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Sociedade

A ascensão do futebol feminino no Brasil

Primeiro, era atração de circo. Depois, foi proibido por quase 40 anos. Agora, nunca estivemos tão perto de compensar o tempo perdido.

por Guilherme Eler Atualizado em 18 jul 2023, 11h02 - Publicado em
20 jun 2019
15h06

Texto publicado originalmente em 2019

O gol que Sissi marcou contra a Alemanha pegou todo mundo de surpresa. A campanha do Brasil nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, corria melhor que a encomenda: após uma vitória contra o Japão e um surpreendente empate com a Noruega, atual campeã mundial, bastava repetir o resultado contra as poderosas alemãs para avançar à fase mata-mata do torneio. Coube à craque de cabelo raspado, que vestia a camisa 10 da seleção antes de Marta, garantir o placar de 1 a 1 e carimbar a vaga para as semifinais. Só que isso criou um problema gigante para a CBF.

Tudo porque o voo comercial que traria a delegação feminina de volta ao Brasil já estava marcado – para antes do término da competição. Nem os dirigentes acreditavam que as canarinhas superariam a fase de grupos. “A gente só foi descobrir isso depois do jogo”, lembra Sissi. A solução foi embarcar o time feminino junto à seleção principal – a dos homens –, que também foi derrotada na fase semifinal. As jogadoras ainda ouviram que voltar para casa a bordo do voo fretado da seleção masculina “já servia de prêmio”. Sissi não chega a discordar: “Não posso dizer que foi ruim porque tive o prazer de conhecer o Roberto Carlos, o Ronaldo…”. Aposentada da seleção desde 2000, hoje ela é treinadora de um time infantil feminino nos Estados Unidos.

A falha de logística se deu, justamente, na estreia do futebol feminino brasileiro em Olimpíadas. A primeira convocação de uma equipe nacional de mulheres aconteceu pouco antes, em 1988, ano do primeiro torneio feminino internacional da Fifa, organizado em caráter experimental. A seleção dos homens, tricampeã do mundo, já havia disputado 13 Copas.

Durante quase 40 anos, mulheres foram proibidas de jogar futebol profissional no Brasil. Dizia uma lei, decretada em 1941, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas: “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. A norma não citava exatamente o futebol, mas estava implícito que a bola não deveria rolar entre pés femininos. Sobravam argumentos pseudocientíficos para tentar manter as mulheres belas, recatadas e no lar. Artigos em jornais e revistas destacavam a condição física supostamente menos privilegiada das moças. Defendia-se que elas tinham ossos mais frágeis, menos glóbulos vermelhos e menor “resistência nervosa”. “Práticas consideradas ‘brutas’ eram vistas como nocivas à mulher, pois poderiam ‘masculinizar’ seu corpo ou colocar em risco o padrão de mulher ‘frágil e feminina’”, diz Leda Costa, pesquisadora do Leme (Laboratório de Estudos da Mídia e Esporte), da UERJ.

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À época, jogos de futebol protagonizados por mulheres começavam a ganhar mais destaque – por vezes, jogos femininos serviam como uma espécie de “esquenta” para partidas masculinas. Foi o caso do embate entre Flamengo e São Paulo em 17 de maio de 1940, que inaugurou a iluminação do Estádio Municipal do Pacaembu, em São Paulo. Antes de a bola rolar para os homens, os times Cassino Realengo e Sport Club Brasileiro, compostos só por mulheres, deram o pontapé inicial.

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(Ilustração: Bárbara Malagoli / Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

Aos poucos, elas começavam a deixar para trás o passado restrito à várzea e, quem diria, aos picadeiros. Há registros de que, entre as décadas de 1920 e de 1940, quando acontecem as primeiras partidas no Brasil, o futebol feminino era atração de circo. Atrizes entravam em campo em espetáculos itinerantes, onde jogavam vestindo as cores de times locais. Tudo para entretenimento do respeitável público.

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A restrição de 1941 foi atualizada em 1965. A proibição do futebol feminino, então, se tornou expressa: “não é permitida a prática feminina de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo, polo aquático, rúgbi, halterofilismo e beisebol”.

O futebol feminino é praticado no Brasil há quase 100 anos. Mas foi regulamentado há apenas 26.

Não dá para dizer que a regra foi cumprida ao pé da letra. “Nesse período muitas mulheres jogaram futebol, mas de modo amador e, pode-se dizer, clandestino. Graças a essas ‘mulheres desobedientes’ o futebol feminino se manteve vivo”, diz Costa.

Os jogos continuaram acontecendo por baixo dos panos, mas a modalidade seguiu desorganizada. Depois que a proibição terminou, em 1979, ainda se passaram quatro anos até que o futebol feminino fosse regulamentado. Só a partir de 1983 é que surgiram os primeiros times profissionais do País: Radar (RJ) e Saad (SP). Na década de 1990, clubes maiores como São Paulo e Santos fundaram equipes de mulheres. O primeiro Campeonato Brasileiro oficial, porém, viria só em 2013.

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País do futebol... masculino

A regulamentação não fez o estereótipo de “sexo frágil” desaparecer, é claro. No começo, tentou-se emplacar no futebol feminino regras que não valiam para os marmanjos. A bola deveria ser menor e mais leve. E o jogo precisava ter 70 minutos, não 90. Até a Fifa, na Copa de 1991, determinou que só seriam 80 minutos de bola rolando.

Discussões sobre adaptações na modalidade existem até hoje. Vez ou outra, propostas como a diminuição do tamanho do gol, por exemplo, voltam a aparecer na mídia. Se a mesma fórmula é adotada por modalidades como vôlei e basquete, por que, afinal, deixar o futebol de fora? Assim, teríamos menos gols por cobertura, mesmo contando com goleiras mais baixas.

“Já ouvi isso muitas vezes, principalmente por não ser uma goleira alta”, diz Paty Nardy, atleta do Santos que tem 1,68 m. “Se você pegar as categorias de base masculinas, eles já jogam no mesmo gol que a gente. Muitas vezes o goleiro não está com sua estatura totalmente desenvolvida. Ninguém fala em colocar o gol menor para eles. Mas por que, para a gente, teria que ser menor?”, completa.

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(Ilustração: Bárbara Malagoli / Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

A jogadora defende que uma eventual falta de centímetros pode ser compensada com posicionamento e tempo de bola. Só que, nesse ponto, a real desvantagem não é a altura. É o preparo. “A maioria dos times não tem treinador de goleiras. A primeira vez que eu tive foi aqui no Santos, em 2016, quando tinha 27 anos”.

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Como regra geral, as mulheres também começam a carreira mais tarde. Marta, eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo, tinha 14 anos quando deu seus primeiros passos na equipe profissional do Vasco da Gama (RJ). A primeira convocação, para defender a seleção adulta, veio aos 16. Não é (só) porque a rainha do futebol tinha habilidades fora do comum. É porque a seleção adulta era a única que existia. A primeira categoria de base da seleção teve início em 2003. Andressinha, jogadora de 24 anos que disputa sua segunda Copa, começou no sub-17 – mas tinha só 13 anos. A categoria sub-15 só surgiria em 2013.

11 – é a idade em que meninas começam a praticar esportes no Brasil.

Segundo dados do Ministério do Esporte, a maioria dos meninos no Brasil começa a praticar esportes a partir dos 5 anos de idade. Para as meninas, esse primeiro contato acontece após os 11. Isso, claro, tende a dificultar o desenvolvimento esportivo delas. “Até hoje, meninas não ganham bolas quando crianças”, diz Aira Bonfim, pesquisadora dos primórdios do futebol nacional de mulheres na FGV-RJ. Foi o que aconteceu com nomes como Sissi, Formiga, Cristiane e Andressa Alves – casos famosos de atletas da seleção que, na infância, arrancavam a cabeça de bonecas para dar seus primeiros chutes.

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2019: o ano do futebol feminino

Mesmo com o desenvolvimento tardio, o futebol feminino no Brasil parece estar mais perto de, finalmente, viver dias melhores. Um incentivo e tanto veio em 2019: uma resolução da CBF cobra que, a partir deste ano, todos os clubes da série A do Campeonato Brasileiro tenham uma equipe feminina adulta e uma “de base”, que disputem ao menos um campeonato oficial. A decisão acompanhou uma regra da Confederação Sul-­Americana de Futebol que também passou a valer em 2019. Clubes que quiserem disputar competições continentais, como Libertadores e Copa Sul-Americana, precisam manter projetos ativos de futebol feminino.

As novas determinações despertaram – na marra – dirigentes de todo o País. Treze dos 20 clubes que disputam série A iniciaram suas equipes de futebol feminino adulto em 2019. A sétima edição do campeonato brasileiro feminino reúne hoje 52 times, em duas divisões.

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(Ilustração: Bárbara Malagoli / Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

Ainda que muitas atletas agora pertençam aos grandes clubes do futebol masculino, as relações de trabalho não costumam ser as mesmas. Times femininos, sobretudo os menores, quase sempre oferecem apenas contratos curtos, de no máximo um ano, o que faz com que muitas atletas sejam cortadas assim que acaba uma competição, e precisem trocar de clube com frequência. É um sistema semelhante ao que atletas homens das séries C e D do Brasileirão enfrentam. Só que naquela que deveria ser a divisão de elite do futebol feminino nacional.

A boa notícia é que não faltam exemplos de potências do futebol feminino mundial que também atravessaram décadas de obstáculos, mas aprenderam a fazer a modalidade brilhar – depois de construir projetos consistentes para o esporte.

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O campeonato espanhol guarda hoje o recorde de público em um jogo feminino: Atlético de Madrid e Barcelona levaram 60,7 mil pessoas ao estádio.

Na Inglaterra, as mulheres foram banidas do futebol entre 1921 e 1971. O primeiro campeonato organizado pela FA (Football Association, a CBF da Inglaterra) aconteceu em 1993. Nos anos seguintes, foram criados 20 centros de excelência para disseminação do futebol feminino pelo país. Em 2002, o futebol já havia se tornado o esporte mais praticado por mulheres inglesas.

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(Ilustração: Bárbara Malagoli / Design: Juliana Krauss/Superinteressante)
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A França, sede da Copa Feminina de 2019, é outro caso próspero: por lá a proibição começou em 1941 e também terminou em 1971. A modalidade segue em franca expansão no país: o número de clubes franceses que mantêm equipes femininas dobrou nos últimos sete anos – são mais de 3 mil times. Até 2021, 900 escolas de futebol feminino devem funcionar no país. O time de maior destaque no mundo também está na França. O Lyon, que possui sua própria academia de formação de jogadoras, se tornou uma potência na última década: foram seis títulos da Champions League Feminina no período.

Na Alemanha, onde mulheres foram impedidas de jogar entre 1955 e 1970, existem hoje mais de 200 mil jogadoras federadas. As ligas de desenvolvimento de atletas começam a partir da categoria sub-6. Gol delas.

Com uma liga nacional mais organizada, mais projetos de base e uma sociedade que saiba enxergar um só futebol, a tendência é que despontem novas Martas, Cristianes e Formigas. Essa, aliás, é uma corrida contra o tempo: é muito provável que a Copa de 2019 seja a última do trio, que forma a espinha dorsal da seleção há mais de uma década. Mas, mais do que nunca, não há por que temer a renovação. Afinal, falta de material humano nunca foi um problema por aqui.

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