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Sociedade

Amazônia sitiada: a relação entre queimadas e desmatamento

A maior ameaça à soberania nacional está dentro do nosso território. Saiba quem são os agentes por trás dos desmatamentos – e como ganham dinheiro com isso.

por Guilherme Eler Atualizado em 16 set 2020, 12h32 - Publicado em 23 set 2019 18h54

Texto: Guilherme Eler | Fotos: Araquém Alcântara | Design: Juliana Krauss | Edição: Alexandre Versignassi


A região de Novo Progresso, município do sudoeste do Pará, queimou como nunca no último dia 10 de agosto de 2019. Imagens de satélite reunidas pelo Inpe acusavam 124 focos locais de calor, um crescimento de 300% em um único dia. Mas o recorde não durou sequer pelas 24 horas seguintes. No domingo, 11, as imagens do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais já mostravam 203 casos de incêndio, o que só fez aumentar a nuvem espessa de fumaça que envolvia a cidade paraense.

As suspeitas do Ministério Público e da Polícia Federal é que o número anormal de queimadas não foi obra do acaso. Muito pelo contrário: foi premeditado – e combinado via WhatsApp. Um grupo de 70 madeireiros, pecuaristas e produtores rurais com propriedades no entorno da BR-163 teria escolhido a data para fazer a limpeza de pastos e áreas desmatadas usando fogo. A ideia era mostrar para o governo federal que estavam dispostos a trabalhar. “O único jeito é derrubando (sic). Para formar e limpar nossas pastagens, é com fogo”, teria dito um proprietário local entrevistado pelo jornal Folha do Progresso, onde o chamado “Dia do Fogo” foi denunciado cinco dias antes de acontecer.

O evento ajudou a consolidar os números alarmantes do mês de agosto. A terra não ardia de forma tão intensa na Amazônia desde 2010. Quase 31 mil focos despontaram na região só naquele mês, atingindo uma área que, somada, dá 30 mil km²  – ou 4,2 milhões de campos de futebol. Juntando os oito primeiros meses de 2019, são 45 mil queimadas – quase o triplo do ano passado no mesmo período. E contando.

Dez cidades da Amazônia acumularam, sozinhas, 37% das queimadas e 43% dos desmatamentos do País até julho de 2019.

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A diferença é que, ao contrário do que aconteceu em anos como 2010 e 2015, que enfrentaram secas extremas – e, por tabela, tiveram uma alta repentina no número de incêndios –, 2019 não anda menos chuvoso do que deveria. Segundo o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), a atual temporada de seca tem sido, na verdade, menos intensa que a de anos anteriores. Isso quer dizer que, por si só, as condições naturais não justificam a alta.

Como resposta ao maior número de incêndios, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que proibia queimadas em todo o País por 60 dias. Em seguida, o texto da determinação foi alterado, restringindo a proibição à Amazônia Legal – área que abrange toda a região Norte, além de partes dos Estados de Mato Grosso e Maranhão.

Limpar o solo com ajuda de queimadas, como sugeriam os articuladores do “Dia do Fogo”, é uma técnica usada não apenas na região amazônica. Ao final do plantio de culturas como a cana, por exemplo, é comum que se queime a lavoura já pensando no próximo ciclo de plantio.

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O problema é que, para além desse uso controlado, incêndios da região Norte costumam seguir o rastro de um processo implacável: o desmatamento. No úmido bioma amazônico, focos de calor não são espontâneos. Em vez disso, nascem em áreas onde antes existia floresta – derrubada, muitas vezes, de forma criminosa.

Um ponto que reforça essa relação é o fato de os dez municípios amazônicos com mais focos de incêndio serem também os que mais desmataram, de acordo com uma nota técnica do Ipam. Sozinhas, essas cidades concentraram 37% dos focos de calor e 43% do desmatamento registrado até julho. Tais números acompanham também a alta de 203% no total de alertas de derrubada de árvores na Amazônia no trimestre entre junho e agosto, quando comparado ao mesmo período de 2018.

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(Juliana Krauss/Superinteressante)

Segundo dados do MPF, queimadas recentes servem para consolidar ou expandir desmatamentos mais antigos. Ao todo, 816 áreas desmatadas em 2017 e 2018 pegaram fogo entre o início de janeiro e 10 de setembro de 2019.

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Colcha de retalhos

Mas por que tantos desmatamentos? A principal razão está na soma de dois fatores: o interesse comercial que as terras locais despertam e a intrincada distribuição fundiária da região.

Segundo o Atlas da Agricultura Brasileira, o País tem algo como 176 milhões de hectares de propriedades privadas dentro de terras públicas – uma área do tamanho do Irã. A maior parte delas está na Amazônia.

A Lei de Gestão de Florestas Públicas, de 2006, determina que as terras da Amazônia Legal sejam divididas por categorias de proteção. Um quarto do território é ocupado por reservas indígenas – que, por contarem com comunidades locais, tendem a oferecer maior resistência a potenciais invasores. Já assentamentos rurais somam 8%, segundo dados do Ipam.

Outros 25% existem sob a premissa da preservação do ambiente: 21% são as chamadas Unidades de Conservação (que se dividem em áreas de proteção integral e uso sustentável) e o restante, 4%, compreendem áreas de “preservação ambiental”. Ser uma área do tipo não garante que a terra fique intocada, como vamos ver mais adiante. 

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(Juliana Krauss/Superinteressante)

Mas um problema ainda maior está no restante do território. Há uma fatia de 15% do bioma amazônico que envolve “florestas públicas não destinadas”: elas são de posse do Estado só que não têm uma finalidade determinada de uso – não são assentamentos nem reservas,  nem áreas transferidas oficialmente à iniciativa privada.

Outros 9% da Amazônia são “áreas sem clara informação fundiária”. Nesses lugares, o Estado basicamente não sabe se existem comunidades indígenas vivendo ali, se tem gente desmatando o lugar para transformar em pasto, se estão roubando madeira. São terras de ninguém.

Essas indefinições fazem com que áreas públicas acabem invadidas. Tanto que as florestas não destinadas e as “sem informação” sofrem quase tantos desmatamentos e queimadas quanto propriedades particulares.

E quem desmata e queima? “As ONGs”, como diz Bolsonaro? Vilões nazistas que tocam fogo em tudo para ficar tocando harpa lá por perto? Não: são os grileiros e madeireiros. Vamos a eles.

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Papel passado

Grileiro é o sujeito que clama para si a posse de uma terra pública, de forma fraudulenta. Esse processo de regularização forjada envolve a falsificação de documentos de posse, a chamada grilagem – numa referência ao costume ancestral de colocar escrituras de posse na gaveta junto com grilos, de modo que o papel fique carcomido, com cara de algo antigo.

Esse costume não existe mais. Mas a grilagem segue firme. “O perfil mais reincidente é o do grileiro associado a madeireiras e à pecuária extensiva”, diz Luis Novoa, professor da Unir (Universidade Federal de Rondônia). “Ele é o agente mais ativo nas frentes de expansão que ficam nas bordas do agronegócio consolidado”.

Para que uma terra ocupada seja regularizada – ou seja, comprada do Estado –, a primeira coisa que o grileiro (ou qualquer outro interessado) deve fazer é comprovar ocupação.

9% do território amazônico é composto por áreas que não são assentamentos nem reservas, nem propriedades privadas.

Por exemplo: imagine uma terra pública “sem informação”, e cheia de floresta virgem. Aí você, aspirante a grileiro, quer montar uma fazenda de gado ali. O que você faz? Como não há informação sobre o tal pedaço de terra, o ideal é tirar a floresta dali, encher de bois, e então “avisar” o Estado de que a tal “terra sem informação” é, na verdade, a sua bela e produtiva fazenda. 

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Estratégias como pagar impostos sobre o território, inscrever-se em programas de regularização fundiária e comprovar um histórico de ocupação facilitam a aprovação da posse definitiva. O tempo necessário para dar entrada no processo varia de Estado para Estado. No Amazonas e Mato Grosso, por exemplo, quem passa um ano na terra já consegue reivindicar um título de propriedade.

O desmate, enfim, é o primeiro passo até que se reivindique o controle sobre um pedaço de terra pública. E custa caro: até R$ 2 mil por hectare (área de 10 mil metros quadrados). Em setembro, por exemplo, a Polícia Federal descobriu 15 mil hectares desmatados por grileiros no Pará. Ou seja: gastaram R$ 30 milhões para remover essa quantidade de floresta.   

Esse tipo de remoção é um tipo bem organizado de de crime, com diversos atores. Aí que entram os madeireiros ilegais. “Eles entram na área e retiram as madeiras mais nobres. Depois, posseiros derrubam o que os madeireiros não quiseram levar e passam o correntão: uma grande corrente de ferro puxada por dois tratores que derrubam os arbustos menores”, explica Raoni Rajão, professor na área de gestão ambiental da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

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(Foto: Araquém Alcântara I Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

De acordo com a ONG Humans Right Watch (HRW), é comum que a derrubada criminosa não aconteça em grandes áreas de uma vez só – uma forma de despistar os satélites de monitoramento. Fiscais de instituições como o Ibama raramente dão conta de chegar antes da retirada das árvores. Um relatório da HRW mostrou que existem 780 inspetores do órgão para dar conta do Brasil todo. Na metade “ocidental” do Pará, são só oito – que devem cuidar de uma área do tamanho da França.

O mesmo documento mostra que a impunidade e a dificuldade de fiscalização caminham lado a lado com a violência. A Human Rights Watch menciona que a extração ilegal de madeira na Amazônia é “em grande parte impulsionada por redes criminosas que têm a capacidade logística de coordenar a extração, o processamento e a venda de madeira em larga escala, enquanto empregam homens armados para proteger seus interesses.” Intimidação, ataques e assassinatos servem como mecanismos que garantem a continuidade dessas atividades. Foram 300 mortes motivadas por questões fundiárias na região nos últimos dez anos, segundo a Comissão Pastoral da Terra.

Após a retirada das árvores, é preciso esperar até dois meses para que os restos de madeira morta e o solo da floresta estejam secos o bastante para a etapa seguinte. Só então vem o fogo.

O objetivo da limpeza é criar novas áreas de pasto – ou de lavoura. A pecuária é a aplicação mais comum: estima-se que entre 70% e 80% das áreas desmatadas na Amazônia hoje contam com cabeças de gado. São pelo menos 80 milhões de bovinos pastando no bioma. Ainda que em menor grau, plantações também se aproveitam da destruição da floresta. Um levantamento de 2018 feito pelo ministério do Meio Ambiente mostrou que só a cultura de soja ocupa 47,3 mil hectares de floresta desmatada de forma ilegal na Amazônia.

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Quando o crime compensa

Além das perdas ambientais, essa relação de busca por benefício a curto prazo não é lucrativa para a produção agropecuária do País. Segundo o Ipam, dois terços da área de floresta devastada terminam se tornando pastagens de baixa produtividade, com menos de uma cabeça de gado por hectare.

“A pecuária acaba sendo um pretexto. Ela não é a atividade produtiva desses imóveis, a atividade é a especulação. O boi entra como uma forma de comprovar algum tipo de uso produtivo”, explica a advogada Brenda Brito, pesquisadora do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia). “Isso contribui para que se tenha na Amazônia uma pecuária extremamente ineficiente.”

De acordo com especialistas, a valorização de uma área transformada em pasto pode multiplicar por três – ou, dependendo da região, até seis vezes – seu valor original. “A área de floresta sempre é mais barata que uma desmatada. Especialmente se for uma desmatada pronta para cultivo. Essa é a mais valorizada, porque a pessoa que comprar não vai ter que fazer esse investimento”, completa Brito. “Isso costuma ser regra na Amazônia”.

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(Foto: Araquém Alcântara I Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

Seja como for, a pressão do agronegócio fez com que a legislação fundiária do Brasil fosse alterada recentemente. Em 2017, o congresso aprovou uma medida provisória que serviu como um pacotão de mudanças em relação à ocupação de terras em todo o País.

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A primeira grande diferença foi permitir a regularização de áreas públicas griladas até dezembro de 2011. Pela lei anterior, só era possível reivindicar o direito à terra na justiça se a ocupação tivesse acontecido antes de 2004.

O tamanho das fazendas, agora, pode ser de até 2.500 hectares – antes, nenhuma faixa de terra podia superar os 1.000 hectares. Há também novos parâmetros de preço. O pagamento por um título de terra invadida, segundo a nova determinação, deve ser de 10% a 50% do valor definido pela tabela-base do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).  A ideia, segundo o governo, era que as novas medidas fossem uma ação federal para a reforma agrária. Estima-se que mais de 1 milhão de famílias vivam em 9.332 assentamentos por todo o Brasil. 85% ainda não têm o título da terra – e pelo menos 650 mil, diz o Tribunal de Contas da União (TCU), ocupam essas áreas de forma irregular.

Pela lei, há uma hierarquia na hora de se pleitear um título de posse: quem larga na frente são os povos indígenas. Comunidades quilombolas, áreas de conservação ambiental ou de iniciativas de agricultura familiar vêm logo na sequência. Só então, ao menos na teoria, estão as propriedades privadas.

Os novos parâmetros legais aumentaram a regularização de terras. Dados do Ministério da Agricultura indicam que o governo federal emitiu 90 mil títulos por todo o País só em 2018. Em 2017, foram 26,5 mil. A média histórica entre 2003 e 2016, por sua vez, foi de 2,6 mil títulos por ano.

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Quem paga a conta

O acesso facilitado a títulos de terra era demanda antiga de proprietários que ocuparam a região, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980. Nessa época, houve um estímulo por parte do governo federal para que recém-chegados recebessem propriedades – muitas delas nunca regularizadas.

O problema é que as novas mudanças que facilitam a regulação fundiária acabam se tornando também um estímulo à grilagem no norte do País. Tudo por permitir que invasões recentes, que foram fruto de esquemas fraudulentos, tenham chance de serem regularizadas.

Os danos da grilagem também respingam nos cofres públicos. Uma vez que terras invadidas geram um retorno financeiro menor do que seu valor original, é como se cada nova ocupação ilegal regularizada fizesse o governo ganhar menos dinheiro, e os contribuintes brasileiros assumissem a conta do roubo de terras públicas – simplesmente porque a terra é vendida barato demais. 

Um levantamento do instituto Imazon demonstrou que o governo já cedeu uma área de 27,8 milhões de hectares para propriedades privadas na Amazônia. Se toda essa terra fosse comercializada pelos valores atuais, o prejuízo estimado à União ficaria na casa dos R$ 118 bilhões. O estudo argumenta que o preço que costuma ser pago ao governo federal por quem precisa regularizar áreas médias e grandes está entre 25% e 33% de seu valor original de mercado.

Para além da presença estrangeira, que na ditadura justificou a exploração do norte do País sob a lógica de “integrar para não entregar”, o roubo de terras públicas é uma ameaça atual à soberania nacional na Amazônia. Ao permitir que a regulação fundiária contemple áreas tomadas de assalto, é como se o Brasil entregasse o bioma de bandeja – com a diferença de que, nesse caso, o inimigo está dentro do território. 

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