1957. A Guerra Fria esquenta, e a URSS corre para produzir bombas atômicas. Até que um acidente, em uma usina que fabricava plutônio, provoca uma explosão monumental. Ela contamina uma área gigantesca – mas é mantida em segredo por três décadas.
Reportagem: Fred Pearce, da “New Scientist” | Tradução: Bruno Garattoni | Ilustração: Weberson Santiago | Design: Carol Malavolta
A vila de Satlykovo não existe mais. A rua principal dessa cidadezinha, 1.700 km a leste de Moscou, está coberta por mato até a altura dos joelhos, e todas as construções foram demolidas. Já a natureza se desenvolve com viço. Os bosques perto dali tem alces e javalis. No lago, vivem carpas radioativas. Numa manhã, 62 anos atrás, soldados obrigaram todos os moradores a ir embora. “O gado foi morto e enterrado, e as pessoas não podiam nem levar as roupas do corpo”, diz Islam Bagautdinov, o guia que me trouxe até aqui, dirigindo o carro e passando por várias barreiras do Exército russo.
Ninguém deu qualquer explicação naquele dia de 1957. Os soldados não disseram que tinha acontecido uma explosão, numa fábrica a alguns quilômetros dali. Nem que essa explosão havia lançado poeira radioativa na atmosfera, formando uma nuvem mortal que cobriu Satlykovo e as matas em volta. A mera existência do Complexo Mayak, que produzia plutônio para bombas atômicas, era um segredo militar.
Ao longo dos 600 dias seguintes, milhares de pessoas de Satlykovo e outras 22 vilas próximas foram evacuadas, 20 mil hectares de plantações foram condenados, e uma área de exclusão permanente foi criada. Tirando algumas pessoas na CIA [a agência de inteligência dos EUA], ninguém de fora da União Soviética ficou sabendo o que tinha acontecido, num segredo mantido por décadas. Durante todo esse período, cientistas soviéticos monitoraram a saúde dos moradores e seus filhos, coletando dados de forma sigilosa. Em novembro de 1976, o biólogo e dissidente soviético Zhores Medvedev revelou o caso ao Ocidente. Mas a população da URSS só tomou conhecimento do acidente durante a era da Glasnost (“abertura”), no final dos anos 1980. Só aí as pessoas que haviam sido expulsas de suas casas, e agora viviam espalhadas pela União Soviética, souberam que haviam sido expostas à radiação.
Eu sou o primeiro jornalista ocidental a entrar na Zona de Exclusão de Mayak, uma área de 100 km2 cercada por arame farpado – e também conhecida como Reserva Estadual dos Urais [a área fica a leste dos Montes Urais, que atravessam a Rússia]. A radioatividade do ar já decaiu para níveis baixos, mas o solo, a água e a vegetação continuam contaminados. É proibido morar aqui, e provavelmente continuará a ser durante mais cem anos, no mínimo. O Complexo Mayak continua em operação, hoje reprocessando lixo nuclear.
Com a ausência de moradores na região, a natureza prosperou, como aconteceu na zona de exclusão de Chernobyl, na Ucrânia. A reserva onde estou abriga mais de 200 espécies de pássaros e 455 de plantas – incluindo uma orquídea que só existe aqui. “A biodiversidade é maior do que em outras áreas [da Rússia]”, conta Oleg Tarasov, biólogo-chefe da reserva. “Os animais percebem que não serão caçados, então vêm para cá e se reproduzem.” Mas o lugar não é um paraíso para todos os bichos. “Mamíferos pequenos, como toupeiras e ratazanas, ficam com o corpo mais perto do chão e recebem mais radiação. Detectamos anormalidades genéticas neles”, diz Tarasov.
A explosão de 1957 foi apenas um episódio de uma série de grandes vazamentos radioativos em Mayak [veja infográfico abaixo]. E o pior de todos eles não foi nem sequer acidental. Nos primeiros anos após a inauguração do Complexo, em 1949, os soviéticos despejavam água contaminada pelos reatores no Rio Techa, que se tornou o mais poluído do mundo. “O lixo [nuclear] simplesmente era jogado. Nós estávamos numa corrida para fabricar bombas. Não tínhamos tempo de fazer diferente”, diz Sergey Romanov, do Instituto de Biofísica de Ozersk, uma cidade militar fechada a alguns quilômetros de Mayak. Estimativas oficiais calculam que, entre 1949 e 1956, o Rio Techa tenha recebido 100 petabequeréis de radiação [Nota do tradutor: além da água jogada no Techa, também houve descarte de lixo nuclear no Lago Karachay e uma explosão que lançou partículas radioativas na atmosfera, totalizando 5.300 petabequeréis – um terço do total liberado em Chernobyl].
Os seis reatores geravam lixo nuclear contendo césio-137 e estrôncio-90. E parte dele era jogada diretamente no rio.
O Complexo Mayak tinha seis reatores, e a água usada para resfriá-los era lançada diretamente no rio, que ficou fortemente contaminado por estrôncio-90 e césio-137, entre outros materiais radioativos. Eles se espalharam por todos os 243 km do Techa e sua bacia hidrográfica. Os moradores da região nadavam, pescavam e bebiam a água do rio, sem saber de nada. Em 1951, o governo soviético proibiu essas práticas, mas não deu qualquer explicação, e a maioria das pessoas ignorou as novas regras. Em 1956, as margens do rio foram fechadas com cercas. E, aos poucos, a URSS evacuou 10 mil pessoas, que viviam em 19 cidadezinhas a até 100 km da usina. As casas foram demolidas, para evitar que os moradores voltassem, e os vilarejos apagados dos mapas oficiais. Esse mesmo procedimento seria usado após a explosão de 1957.