Texto publicado originalmente em 2019
O gol que Sissi marcou contra a Alemanha pegou todo mundo de surpresa. A campanha do Brasil nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, corria melhor que a encomenda: após uma vitória contra o Japão e um surpreendente empate com a Noruega, atual campeã mundial, bastava repetir o resultado contra as poderosas alemãs para avançar à fase mata-mata do torneio. Coube à craque de cabelo raspado, que vestia a camisa 10 da seleção antes de Marta, garantir o placar de 1 a 1 e carimbar a vaga para as semifinais. Só que isso criou um problema gigante para a CBF.
Tudo porque o voo comercial que traria a delegação feminina de volta ao Brasil já estava marcado – para antes do término da competição. Nem os dirigentes acreditavam que as canarinhas superariam a fase de grupos. “A gente só foi descobrir isso depois do jogo”, lembra Sissi. A solução foi embarcar o time feminino junto à seleção principal – a dos homens –, que também foi derrotada na fase semifinal. As jogadoras ainda ouviram que voltar para casa a bordo do voo fretado da seleção masculina “já servia de prêmio”. Sissi não chega a discordar: “Não posso dizer que foi ruim porque tive o prazer de conhecer o Roberto Carlos, o Ronaldo…”. Aposentada da seleção desde 2000, hoje ela é treinadora de um time infantil feminino nos Estados Unidos.
A falha de logística se deu, justamente, na estreia do futebol feminino brasileiro em Olimpíadas. A primeira convocação de uma equipe nacional de mulheres aconteceu pouco antes, em 1988, ano do primeiro torneio feminino internacional da Fifa, organizado em caráter experimental. A seleção dos homens, tricampeã do mundo, já havia disputado 13 Copas.
Durante quase 40 anos, mulheres foram proibidas de jogar futebol profissional no Brasil. Dizia uma lei, decretada em 1941, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas: “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. A norma não citava exatamente o futebol, mas estava implícito que a bola não deveria rolar entre pés femininos. Sobravam argumentos pseudocientíficos para tentar manter as mulheres belas, recatadas e no lar. Artigos em jornais e revistas destacavam a condição física supostamente menos privilegiada das moças. Defendia-se que elas tinham ossos mais frágeis, menos glóbulos vermelhos e menor “resistência nervosa”. “Práticas consideradas ‘brutas’ eram vistas como nocivas à mulher, pois poderiam ‘masculinizar’ seu corpo ou colocar em risco o padrão de mulher ‘frágil e feminina’”, diz Leda Costa, pesquisadora do Leme (Laboratório de Estudos da Mídia e Esporte), da UERJ.
À época, jogos de futebol protagonizados por mulheres começavam a ganhar mais destaque – por vezes, jogos femininos serviam como uma espécie de “esquenta” para partidas masculinas. Foi o caso do embate entre Flamengo e São Paulo em 17 de maio de 1940, que inaugurou a iluminação do Estádio Municipal do Pacaembu, em São Paulo. Antes de a bola rolar para os homens, os times Cassino Realengo e Sport Club Brasileiro, compostos só por mulheres, deram o pontapé inicial.
Aos poucos, elas começavam a deixar para trás o passado restrito à várzea e, quem diria, aos picadeiros. Há registros de que, entre as décadas de 1920 e de 1940, quando acontecem as primeiras partidas no Brasil, o futebol feminino era atração de circo. Atrizes entravam em campo em espetáculos itinerantes, onde jogavam vestindo as cores de times locais. Tudo para entretenimento do respeitável público.
A restrição de 1941 foi atualizada em 1965. A proibição do futebol feminino, então, se tornou expressa: “não é permitida a prática feminina de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo, polo aquático, rúgbi, halterofilismo e beisebol”.
O futebol feminino é praticado no Brasil há quase 100 anos. Mas foi regulamentado há apenas 26.
Não dá para dizer que a regra foi cumprida ao pé da letra. “Nesse período muitas mulheres jogaram futebol, mas de modo amador e, pode-se dizer, clandestino. Graças a essas ‘mulheres desobedientes’ o futebol feminino se manteve vivo”, diz Costa.
Os jogos continuaram acontecendo por baixo dos panos, mas a modalidade seguiu desorganizada. Depois que a proibição terminou, em 1979, ainda se passaram quatro anos até que o futebol feminino fosse regulamentado. Só a partir de 1983 é que surgiram os primeiros times profissionais do País: Radar (RJ) e Saad (SP). Na década de 1990, clubes maiores como São Paulo e Santos fundaram equipes de mulheres. O primeiro Campeonato Brasileiro oficial, porém, viria só em 2013.