Ao longo das décadas, pesquisadores têm destruído a reputação de uma série de alimentos – da manteiga ao café – para depois redimi-los como algo benéfico à saúde. Entenda como funciona o vaivém da ciência para não levar a sério demais os ditames da pesquisa do momento (os próprios cientistas não levam).
Texto: Cláudia de Castro Lima | Edição de Arte: Faz Faz Faz Design
Design: Andy Faria | Imagens: Tomás Arthuzzi
Café faz bem à saúde, desde que o consumo diário não ultrapasse quatro xícaras grandes. Gordura não é tão maléfica quanto imaginávamos. Já o carboidrato do trigo… Esse, sim, é um problema. Ele só é diferente do açúcar da boca para fora. Depois de ingerido, suas moléculas são quebradas e têm efeito absolutamente igual no organismo. Por isso que, desde que passamos a comer mais farinha branca, biscoitos e bolos, a obesidade e a diabetes viraram epidemia.
Quer dizer, tudo isso que você leu acima é o que a comunidade médica acredita hoje. Mas isso pode mudar nos próximos anos. O cafezinho até uns anos atrás era tido como inimigo da boa saúde. A mesma coisa acontecia com a carne vermelha, o ovo, o chocolate – todos recentemente absolvidos, depois que pesquisas científicas modernas descobriram novos (e saudáveis) componentes nesses alimentos. Ou desde que estudos mais abrangentes mostraram que ficar sem eles é pior do que consumi-los. Afinal, por que as conclusões da ciência mudam tanto?
Para começar, essas diferenças nos estudos não espantam a comunidade médica – que, aliás, até espera que elas ocorram. “Não há verdade universal na ciência”, afirma o cardiologista Heno Lopes, do Hospital das Clínicas de São Paulo. “A medicina, assim como a nutrição, não é ciência exata. Nem sempre o que é verdade hoje continuará verdadeiro no futuro”, concorda o endocrinologista Pedro Assed, da PUC-Rio-IEDE.
“Estamos sempre avançando em conhecimento principalmente no que diz respeito à individualidade genética e, mais recentemente, em nutrigenômica – que mostra a possibilidade que cada alimento tem de fazer bem ou mal para cada indivíduo.”
Um dos motivos para as mudanças de paradigmas é o avanço da tecnologia. Com o uso de instrumentos como computadores e internet, é claro que resultados obtidos em estudos de colesterol nos anos 40 são bem menos precisos e abrangentes do que os que conseguimos hoje. Outro problema é a divulgação precipitada de todo e qualquer estudo que é feito, mesmo os que não levam em consideração amostragens significativas ou não são publicados em revistas científicas importantes.
Grande parte dos problemas são causados pela má interpretação dos resultados e pela falta de contextualização dos dados. Quer um exemplo? A história de que chá verde emagrece é uma verdade relativa: para ter esse efeito, ele deve ser consumido em grande quantidade, alguns litros por dia. Mas ninguém deve fazer isso, porque ele também tem cafeína.
Para ser levada realmente a sério, uma pesquisa tem que ter algumas características, diz Assed. “Reprodutibilidade é uma delas: tenho que conseguir reproduzir esse estudo em qualquer lugar do mundo. Metodologia clara é outra.” Além disso, é preciso que haja declaração de conflito de interesse. Ou seja: há alguém patrocinando o estudo? É também necessário que exista isenção.
Sim, porque há isso ainda: os pesquisadores podem puxar a brasa para sua própria sardinha. É, por exemplo, mais provável que um cardiologista pesquise os efeitos benéficos do café para o coração e ignore o mal que ele possa causar ao trato digestivo. “Há algo que dizemos muito para os alunos de medicina: cuidado, porque os números acabam mostrando o que você quer ver”, afirma Heno Lopes.
“Sempre há o viés.” Assed concorda. “Muitas vezes as pesquisas científicas são estruturadas com muitos vícios ou vieses, que acabam levando a resultados também viciados e que podem atender a algum interesse específico – muitas vezes, ferramentas úteis para embasar cientificamente algo falso.”
Ele cita como exemplo as gorduras hidrogenadas. “Sabe-se que a indústria alimentícia precisa usá-la em quase tudo. Pesquisas que desconsideram seu potencial maléfico contribuem para esse tipo de validação.” Por isso que, no meio médico, impera o ceticismo. “Não tomamos como verdade absoluta os estudos publicados em revistas médicas. Sabemos que a ciência vai sofrendo modificações à medida que os estudos se aplicam a outras populações ou por mais tempo”, afirma o cardiologista Lopes.
O que vale para a comunidade médica ainda é o bom e velho bom senso – esse sujeitinho monótono, previsível, que nunca traz notícias bombásticas. Nós adoraríamos que um médico sério nos falasse que uma dieta à base de pizza, chocolate e cerveja é a chave da longevidade. Mas o que realmente funciona já foi dito por Paracelso, um sábio do século 16, quando nem existia a medicina moderna: só a dose faz o veneno.
“Tudo que é consumido com moderação, levando em conta as individualidades de cada sujeito, pode trazer benefícios para a saúde”, diz Assed. “É difícil rotular certos alimentos como bons ou ruins para a saúde, uma vez que determinado alimento pode não trazer benefícios para uma pessoa, mas pode ser importantíssimo para outra.”
De vilões a mocinhos
Vários alimentos considerados por muito tempo nocivos à saúde foram absolvidos depois de pesquisas recentes. Entenda como isso aconteceu.
1820 • Café do mal
Desde que o químico alemão Ferdinand Runge descobriu a cafeína, no início do século 19, ela virou o único objeto de estudo entre as mais de mil substâncias componentes do café. Baseadas em seus efeitos fisiológicos, essas pesquisas geralmente tinham alguma conclusão negativa, já que a cafeína é um poderoso estimulante.
Antes mesmo disso, no fim do século 16, o café chegou a ser proibido pelo papa Clemente 8º – ele via algo de demoníaco na sensação provocada pela bebida (mais tarde, o próprio papa absolveu o café, quando percebeu que ele ajudava a combater o cansaço depois de horas de orações). Em doses elevadas, a cafeína pode realmente induzir a efeitos como taquicardia, insônia, ansiedade e tremores.
1854 • Álcool do mal
Desde a Antiguidade, a humanidade atribuiu propriedades medicinais às bebidas alcoólicas. Embora ao longo dos séculos tenha havido vários sábios e curandeiros que se opuseram à crença de que o álcool era um santo remédio, coube aos cientistas da segunda metade do século 19 provar isso. Um dos primeiros estudos que associa a bebida a problemas na saúde é de 1854: foi conduzido por Nathan S. Davis, fundador da American Medical Association.
Seus estudos para provar que o álcool não era nutritivo eram feitos desde 1848. De lá para cá, os efeitos nocivos do consumo exagerado ficaram bastante conhecidos: por exemplo, provoca gastrite e úlcera, sobrecarrega o fígado e atrofia várias áreas do cérebro, contribuindo para o aparecimento da demência.
1937 • Gordura do mal
Pela primeira vez, biólogos da Universidade Columbia associaram o consumo de gordura a índices altos de colesterol no sangue. Mas é apenas em 1952, com o fisiatra americano Ancel Keys, da Universidade de Minnesota, que alguns tipos de gordura foram relacionados a doenças cardíacas.
Ele constatou que em locais como Japão, Itália e Grécia, onde a alimentação era rica em gordura vegetal, os índices de problemas vasculares eram menores do que em países como Estados Unidos, Holanda e Finlândia, que davam preferência à gordura animal. Foi assim que a gordura chamada saturada, encontrada na carne vermelha, manteiga e queijo, virou uma grande vilã para a saúde. Desde então, o consumo de gorduras diminuiu – e o de carboidratos cresceu.
Fins dos anos 1930 • Ovo do mal
O ovo de galinha também foi demonizado com a descoberta da influência do colesterol em doenças cardiovasculares. Nos anos 70, uma pesquisa da American Heart Association (Associação Americana para o Coração) chegou a indicar a ingestão máxima aceitável de colesterol por dia: 300 mg.
O consumo do ovo, que contém cerca de 200 mg em apenas uma unidade, despencou. A gema, que é rica na substância, foi associada ao aumento do risco de infarto e de acidente vascular cerebral.
Fins dos anos 1930 • Carne de boi do mal
A carne vermelha ganhou má reputação na mesma leva de estudos que fez a caveira do ovo, da manteiga e de toda sorte de gordura animal. Nos anos 70, após dezenas de estudos nas décadas anteriores, as autoridades americanas passaram a recomendar que o consumo da carne vermelha fosse reduzido.
Anos 1970 • Álcool do bem
Não é só o vinho que ganhou redenção. Os benefícios do consumo moderado de álcool de forma geral vêm sendo mostrados desde esta década, como a saúde do coração, o controle do estresse, uma incidência menor de depressão.
Outra descoberta da medicina foi que bebedores com parcimônia vivem mais do que os abstêmios – a mais longa pesquisa já feita sobre o assunto, aliás, mostra que quem não coloca uma gota de álcool na boca vive ainda menos do que quem bebe muito. Não se sabe ainda exatamente como isso acontece, apenas que o álcool é capaz de afinar o sangue e romper placas de gordura já formadas.
Anos 1980 • Ovo do bem
Nessa década, começa a ser questionado o papel de vilão do ovo na alimentação. Mas só em 1995 chegou-se à conclusão de que ele, além de rico em proteínas, tem antioxidantes. O ovo tem, sim, muito colesterol, o que pode ser nocivo – mas excluí-lo da dieta pode ser pior do que consumi-lo.
Há vários fatores para isso: a colina, presente na gema, é um nutriente vital para o cérebro; o triptofano é um aminoácido precursor da serotonina, substância que dá sensação de bem-estar; a maioria das gorduras de um ovo é monoinsaturada – ou seja, a “gordura do bem”, que protege o coração.
Anos 1990 • Lactose do mal
Depois que alguns estudos foram publicados mostrando que a maioria dos seres humanos tem, em algum nível, intolerância à lactose, o açúcar presente no leite foi demonizado.
A intolerância provocaria reações como dor abdominal e inchaço na barriga – e, por isso também, o leite virou vilão em dietas da moda. No entanto, uma revisão de 16 estudos publicada no European Journal of Nutrition em 2013 revelou que não há relação entre o consumo de lactose com o aumento de risco de problemas cardíacos ou obesidade.
1996 • Gordura do bem
O pesquisador Walter Willet, da Universidade Harvard, publicou no British Medical Journal um estudo em que analisou a dieta e a saúde cardíaca de 40 mil homens. Ele descobriu que os que substituíram alimentos com alto teor de gordura saturada por carboidratos não tiveram redução em males do coração. A conversa em torno das gorduras começou a mudar.
Outras pesquisas, que usam cromatografia (tecnologia de análise da composição molecular dos nutrientes dos alimentos), revelaram que há vários tipos de gordura saturada e apenas duas são maléficas se ingeridas em excesso: a láurica, presente no óleo de coco, e a mirística, do leite e seus derivados.
Também foi constatado que, consumida nos níveis ideais (10% da alimentação diária), a gordura participa do armazenamento das vitaminas A, D, E e K nas células. Em 2010, uma meta-análise (um estudo de outros estudos) concluiu que não há evidências significativas que relacionem a gordura saturada a um aumento de risco cardíaco.
Anos 2000 • Café do bem
Foi só no século 21 que a ciência começou a mostrar os benefícios do café. Concluiu-se que ele tem poderosos antioxidantes. A quantidade dessas substâncias numa xícara é maior do que a presente em alimentos famosos por isso (como vinho tinto, maçã, abacate e chá verde). O consenso hoje é que o consumo não deva ultrapassar quatro xícaras por dia – ou 600 ml – de café coado fraco.
Anos 2000 • Carboidratos do mal
Recentemente, pesquisas sugerem que o consumo exagerado de carboidratos e açúcares é o responsável pelas epidemias de obesidade e diabetes tipo 2 nos Estados Unidos. Os carboidratos refinados, que são encontrados na farinha branca, bolos, biscoitos e massas, só são diferentes dos açúcares da boca para fora.
Da boca para dentro, são a mesma coisa: estimulam a produção de insulina, hormônio que faz o transporte da glicose para dentro das células, que se depositam em forma de gordura. Como sobra pouco combustível no sangue para dar energia para o organismo, começamos a sentir fome e o metabolismo entra no modo econômico, diminuindo.
2001 • Carne de boi do bem
Um dos mais prestigiados jornalistas de ciência do mundo, o americano Gary Taubes escreveu, na revista Science, que o medo da gordura presente na carne bovina não passava de um “dogma”. O artigo repercutiu na comunidade científica e além: sua defesa do bife acabou em jornais e revistas de interesse geral de todo o mundo.
Além disso, a classe médica se deu conta de que não há por que excluir os cortes magros de boi do nosso cardápio. A carne vermelha voltou então a ser recomendada por causa do valor nutricional. A mioglobina, proteína que “tinge”de vermelho os músculos bovinos, é uma excelente fonte de ferro – sua falta pode provocar anemia. Uma dieta pobre em carne de boi ainda pode resultar na deficiência de vitamina B12, com os consequentes problemas para a retenção de memória.
2005 • Glúten do mal
O glúten é uma proteína presente em alguns cereais, como o trigo, o centeio e a cevada. O ataque à sua reputação foi lançado pelo terapeuta holístico inglês Nishi Joshi, guru das dietas de desintoxicação. Joshi incluiu o glúten no rol dos itens proibidos: ele causaria fadiga e desconforto gastrointestinal também em quem não é celíaco (intolerante à proteína). Estaria relacionado ainda à epidemia mundial de obesidade.
A proteína – cujo consumo aumentou na mesma medida do consumo de itens industrializados com farinha branca de trigo – virou a vilã da vez nos últimos anos. Ainda não há, porém, estudos científicos que confirmem a culpa do glúten em doenças ou ganho de peso.
2011 • Chocolate do bem
Uma ampla pesquisa, conduzida por dez anos com 33.372 mulheres e 37.103 homens, foi realizada na Suécia pelo Instituto Karolinska para avaliar a “culpa” do chocolate em casos de problemas cardiovasculares. Sua constatação: comer 63 gramas de chocolate por semana (ou quatro bombons pequenos) acarreta uma queda de 20% nos índices de derrame.
Os resultados se assemelham aos benefícios do exercício físico. A responsabilidade é dos flavonoides, potentes componentes antioxidantes e anti-inflamatórios. Outras benesses recentemente comprovadas do chocolate: reduz o colesterol ruim, aumenta o bom colesterol e preserva os vasos sanguíneos e a diabetes.