seus pagamentos via WeChat, o WhatsApp deles. É questão de tempo para que o resto do mundo entre na mesma toada.
70% dos chineses usam o celular como cartão de crédito – e fazem seus pagamentos via WeChat, o WhatsApp deles. É questão de tempo para que o resto do mundo entre na mesma toada. (Ilustração: Pevê Azevedo/ Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

O Telegram também aceita transferências monetárias e, recentemente, o WhatsApp entrou nesse mercado – só na Índia, por enquanto. Mas os planos de dominação financeira do Facebook, dono do Whats, vão mais longe: a empresa está desenvolvendo uma moeda própria.

Mark Zuckerberg anunciou-a ao mundo no final de junho, mas ela só vai estrear de fato em 2020. É a libra (qualquer semelhança com o nome da moeda britânica em português é coincidência; em inglês, a moeda com a cara da rainha se chama “pound”, você sabe). Bom, a libra do Zuck nasceu com uma aspiração clara: tornar-se uma moeda universal que qualquer um possa usar do jeito mais simples possível. Com isso, o Facebook mira nos 1,7 bilhão de adultos que, segundo o Banco Mundial, não têm conta em banco. Eles não têm cartão de crédito, mas, como no caso chinês, boa parte possui celular. Em tese, bastará uma conta na rede social para receber e transferir a moeda do Facebook diretamente pelo WhatsApp, por exemplo.

A moeda do Facebook mira nos 1,7 bilhão de adultos sem conta em banco.

Para uma moeda ter valor, é preciso que você possa comprar coisas com ela. Óbvio. Então não adianta Mark Zuckerberg, ou quem quer que seja, dizer que “criou uma moeda”. O Bitcoin oscila tanto porque ninguém sabe se a coisa vai pegar – se uma construtora vai aceitar Bitcoins em troca de um apartamento, ou o McDonald’s, em troca de Big Mac. O real tem valor porque todo o comércio brasileiro é obrigado por lei a aceitá-lo – seja na forma de notas coloridas, seja na de código binário. Vale o mesmo para todas as moedas do planeta. Quem as garante é o braço da lei: não aceite a moeda do país como pagamento, e você terá problemas com a Justiça.

E a moeda Facebook? Bom, Zuckerberg vai tentar à moda antiga. Até o início do século 20, toda moeda que se prezasse deveria ter lastro em ouro – ou seja, você podia trocar uma nota de dólar ou de libra por uma certa quantidade de ouro caso solicitasse ao seu banco. Era isso que dava “valor” à moeda. Com o tempo, todos os países do mundo abandonaram seus lastros em ouro – posto que era inútil. A lei já bastava. Zuckerberg, claro, não tem um exército nem um território do planeta para tornar o uso da sua libra obrigatório. Então a libra dele precisa de lastro. Em ouro? Não. Em dólar mesmo, oras.    

Assim: apesar de ser um projeto do Facebook, a criptomoeda não será gerida por Zuckerberg. Duas entidades foram criadas para administrá-la: Calibra e Libra Association. A primeira é uma subsidiária que vai operar as transações e oferecer a carteira digital, e a segunda é uma fundação sem fins lucrativos incumbida de cuidar do lastro da moeda. Com sede em Genebra, na Suíça, ela tem outros 26 membros-fundadores além do Facebook.

O objetivo de Zuckerberg é que US$ 1 bilhão guardados na Suíça sirvam de lastro para a moeda do Facebook

Grandes empresas do mercado financeiro, de tecnologia e fundos de capital de risco fazem parte desse clube: Visa, Mastercard, PayPal, Uber, Spotify e eBay entraram com, no mínimo, US$ 10 milhões para compor o tal lastro da moeda – o objetivo é juntar US$ 1 bilhão até 2020. Cada libra, em tese, poderá ser convertida em dólares. Pronto. Isso dá, sim, valor real à moeda dos caras.

Eis o mais novo capítulo da história do dinheiro. O que não vai mudar nunca é uma coisa: sempre haverá algo fazendo o papel de dinheiro. Não importa que essa coisa esteja na forma de ouro, de sal, de papel colorido com bichos pintados ou de mensagens de WhatsApp. E, para garantir que você terá muito dela com você, a tática segue a mesma: use amarelo no Ano-Novo. 😉

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