Ela é idêntica às vacas comuns, exceto por um detalhe: não tem chifres. Foi criada por uma empresa americana e liberada para criação no Brasil. Mas seu DNA continha genes invasores – vindos de uma bactéria.
Reportagem Bruno Garattoni e Eduardo Szklarz | Ilustração Carlo Giovani | Design Juliana Krauss
Está tudo pronto. Álcool, seringa, tesoura, facão e um martelo de ferro em forma de T. Dois homens dividem as tarefas: o ajudante enlaça a bezerra e a imobiliza, com as quatro patas amarradas, enquanto o chefe coloca o martelo no fogo. Usando a tesoura, eles aparam os pelos em volta dos dois “botões”, os pontos onde estão nascendo os chifres do animal. Injetam uma anestesia no local, mas é preciso segurar com força a vaquinha, que dá um pulo e se contorce de dor: o chefe acaba de decepar o primeiro botão do chifre com o facão, fazendo o sangue jorrar. Ele então pega o martelo em brasa e cauteriza a ferida, gerando uma fumaceira. A bezerra, em estado de choque, já nem se mexe. Só observa os dois homens, apavorada. Mas ainda não acabou. Eles suspendem o animal pelas patas e o deitam do outro lado, para repetir o procedimento com o segundo botão. No final, aplicam um spray cicatrizante no crânio ainda quente. A dor da ferida persiste por dias, semanas, meses.
Essa cena acontece todos os dias nas fazendas. É a descorna, também chamada de “mocha” ou “mochamento”. Alguns pecuaristas dispensam o facão e simplesmente queimam o chifre, que atrofia com a alta temperatura. Outros o removem utilizando um produto cáustico, que pode ser ainda mais doloroso – pois tem ação prolongada e também pode queimar o rosto da bezerra e as tetas da mãe. Em alguns casos, nem se usa anestesia. A descorna é um procedimento doloroso e cruel. Mas virou rotina no gado leiteiro, porque deixa as vacas mais dóceis, facilita a ordenha e reduz os riscos de ferimentos no criador e em outros animais. Existem raças de vaca que nascem sem chifre (“mochas”), mas elas dão menos leite. Os produtores preferem criar vacas leiteiras da raça Holstein, que produzem bastante – e apelar para o ferro em brasa. Assim caminha a humanidade.
Mas e se houvesse uma solução menos cruel e mais tecnológica, ou seja, mais humana? Em 2015, a empresa de biotecnologia Recombinetics anunciou o nascimento de Buri, o primeiro touro sem chifres desenvolvido por edição genética. Seu DNA foi alterado para que ele não tivesse chifres – uma característica que, eis o ponto importante, ele transfere aos descendentes [veja infográfico abaixo]. A ideia é usar o sêmen de machos editados, como Buri, para gerar rebanhos de vacas leiteiras sem chifres. Buri era malhado em preto e branco, do mesmo jeito que uma vaca Holstein, mas sua cabeça era lisa como a da raça Angus, que é mocha. Em questão de dois anos, portanto, a empresa americana conseguiu em laboratório o que os pecuaristas levariam décadas pelo processo natural de cruzamento nas fazendas. A nova tecnologia permitia acabar com o sofrimento animal, sem reduzir a produção de leite.
A chave da façanha era o chamado “alelo Céltico”, um gene que faz as vacas Angus não desenvolverem chifres. Ele foi introduzido, com precisão, num determinado trecho do DNA de Buri, simulando o que ocorre naturalmente em raças mochas. “Nós sabemos onde o gene deve ir, e o colocamos em seu lugar exato”, disse Tammy Lee Stanoch, o CEO da Recombinetics, à imprensa americana em 2017. “Temos todos os dados científicos provando que não há efeitos fora do alvo.”
Começava, ali, uma nova fase na evolução agropecuária: a era dos bovinos geneticamente modificados. Em novembro de 2018, o sêmen de Buri foi liberado para uso no Brasil. Até que, no primeiro semestre de 2019, tudo mudou. Uma descoberta feita por acaso revelou que, na verdade, Buri era um animal problemático: continha DNA de bactéria misturado ao bovino. E, pior ainda, suas células carregavam genes de resistência a antibióticos.