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Sociedade

A real sobre o SUS

O maior sistema público de saúde do mundo é também o mais incompreendido: entenda as virtudes, os problemas e os caminhos para melhorar o SUS.

Texto: Maria Clara Rossini | Design: Carlos Eduardo Hara | Ilustração: Victor Beuren | Edição: Bruno Vaiano

Texto publicado originalmente em novembro de 2020

A

bertura dos Jogos Olímpicos de Londres, 2012. Os maiores orgulhos do Reino Unido estão representados no gramado. Mary Poppins, Harry Potter, James Bond. Até que, em uma das sequências do show, centenas de enfermeiras começam a dançar enquanto cuidam de crianças em camas de hospital. O significado da cena permanece incerto até que os leitos se alinham no centro do estádio e formam três letras imensas: NHS.

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É a sigla National Health Service, o sistema de saúde público do Reino Unido. Todos os cidadãos têm direito a atendimento gratuito do primeiro ao último instante de vida. Não é à toa que os britânicos se orgulham tanto do seu SUS: eles foram os primeiros a ter um. Após a 2ª Guerra Mundial, o economista William Beveridge redigiu um relatório com propostas para a reconstrução do país – entre elas, de forma inédita no Ocidente, estava o direito à saúde.

O NHS saiu do papel em 1948. Ao longo das décadas seguintes, a ideia de Beveridge desembarcou em outros países, como Canadá, Suécia e, em 1988, o Brasil. O SUS é o maior sistema de saúde universal do planeta. O único do tipo num país com mais de 200 milhões de habitantes. Mas sua reputação não o pôs na abertura das Olimpíadas do Rio, em 2016: no nosso imaginário, a saúde pública permanece sinônimo de filas, prontos-socorros lotados e histórias tristes. Afinal, o SUS é tão ruim assim? Como a saúde brasileira realmente se compara à de outros países? E como ela pode melhorar?

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A origem do SUS

Até os anos 1920, o brasileiro escolhia entre pagar um médico ou ficar sem. A única alternativa eram instituições filantrópicas, como as Santas Casas. O Estado se responsabilizava pelo saneamento e o controle de epidemias, como febre amarela e varíola, mas o cuidado individual ficava a cargo de cada cidadão.

Isso começou a mudar em 1923, com a Lei Eloy Chaves. Ela criou as caixas de aposentadoria e pensões (CAPs) para empresas do setor ferroviário – na época, elas empregavam muita gente. Os trabalhadores que contribuíssem para esse fundo ganhavam, além do direito de se aposentar,  alguma assistência médica. Posteriormente, cada categoria profissional passou a ter um sistema equivalente: comerciários, industriários, bancários… Todos foram unificados em 1966 com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).

Clique na imagem para ampliar.
Clique na imagem para ampliar. (Victor Beuren/Superinteressante)

Além de financiar a assistência médica a trabalhadores, o INPS precisava dar conta de aposentados, viúvas e órfãos. Dava trabalho atuar nas duas frentes – assim, em 1977, a saúde ganhou um órgão próprio: o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), que cuidava de hospitais e postos. Enquanto isso, o Ministério da Saúde, criado em 1953, se encarregava de ações mais amplas, como campanhas de vacinação. Quem não tinha carteira assinada (ou seja, que não contribuía com o INPS) era considerado indigente. Não tinha direito à saúde.

Com o enfraquecimento da Ditadura nos anos 1980, a sociedade civil cobrou uma reforma: o acesso à saúde não deveria ser limitado aos trabalhadores formais. Além disso, ganhou força a ideia de um sistema único que deve evitar que as pessoas fiquem doentes, e não só tentar curar as que já se deram mal. O SUS nasceu com a Constituição de 1988 – a primeira a definir a saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado. O objetivo era que ele fosse financiado pela União, Estados e municípios por meio de impostos, e que incorporasse o conceito da integralidade. Vamos entendê-lo.

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As virtudes do SUS

Você usa o SUS o tempo todo. E não estamos falando (só) das camisinhas de posto. Seus analgésicos foram aprovados pela Anvisa, que é do SUS. Você toma vacinas que nascem na Fiocruz – vinculada ao SUS – e são distribuídas pelo Programa Nacional de Imunização (PNI). Do SUS. Pessoas com HIV levam uma vida normal  sem pagar um centavo fazendo o tratamento por meio do SUS. O SAMU usa desde helicópteros para fugir do trânsito de São Paulo até “ambulanchas” para as populações ribeirinhas do Pará.

O SAMU de São Paulo (SP) recebe 5 mil ligações diárias.
O SAMU de São Paulo (SP) recebe 5 mil ligações diárias. (Victor Beuren/Superinteressante)

O segredo para manter uma infraestrutura tão abrangente está no Art. 198 da Constituição: prioridade para as ações preventivas, sem prejuízo aos serviços assistenciais. “É uma escolha de palavras inteligente. Diz que é necessário ter o atendimento hospitalar – mas que a prioridade deve ser a prevenção”, diz Jairnilson Paim, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Prevenir sai sempre mais barato do que remediar. Por exemplo: em outubro de 2020, a Anvisa aprovou um decreto que obriga embalagens de comida a apresentar alertas de alta concentração de gordura, sódio e açúcar caso excedam certos limites. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Cambridge mostrou uma redução de 20% na escolha de produtos que apresentam avisos do tipo. Se uma imagem vier junto – como nos maços de cigarro –, 40%. Um modelo matemático baseado em avisos em embalagens do México estimou uma economia de US$ 1,8 bilhão em gastos públicos com obesidade após cinco anos.

Esses dados ilustram uma das vantagens de se ter um sistema integrado: fica mais fácil investir o dinheiro de maneiras inteligentes, que façam sobrar caixa no futuro. Houve uma redução de 27% nas internações e 8% em óbitos decorrentes de diabetes e hipertensão desde que os medicamentos para o controle dessas doenças passaram a ser oferecidos gratuitamente pelo Programa Farmácia Popular, também do SUS. O jeito mais fácil de frear a superlotação dos hospitais é evitar que as pessoas precisem deles.

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As internações por hipertensão e diabetes caíram 27% após a distribuição gratuita de remédios.
As internações por hipertensão e diabetes caíram 27% após a distribuição gratuita de remédios. (Victor Beuren/Superinteressante)

Algo entre 80% e 90% das necessidades de saúde de um indivíduo ao longo da vida podem ser resolvidas com a atenção primária, ofertada nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e centros de Saúde da Família. Idealmente, essa infraestrutura deve contar com profissionais que acompanham a população de perto e conhecem os moradores do bairro pelo nome. Essas equipes fornecem recomendações nutricionais,  ajudam com o planejamento familiar e o controle de doenças crônicas, além de contarem com ginecologistas, pediatras e clínicos gerais.

Isso não significa que serviços de alta complexidade sejam ignorados. O Brasil possui o maior sistema público de doação e transplante de órgãos. O mesmo vale para os bancos de leite materno e de sangue (antes de 1988, os cidadãos podiam vender sangue, e muitas bolsas não eram examinadas: era comum sair do hospital com HIV após receber uma transfusão contaminada).

O SUS também existe para evitar aquilo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) chama de “gastos catastróficos em saúde”: tratamentos caríssimos que ao mesmo tempo salvam sua vida e acabam com ela. “Qualquer um está sujeito a uma doença como um câncer. Sem uma cobertura por plano de saúde, você vende sua casa, seu carro, limpa a sua poupança e ainda assim não tem dinheiro para o tratamento”, diz Fernando Aith, diretor do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP. “Esse é um dos principais motivos pelos quais a OMS preconiza os sistemas universais.”

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Os problemas do SUS

O SUS é bom em oferecer serviços básicos e serviços bem complexos (doação de órgãos, quimioterapia, resgate de vítimas de acidentes graves, vacinação, bancos de sangue e leite). Mas deixa a desejar no meio-termo.

“O gargalo do SUS está na média complexidade, como cirurgias eletivas, exames e consultas especializadas”, diz Aquilas Mendes, economista da Faculdade de Saúde Pública da USP. Segundo uma pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em 2018, marcar uma consulta com um profissional como um cardiologista ou neurologista é a tarefa mais demorada para o paciente da rede pública.

95% dos transplantes realizados no Brasil são pelo SUS.
95% dos transplantes realizados no Brasil são pelo SUS. (Victor Beuren/Superinteressante)

Muitos profissionais de saúde que trabalham para o SUS são servidores concursados que atendem nos postos de saúde e hospitais públicos. Mas também há hospitais e clínicas da rede privada que fazem convênio com o SUS. Os funcionários dessas instituições recebem um valor tabelado por cada procedimento realizado em nome da rede pública.

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Um médico clínico, por exemplo, recebe em média um honorário de R$ 10 por consulta pelo SUS – o valor é da tabela vigente. Um plano de saúde privado paga, em média, R$ 80. Uma consulta particular, no mínimo o dobro disso. O resultado são três filas: uma enorme e lenta para pacientes do SUS, outra relativamente menor para pacientes de planos privados, e uma VIP para consultas particulares.

Na época do Inamps, o setor público já pagava o setor privado por procedimento. Por exemplo: se uma mulher entrasse em trabalho de parto e fosse para um hospital particular conveniado com o Estado, ela seria atendida. O problema é que a cesárea pagava mais que o parto normal, o que levou a uma explosão no número de cirurgias desnecessárias – e quase quebrou a previdência. Hoje, os hospitais conveniados precisam de Autorizações de Internação Hospitalar (AIHs) para evitar procedimentos que abusam dos cofres públicos.

Esses dois problemas – falta de especialistas concursados e remuneração por intervenção – afetam o SUS até hoje. “Em outros países que optaram pelo sistema universal, o profissional conveniado ganha por número de clientes, e não por intervenção”, explica Jairnilson Paim. Isso incentiva o médico a adotar uma postura mais preventiva e menos curativa: dá mais dinheiro acompanhar dez pacientes crônicos de hipertensão do que tentar salvar um desses pacientes depois que ele tiver um AVC.

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O Brasil teve uma redução de 43% no número de fumantes entre 1989 e 2013.
O Brasil teve uma redução de 43% no número de fumantes entre 1989 e 2013. (Victor Beuren/Superinteressante)

Mesmo que o SUS aumentasse honorários e contratações, é importante entender que todo sistema público tem um limite – mesmo o NHS, que emprega 1,3 milhão de funcionários. A oferta de médicos sempre será menor que a demanda da população. No Reino Unido, é comum esperar quatro meses por uma consulta com um especialista. Um jeito de tornar a espera mais tolerável é transparência nas filas: o NHS informa com antecedência a data e hora exatas do atendimento. No Brasil, quando o médico da UBS julga necessário encaminhar o paciente para um especialista, nem sempre há agenda para marcar a consulta no ato: o SUS é que toma a iniciativa de ligar para você quando aparece um buraco na agenda. Se houver.

Resolver problemas como esses exige articulação política, mas também verba – que sempre foi insuficiente. “Um anexo à Constituição diz que 30% do orçamento da seguridade social deveria ser destinado à saúde. Um ano depois da publicação desse anexo, o orçamento aprovado não foi nem 5%. O SUS convive com o subfinanciamento desde o início. Faz milagre com o pouco que tem”, diz Aquilas Mendes,  economista e professor da Faculdade de Saúde pública da USP.

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As alternativas

Existem exemplos de bons sistemas de saúde mais parecidos com o Inamps do que com o SUS – em que só os trabalhadores CLT têm direito a atendimento. Alemanha, Suíça e França são assim.

Dá certo por dois motivos. O primeiro é que esses países possuem programas alternativos para não deixar os desempregados na sarjeta. O segundo é que esses programas dificilmente precisam ser acionados. Esses lugares têm taxas de desemprego em média mais baixas que as nossas, e não sofrem tanto com o trabalho informal: em 2019, apenas 63% dos trabalhadores brasileiros contribuíram com o INSS, menor porcentagem da série histórica.

Além do modelo NHS e do modelo previdenciário, existe o sistema americano, chamado de residual. Todos os serviços são fornecidos pelo setor privado, e o Estado concede planos de saúde gratuitos aos mais pobres e aos idosos (chamados Medicaid e Medicare). Há uma camada da população que não é pobre o suficiente para se beneficiar dos programas nem rica o bastante para contratar um plano privado: são 33,2 milhões de americanos, que não possuem cobertura de saúde.

Clique na imagem para ampliar.
Clique na imagem para ampliar. (Maria Clara Rossini/Carlos Eduardo Hara/Superinteressante)

Mesmo assim, os EUA gastam mais dinheiro público em saúde do que o Brasil: 8,5% do PIB em 2017, contra nossos 3,9%. Além do Medicare e do Medicaid, o dinheiro vai para agências como a FDA – a Anvisa deles – e o CDC, que cuida de problemas coletivos, como a reação a epidemias.

O Brasil, assolado pelo emprego informal e a desigualdade, não conseguiria atender sua população satisfatoriamente com um sistema previdenciário (sabemos porque já tentamos). Muito menos com uma ausência de sistema. A pandemia escancarou a importância do SUS – que lentamente passa a ser reconhecido pela imprensa e a população.

Ainda vamos conviver com a saúde privada por um bom tempo. O SUS, como é hoje, não seria capaz de atender todo mundo que migrasse dos convênios. Mas não se engane: por trás de cada corredor de hospital lotado, há outras faces da saúde pública que não viram notícia justamente porque funcionam sem percalços. O SUS está nos bastidores da democracia – e explicar tudo que ocorre atrás do palco é uma boa forma de tornar nossa saúde pública cada vez melhor.

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