Desconto de até 39% OFF na assinatura digital

A terceira bomba atômica

As bombas que arrasaram Hiroshima e Nagasaki fizeram o Japão se render. Mas os EUA já tinham pronta mais uma, para jogar em Tóquio. Ela não chegou a ser usada e foi mandada de volta para testes em laboratório – onde causaria dois acidentes fatais.

Texto Bruno Garattoni
Ilustração Gustavo Magalhães
Design Carlos Eduardo Hara

“Algumas pessoas riram, algumas pessoas choraram, a maioria ficou em silêncio. Eu me lembrei de uma passagem das escrituras hindus, o Bhagavad Gita. Vishnu está tentando convencer o Príncipe de que ele deveria assumir suas funções. Para impressioná-lo, assume sua forma com vários braços e diz: ‘Agora eu me tornei a Morte, a destruidora de mundos’. Acho que todos nós pensamos isso, de uma forma ou de outra.”

Foi com essas palavras, e semblante pesado e melancólico, que o físico J. Robert Oppenheimer descreveu, 20  anos depois, o momento da explosão da primeira bomba atômica: o teste Trinity, que aconteceu às 5h29 da manhã de 16 de julho de 1945. Nele, a equipe liderada por Oppenheimer acionou uma bomba contendo 6,2 kg de plutônio – material que eles haviam aprendido a produzir irradiando urânio num acelerador de partículas.

Dentro da bomba havia uma série de explosivos convencionais, cuja detonação comprimiu a esfera de plutônio. Com isso, ele entrou em estado “supercrítico”, iniciando uma reação em cadeia que liberou energia equivalente a 22 kilotons (22 mil toneladas de dinamite) no deserto do Novo México. Tudo correu como previsto – e, menos de um mês depois, no dia 6 de agosto, os americanos jogaram a primeira bomba atômica sobre o Japão, em Hiroshima. Três dias mais tarde, veio a segunda, em Nagasaki.

O resultado disso foi tão apavorante, com mortes numa escala tão gigantesca e de formas tão novas e sinistras  (dezenas de milhares de pessoas foram envenenadas pela radiação, queimadas vivas pela onda de calor ou simplesmente vaporizadas pela onda de choque), que o Japão se rendeu uma semana mais tarde, no dia 15 de agosto. Mas por muito pouco a coisa não foi além: na véspera, dia 14, o presidente americano Harry Truman informou o embaixador britânico que os EUA iriam lançar uma terceira bomba atômica, sobre Tóquio.

Continua após a publicidade

Os militares se referiam a ela como “Rufus”. Era só um apelido, como o “Little Boy” da bomba de Hiroshima e o “Fat Man” do artefato lançado em Nagasaki. A bomba Rufus era essencialmente idêntica à Trinity e à Fat Man, com um núcleo de plutônio de 6 kg (a Little Boy era diferente, pois usava urânio e por isso era um pouco menos potente, com “apenas” 15 kilotons).

Com a rendição incondicional do Japão, a Rufus foi desmontada e seu núcleo de plutônio foi mandado de volta para o Los Alamos National Laboratory, o enorme complexo de pesquisas em Washington DC que havia desenvolvido a bomba atômica. Ela estava voltando para casa. E, assim que chegou, cientistas nucleares começaram a usá-la em testes. Eles queriam entender melhor como o plutônio se torna “crítico” ou “supercrítico”. Os materiais radioativos, como o urânio e o plutônio, emitem radiação eletromagnética (formada por ondas de energia pura, como os raios gama) e também partículas altamente energizadas: alfa, beta e nêutrons.

Para iniciar uma reação nuclear, você precisa de duas coisas: uma determinada quantidade de combustível nuclear (a chamada “massa crítica”) e alguma maneira de confinar os nêutrons. Se você fizer isso, impedindo que essas partículas se dispersem, acontece uma coisa interessante: os nêutrons quebram os átomos de plutônio (ou de urânio), e isso libera mais nêutrons, que por sua vez quebram mais átomos, e por aí vai. É uma reação em cadeia, autossustentável, na qual o combustível nuclear alcança o estado “crítico” – em que ele vai quebrando os próprios átomos sozinho, sem precisar de ajuda externa.

Além de nêutrons, a reação também libera muito calor. É assim que os reatores nucleares funcionam: eles usam esse calor para ferver água e movimentar uma turbina, gerando eletricidade (quando um reator alcança o estado autossustentável pela primeira vez, diz-se que ele alcançou a “criticalidade”).

Nas bombas atômicas, o princípio é o mesmo, mas o objetivo é diferente. Nelas, você quer provocar o estado “supercrítico”, em que a reação nuclear não apenas se mantém: ela vai aumentando de intensidade. A ideia é fazer isso de forma violenta, para causar uma liberação súbita de energia: a explosão (ou “supercriticalidade imediata”). Na Little Boy, dois pedaços de urânio eram arremessados um contra o outro, dentro da bomba – quando se chocavam, eles alcançavam massa crítica e a reação começava. Já a Trinity, a Fat Man e a Rufus usavam o princípio da implosão, em que a esfera de plutônio é comprimida por uma onda de choque (isso aumenta a densidade dele, que entra em estado supercrítico).

Continua após a publicidade

No laboratório de Los Alamos, os cientistas decidiram usar o núcleo da bomba Rufus para fazer um teste de criticalidade. Ele não envolvia nenhuma explosão: a ideia era só confinar os nêutrons até que o plutônio entrasse em estado crítico (e, assim, determinar qual era o nível mínimo de nêutrons para que ele fizesse isso). No dia 21 de agosto de 1945, menos de uma semana após a rendição do Japão – e com a Segunda Guerra Mundial ainda acontecendo –, Harry Daghlian, um físico americano recém-formado, de 24 anos, começou a experiência.

O físico Harry Daghlian começou a cercar a esfera de plutônio, o coração da bomba, com blocos de tungstênio. Mas cometeu um erro – e pagou o preço.
O físico Harry Daghlian começou a cercar a esfera de plutônio, o coração da bomba, com blocos de tungstênio. Mas cometeu um erro – e pagou o preço. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Ele cercou a bola de plutônio com uma pilha de blocos de tungstênio: um material que reflete os nêutrons, fazendo com que se concentrem em torno da esfera. Daghlian foi empilhando mais tijolinhos com cuidado e observando a reação. Quando ia colocar o último, os instrumentos do laboratório emitiram um alerta, avisando que o nível de nêutrons estava ficando perigoso. Então ele puxou a mão direita, afastando o tijolo. Só que o bloco escapou – e caiu sobre a esfera. Quando isso aconteceu, o plutônio imediatamente entrou em estado “supercrítico”, liberando calor e vários tipos de radiação.

Harry conseguiu tirar o tijolo de tungstênio, interrompendo a reação nuclear e evitando que acontecesse algo pior. Mas recebeu 3,1 grays de radiação – o equivalente a tirar 4 mil radiografias de raio X, ou fazer 400 exames de tomografia computadorizada, de uma só vez. Nos dias seguintes, a mão dele foi ficando queimada e desfigurada.

Mas o sofrimento não ficou nisso. Doses altas de radiação, como a que Daghlian recebeu, conseguem arrancar os elétrons dos átomos do corpo, que ficam ionizados (eletricamente instáveis) e podem se combinar de maneiras anormais. Isso causa a deterioração imediata dos tecidos – a exposição a mais de 0,7 gray provoca danos em todos os órgãos vitais. O físico entrou em coma e morreu alguns dias depois, em 15 de setembro.

<strong>Clique na imagem para ampliar.</strong>
Clique na imagem para ampliar. (Carlos Eduardo Hara/Bruno Garattoni/Superinteressante)

Você deve estar pensando: mas como assim o sujeito mexeu com um pedaço de plutônio desse jeito, sem barreiras de proteção contra radiação, e colocando os blocos de tungstênio diretamente com a mão? Naquela época, em que a energia nuclear era novidade, o pessoal do Los Alamos não levava os riscos muito a sério mesmo – eles faziam os testes de criticalidade num galpão comum, sem qualquer isolamento.

Continua após a publicidade

Com a morte de Daghlian, a primeira causada num acidente nuclear, a diretoria do Los Alamos até tomou uma medida de precaução: a partir dali, as experiências de criticalidade só poderiam ser feitas na presença de dois cientistas. A ideia era que um fiscalizasse o outro, e com isso evitar condutas perigosas durante os testes.

Não foi o suficiente para frear o físico canadense Louis Slotin, de 34 anos, um veterano do Projeto Manhattan (que deu origem à bomba atômica). Slotin era conhecido por ser um expert – foi ele o responsável por montar a bomba Trinity – e pelo estilo bad boy: lutava boxe, gostava de usar botas de caubói e não era muito de seguir regras. Inclusive envolvendo testes nucleares.

O físico Louis Slotin era um bad boy, inclusive no laboratório. Não seguia as normas de segurança – e recebeu uma dose violenta de radiação.
O físico Louis Slotin era um bad boy, inclusive no laboratório. Não seguia as normas de segurança – e recebeu uma dose violenta de radiação. (Gustavo Magalhães/Superinteressante)

Os cientistas do Los Alamos haviam construído duas peças de berílio, um metal que reflete nêutrons, para colocar a esfera de plutônio dentro. Era mais preciso e seguro do que empilhar tijolinhos de tungstênio sobre a mesa, como fizera Daghlian. Mas havia um detalhe crucial: o recipiente (que parecia uma sopeira) precisava ficar entreaberto, para que parte dos nêutrons conseguisse escapar [veja infográfico abaixo]. Isso era feito colocando calços entre as peças.

Só que Slotin preferia outro método: ele punha uma chave de fenda entre as duas metades. Era uma tremenda irresponsabilidade, e todo mundo ali sabia disso. O italiano Enrico Fermi, que também trabalhava no Los Alamos (ele criou o primeiro reator nuclear e ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1938) chegou a dizer que Slotin estaria “morto em um ano” se continuasse trabalhando daquele jeito. O físico Richard Feynmann, outro expoente do Projeto Manhattan, comparava aquilo a “cutucar o rabo de um dragão”.

Slotin já havia feito o teste daquele jeito algumas vezes. Até que, no dia 21 de maio de 1946, na presença de outras sete pessoas (quatro físicos, um engenheiro, um fotógrafo e um segurança), o dragão finalmente acordou. A bendita chave de fenda escorregou, caiu, e as duas peças de berílio se fecharam sobre a esfera de plutônio – sem deixar nenhum espaço para que os nêutrons escapassem.

Continua após a publicidade

Em frações de segundo, o plutônio entrou em estado supercrítico. E foi pior do que da outra vez: como o recipiente de berílio prendia melhor os nêutrons, a reação de fissão nuclear acelerou de forma ainda mais violenta. Ela liberou calor e uma onda de radiação tão forte  que chegou a ionizar (arrancar os elétrons) das moléculas de ar, provocando um flash de luz azul.

Slotin reagiu rápido e conseguiu reabrir a cúpula de berílio, interrompendo o estado supercrítico. Mas recebeu incríveis 11 grays de radiação – o equivalente a fazer 1.400 exames de tomografia computadorizada ou tirar 14 mil chapas de raio X.

<strong>Clique na imagem para ampliar.</strong>
Clique na imagem para ampliar. (Carlos Eduardo Hara/Bruno Garattoni/Superinteressante)

Ele imediatamente começou a passar mal e foi internado num hospital. Nos dias seguintes, começaram a aparecer queimaduras internas em seu corpo – que os médicos compararam a “queimaduras de sol tridimensionais”. Eram lesões provocadas pela radiação. No sétimo dia, com o quadro se agravando, Slotin começou a ter confusão mental e dificuldade respiratória, que evoluiu para coma. Morreu dois dias depois.

Seu corpo acabou absorvendo a maior parte da radiação, evitando que as outras testemunhas da experiência recebessem doses igualmente altas. O mais exposto foi o físico Alvin Graves, de 34 anos, que absorveu 1,9 gray. Ele viveu mais 19 anos até morrer de infarto, agravado por um hipotireoidismo severo (a glândula tireoide é um dos pontos do corpo mais afetados pela radiação). O físico Marion Cieslicki, que tinha 23 anos na época do acidente, recebeu 0,15 gray – e morreu de leucemia aos 42 anos de idade.

Dwight Young, o fotógrafo de 54 anos, foi exposto a 0,62 gray; mas viveu até os 83 anos, quando morreu de infecção e anemia grave. Três dos presentes (os físicos Samuel Kline e Raemer Schreiber, e o engenheiro Theo Perlman) absorveram doses relativamente baixas e levaram vidas normais. O segurança, o soldado Patrick Joseph Cleary, de 21 anos, recebeu 0,41 gray. Mas não teve tempo de desenvolver problemas de saúde relacionados à radiação: morreu quatro anos depois, na Guerra da Coreia.

Continua após a publicidade

A esfera de plutônio, que então foi apelidada de demon core (núcleo do demônio), também encontrou seu fim. Ela foi derretida, e seu material reprocessado para uso em outras bombas atômicas – que foram detonadas em testes nucleares nos anos seguintes.

Os acidentes de criticalidade continuaram, mas não só em laboratório: com a energia nuclear se tornando cada vez mais presente, eles passaram a ocorrer também em usinas, submarinos e centros de reciclagem de material radioativo. Ao todo, houve 60 incidentes do tipo (1), com 21 mortes (a lista não inclui os casos de Chernobyl e Fukushima, que tiveram outras causas).

O último de todos aconteceu em Tokai, uma cidade japonesa de 37 mil habitantes onde funcionavam uma usina nuclear e um centro de reciclagem de urânio. No dia 30 de setembro de 1999, os técnicos misturaram óxido de urânio com ácido nítrico, para transformá-lo em nitrato de urânio – que seria processado e reutilizado em outras usinas nucleares. Eles estavam com pressa e despejaram óxido demais, rápido demais, até que o urânio entrou em estado crítico. 667 pessoas, entre funcionários, paramédicos e moradores da região, foram expostas à radiação. Os técnicos Hisahi Ouchi, de 35 anos, e Masato Shinohara, de 40, receberam as maiores doses – e morreram alguns meses depois.

* * *

Fonte 1.  A Review of Criticality Accidents – 2000 Revision. Los Alamos National Laboratory.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 6,00/mês

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 14,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.